Diário Eletrônico

PODER JUDICIÁRIO

TRIBUNAL REGIONAL FEDERAL DA 3ª REGIÃO
 PODER JUDICIÁRIO
Tribunal Regional Federal da 3ª Região
4ª Seção

EMBARGOS INFRINGENTES E DE NULIDADE (421) Nº 5001229-79.2019.4.03.6124

RELATOR: Gab. 39 - DES. FED. JOSÉ LUNARDELLI

EMBARGANTE: EMERSON DE ALMEIDA CHIERI

EMBARGADO: MINISTERIO PUBLICO FEDERAL - PR/SP

OUTROS PARTICIPANTES:

 

 


 

  

 PODER JUDICIÁRIO
Tribunal Regional Federal da 3ª Região
4ª Seção
 

EMBARGOS INFRINGENTES E DE NULIDADE (421) Nº 5001229-79.2019.4.03.6124

RELATOR: Gab. 39 - DES. FED. JOSÉ LUNARDELLI

EMBARGANTE: EMERSON DE ALMEIDA CHIERI

 

EMBARGADO: MINISTERIO PUBLICO FEDERAL - PR/SP

 

OUTROS PARTICIPANTES:

 

 

 

  

 

R E L A T Ó R I O

 

O EXCELENTÍSSIMO SENHOR DESEMBARGADOR FEDERAL JOSÉ LUNARDELLI:

Trata-se de embargos infringentes opostos pela Defensoria Pública da União em defesa de EMERSON DE ALMEIDA CHIERI (ID 285907844) contra acórdão proferido pela Egrégia Quinta Turma deste Tribunal que, por maioria, deu provimento ao recurso de apelação interposto pelo Ministério Público Federal, contra sentença que absolveu Emerson de Almeida Chieri, com fundamento no art. 386, V, do Código de Processo Penal, da imputação de prática do crime previsto no art. 20, parágrafo 2º, da Lei 7.716/89.

O voto vencido, proferido pelo Desembargador Federal Ali Mazloum, negava provimento ao apelo da acusação para manter a absolvição de Emerson de Almeida Chieri, ao entendimento de que houve apenas a utilização do direito de liberdade de expressão para criticar o que não achava correto (cotas raciais), de forma que teria inexistido a prática do crime previsto no art. 20, parágrafo 2º, da Lei 7.716/89.

Em suas razões recursais, a embargante pretende a prevalência do voto vencido, que negava provimento à apelação interposta pelo Ministério Público Federal, para manter a sentença absolutória que entendeu pela atipicidade da conduta.

Sustenta a defesa, em suma, que não estaria demonstrado o dolo específico do réu, pois inexistiriam elementos que permitiriam inferir a efetiva intenção do acusado em praticar, induzir ou incitar o crime de racismo, quer contra a população afrodescendente, quer contra a população judaica.

Contrarrazões apresentadas pela Procuradoria Regional da República no ID 287420576, pugnando pelo desprovimento dos embargos infringentes.

É o relatório.

À revisão.

 

 

 

 

 

 

 

 

 


 PODER JUDICIÁRIO
Tribunal Regional Federal da 3ª Região
4ª Seção
 

EMBARGOS INFRINGENTES E DE NULIDADE (421) Nº 5001229-79.2019.4.03.6124

RELATOR: Gab. 39 - DES. FED. JOSÉ LUNARDELLI

EMBARGANTE: EMERSON DE ALMEIDA CHIERI

 

EMBARGADO: MINISTERIO PUBLICO FEDERAL - PR/SP

 

OUTROS PARTICIPANTES:

 

 

 

 

 

V O T O

 

 

O EXCELENTÍSSIMO SENHOR DESEMBARGADOR FEDERAL JOSÉ LUNARDELLI:

Presentes os requisitos de admissibilidade, conheço do recurso, e passo a seu exame.

A disciplina processual acerca dos embargos infringentes e de nulidade está encerrada no parágrafo único do art. 609 do Código de Processo Penal, que dispõe, in verbis:

"Art. 609. Os recursos, apelações e embargos serão julgados pelos Tribunais de Justiça, câmaras ou turmas criminais, de acordo com a competência estabelecida nas leis de organização judiciária.

Parágrafo único. Quando não for unânime a decisão de segunda instância, desfavorável ao réu, admitem-se embargos infringentes e de nulidade, que poderão ser opostos dentro de 10 (dez) dias, a contar da publicação de acórdão, na forma do art. 613. Se o desacordo for parcial, os embargos serão restritos à matéria objeto de divergência."

Tem-se, na lição de Aury Lopes Jr. (Direito Processual Penal - 13. ed. - São Paulo: Saraiva, 2016, pp. 1057 e 1058), os seguintes requisitos para manejo do referido recurso:

- cabimento e adequação: somente tem lugar para impugnar uma decisão não unânime desfavorável ao réu, proferida por tribunal, no julgamento de uma apelação, recurso em sentido estrito ou gravo em execução, quando haja um voto divergente mais benéfico à defesa (no todo ou em parte);

- tempestividade: o prazo é único para interposição do recurso e apresentação das suas razões (dez dias, contados da publicação do acórdão);

- preparo: apenas nos casos em que a ação penal é de iniciativa privada;

- legitimidade: trata-se de recurso exclusivo da defesa;

- existência de um gravame: "existe interesse recursal ainda que o voto vencido acolha uma pequena parcela do pedido da defesa, ou seja, ainda que mínima a vantagem jurídica que aquele provimento lhe possa ocasionar".

Delineados os contornos da espécie recursal ora em exame, tem-se que os embargos infringentes opostos pela Defensoria Pública da União devem ser conhecidos.

 No caso concreto, o voto vencedor deu provimento ao recurso de apelação interposto pelo Ministério Público Federal, contra sentença que absolveu Emerson de Almeida Chieri, com fundamento no art. 386, V, do Código de Processo Penal, da imputação de prática do crime previsto no art. 20, parágrafo 2º, da Lei 7.716/89.

Extrai-se do voto vencedor proferido pelo Desembargador Federal Paulo Fontes:

“[...] Conforme se verifica dos autos, a publicação se deu na rede social Orkut, em comunidade "14/88" de cunho nazista, por meio do e-mail emersonchieri@hotmail.com, da seguinte forma:

“Judaico-americanismo negro. Muito tempo atrás, a coroa Britânica junto com as Companhias da Índias, que é na verdade grupos de judeus, que dominavam o intercâmbio entre os chefes tribais africanos e o novo mundo, com seu monopólio escravagista trocavam negros por espelhos e outras quinquilharias. Esses mesmos escravos hoje se juntam com o seus escravisadores (sic) para reivindicarem reparações que não são justas. Eles deveria reivindicar (sic) aos verdadeiros escravagistas (sic) que são os judeus, coisas que não fazem, muito pelo contrário. SÃO NA VERDADE OS CÃES DE GUARDA DO SIONISMO.”

O réu foi denunciado pela prática do artigo 20, § 2º, da Lei 7.716/89, que dispõe que:

Art. 20. Praticar, induzir ou incitar a discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional. (Redação dada pela Lei nº 9.459, de 15/05/97)

(...)

§ 2º Se qualquer dos crimes previstos neste artigo for cometido por intermédio dos meios de comunicação social, de publicação em redes sociais, da rede mundial de computadores ou de publicação de qualquer natureza:      (Redação dada pela Lei nº 14.532, de 2023)

Pena: reclusão de dois a cinco anos e multa.(Incluído pela Lei nº 9.459, de 15/05/97)

 A materialidade do crime restou devidamente comprovada por meio dos seguintes documentos: pedido de quebra de sigilo de dados telemáticos da comunidade virtual “14/88” do sítio eletrônico “ORKUT” (ID 144606232, fls. 21/23); resposta do Google ao ofício nº 2226/08, com a mensagem de cunho racista datada de 19/06/2007 pelo usuário IP 5564613323817262195 (ID 144606232, fls. 173/175); Relatório parcial da Delegacia de Polícia Federal em Jales/SP (ID 144606232, fls. 221/222); resposta do Google ao ofício nº 1394/2009 – DFP/JLS/SP, com a informação do perfil no site “ORKUT” relacionado ao usuário id 5564613323817262195, tendo como e-mail de registro: emersonchieri@hotmail.com (ID 144606232, fls. 261/263 e fls. 280/281); e termo de Declarações do acusado, no qual afirma ser o possuidor da conta de e-mail emersonchieri@hotmail.com, o qual está ativo (ID 144606232, fls. 393/394). 

Da mesma forma, restou demonstrada a autoria do crime. O acusado, em sede policial (ID 144606232 – p. 393), admitiu o uso do e-mail emersonchieri@hotmail.com.

Com a quebra do sigilo telemático, restou confirmado que o réu foi responsável pela postagem do conteúdo no dia 19.06.2007, às 18:45min.

Da mesma forma, em juízo, no seu interrogatório, EMERSON confirmou que fez a publicação em crítica à política de cotas raciais para acesso a cursos superiores, pois defendia que a reserva de vagas deveria ocorrer por critérios socioeconômicos. Disse que a mensagem postada citava trecho de obra de Gustavo Barroso, sendo que se referiu a um fato histórico, sem conteúdo racista. Após, esclareceu que tem passagens criminais antigas por furto e roubo, na década de 1990 e que, em 2006, também foi denunciado por ato similar.

Destarte, não há dúvidas sobre a autoria do crime, uma vez que restou demonstrado que Emerson foi o autor da postagem do texto na rede social Orkut, o que, inclusive, foi confirmado por ele.

Quanto ao elemento subjetivo do tipo, o E. Relator entendeu que não estaria demonstrado o dolo específico do réu, pois inexistiriam elementos que permitiriam inferir a efetiva intenção do acusado em praticar, induzir ou incitar o crime de racismo, quer contra à população afrodescendente, quer contra à população judaica.

Não obstante, data venia, considero que a publicação extrapola a garantia constitucional da liberdade de expressão ao ser direcionada a determinado grupo de pessoas com a intenção de incitar ódio.

A publicação traz conteúdo ofensivo aos judeus, tratando-os como “verdadeiros escravagistas”, o que fomenta discriminação e incita o ódio contra pessoas de determinada religião.

Pode-se pensar que o réu estava discutindo um fato histórico ou fazendo uma afirmação sobre um fato histórico, qual seja, o de que os judeus seriam os principais responsáveis pelo comércio de escravizados para as Américas. Mas a assertiva insere-se, sim, num contexto de discriminação e antissemitismo. A uma, porque tal “fato histórico” não resiste à análise, uma vez que todas as nacionalidades europeias estiveram profundamente envolvidas com o tráfico negreiro, e seria generalização desarrazoada dizer que esses comerciantes eram em sua maioria de origem judaica. Setores da própria Igreja católica, segundo os historiadores, justificaram a escravização de negros. A duas porque, ainda que o tal fato histórico fosse verdadeiro, a afirmação foi feita em um site neonazista, em contexto de evidente antissemitismo.

Entende-se que o discurso do réu na rede social transborda ao razoável da liberdade de expressão, trazendo fatos históricos distorcidos e tendenciosos para incitar o preconceito ao povo judeu, com nítido propósito criminoso de estimular a intolerância religiosa.

Com o seu texto, o acusado buscava instigar que se voltassem contra judeus por serem os “verdadeiros escravagistas”, apontando-os como os causadores pelo doloroso período da escravidão na humanidade.

Além disso, o fato de ter sido feita a postagem em ambiente de apologia ao nazismo reforça a intenção do réu, que ultrapassa o razoável de uma livre manifestação de pensamento, uma vez que tem o propósito de buscar comentários de pessoas com mesma ideologia distorcida concordando com a sua opinião exposta e que sejam ofensivos de igual maneira à comunidade judaica.

Apesar do réu afirmar que o seu propósito era a discussão acerca de cotas nas faculdades brasileiras, não há nada em seu discurso que aponte isso, principalmente por ter se dado em fórum de divulgação de conteúdo neonazista, o que, inclusive, indica que sua conduta visava a propagação do antissemitismo.

internet acaba por virar um ambiente atrativo para pessoas mal intencionadas reproduzirem seu discurso de ódio, em decorrência da sensação de anonimato e da distância entres os usuários da rede social.

Destarte, não se pode ignorar uma postagem com ofensas que trazem conteúdo antissemita, em detrimento da liberdade de expressão, uma vez que viola direito fundamental da dignidade da pessoa que se sobrepõe àquele princípio.

Conclui-se, dessa forma, pela tipicidade do delito e pela presença do dolo específico em sua conduta, devendo ser reformada a r. sentença para condenar o réu pela prática criminosa descrita no artigo 20, § 2º, da Lei 7.716/89.

Da dosimetria da pena.

Na primeira fase do critério trifásico, observa-se que o julgador possui alguma discricionariedade para, diante do caso concreto, estabelecer o quantum da exasperação, ainda que limitada por critérios de proporcionalidade e razoabilidade e pelo sentido possível das expressões utilizadas pelo legislador.

A pena-base deve ser fixada de acordo com as circunstâncias judiciais do artigo 59 do Código Penal, de forma que, estando presente apenas uma das circunstâncias desfavoráveis, deve a pena na primeira fase ser elevada para acima do mínimo legal.

Com efeito, o réu possui diversos apontamentos em lista de antecedentes criminais, contudo não houve a demonstração de que tenha transitado em julgado alguma condenação ou que tenha sido extinta pena pelo cumprimento de pena. Desse modo, diante da ausência de informações, não há como serem valorados os maus antecedentes, em observância à Súmula 444 do Superior Tribunal de Justiça.

Os motivos são característicos do delito. A conduta social e a personalidade não o desabonam e não há que se falar em comportamento da vítima.

As consequências do delito são normais à espécie.

No entanto, considero as circunstâncias do crime gravosas, uma vez que o réu se valeu de comunidade com conteúdo neonazista para a postagem de seu discurso.

Nesse contexto, considerando a circunstância desfavorável das circunstâncias doc crime, fixo a pena-base em 02 (dois) anos, 09 (meses) meses e 18 (dezoito) dias de reclusão e 14 (quatorze) dias-multa.

Na segunda fase, presente a atenuante da confissão, descrita no artigo 65, inciso III, alínea "d", do Código Penal, reduzo a pena intermediária, em 1/6 (um sexto), para 02 (dois) anos e 04 (quatro) meses de reclusão e 12 (doze) dias-multa.

Ausentes causas de aumento e de diminuição na terceira fase da dosimetria da pena, torno definitiva a pena privativa de liberdade de 02 (dois) anos e 04 (quatro) meses de reclusão e 12 (doze) dias-multa.

O valor unitário do dia-multa fica estabelecido no mínimo legal de 1/30 (um trigésimo) do salário mínimo vigente ao tempo dos fatos.

Fixo o regime inicial aberto para o início do cumprimento da pena, na forma do artigo 33, § 2º, alínea "c", do Código Penal.

Ademais, cabível a substituição da pena privativa de liberdade por duas restritivas de direitos, consistentes em prestação de serviços à comunidade pelo tempo da pena corporal e em prestação pecuniária de 02 (dois) salários mínimos.

Ante o exposto, dou provimento ao recurso ao recurso do Ministério Público Federal para condenar EMERSON DE ALMEIDA CHIERI pela prática do crime do artigo 20, § 2º, da Lei 7.716/1989, à pena privativa de liberdade de 02 (dois) anos e 04 (quatro) meses de reclusão, em regime inicial aberto, e 12 (doze) dias-multa, no valor unitário mínimo legal, substituída a pena privativa de liberdade por duas restritivas de direitos, consistentes em prestação de serviços à comunidade pelo tempo da condenação e prestação pecuniária de 02 (dois) salários mínimos.

É o voto”.

Por sua vez, o voto vencido, cuja prevalência defende a embargante, negava provimento ao apelo da acusação para manter a absolvição de Emerson de Almeida Chieri, ao entendimento de que houve apenas a utilização do direito de liberdade de expressão para criticar política com a qual não concordava (cotas raciais), de forma que teria inexistido a prática do crime previsto no art. 20, parágrafo 2º, da Lei 7.716/89. Pontuou o Desembargador Federal Ali Mazloum:

“[...] Da análise do texto legal, extrai-se que o dolo é o elemento subjetivo fundamental do crime, não se admitindo a forma culposa. Ademais, exige-se para a consumação do delito a existência do dolo específico com a demonstração de efetiva discriminação ou preconceito, concretizados em condutas que revelem a intenção de segregar indivíduos ou propagar suposta condição de inferioridade ou desqualificação de determinado grupo.

No caso concreto, o acusado, já em sede policial (ID 144606232 – p. 393), admitiu o uso do e-mail emersonchieri@hotmail.com, sendo que, com a quebra do sigilo telemático (ID 144606232 p. 175 e 262/263), restou claro que o réu foi o responsável pela postagem efetuada em 19.06.2007, às 18:45min, cujo conteúdo foi acima reproduzido.

Em juízo, no seu interrogatório, Emerson acrescentou que fez a publicação em crítica à política de cotas raciais para acesso a cursos superiores. Defendia que a reserva de vagas deveria ocorrer por critérios socioeconômicos. Informa que a mensagem postada citava trecho de obra de Gustavo Barroso, sendo que se referiu a um fato histórico, sem conteúdo racista. Questionado pelo membro do “Parquet”, esclareceu que tem passagens criminais antigas por furto e roubo, na década de 1990. Assevera que foi processado e condenado pela Justiça Estadual, em 2006, por colagem de papel em que também se manifestava acerca do sistema de cotas.  Após os processos, não fez mais essas postagens. Refere que atualmente propaga as ações afirmativas, tendo sido beneficiado pelo programa PROUNI, através do qual cursa o 10º semestre de Direito.

Analisando o conjunto probatório, constato que não há elementos que permitam inferir a efetiva intenção do acusado em praticar, induzir ou incitar o crime de racismo, quer contra à população afrodescendente, quer contra à população judaica.

Ainda que postado em comunidade de rede social com conteúdo antissemita e apologia ao nazismo, criada por outrem, tem-se que o texto publicado pelo réu, conquanto permita debate com relação à extrapolação dos limites da liberdade de expressão, garantida no artigo 5º, inciso IV, da Constituição da República, não se confunde, a meu ver, com discurso voltado à anulação ou restrição de direitos a determinada parcela de indivíduos.

Como dito, a conduta do acusado, a pretexto de externar sua opinião a respeito de uma política pública, pode ser entendida como abuso do direito individual à liberdade de expressão, passível de escrutínio na esfera cível, mas não se reveste de conotação criminosa, insuscetível, assim, de configurar o delito disposto no artigo 20, § 2º, da Lei n. 7.716/89, e ensejar a aplicação do Direito Penal.

Com efeito, tratando-se de suposta conduta racista, tipificada como crime pela Lei nº 7.716/89, esta deve ser demonstrada com prova robusta da imprescindível presença do dolo específico do agente para configuração do delito de incitar a discriminação ou preconceito de raça e cor.

Assim já decidiu esta Colenda 5ª Turma:

"PENAL. PROCESSO PENAL. APELAÇÃO CRIMINAL. SENTENÇA CONDENATÓRIA. CRIME DE INDUZIR OU INCITAR A DISCRIMINAÇÃO. LEI 7.716/89. ART. 20. PROVA DA PARTICIPAÇÃO DO RÉU. AUSÊNCIA DE PROVA SUFICIENTE PARA A CONDENAÇÃO. APELAÇÃO DA DEFESA PROVIDA.

1. Da análise do tipo em questão, nota-se a exigência do dolo específico para sua consumação, de modo que não admite a forma culposa, pressupondo a violação aos limites impostos à liberdade de manifestação religiosa e à liberdade de expressão.

2. Assim, o crime de praticar, induzir ou incitar a discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional não se configura diante de suposta simpatia por ideologia racista que não basta, por si só, para a configuração do delito imputado, ou seja, exige-se a demonstração de efetiva discriminação e intenção de violar direitos alheios.

3. A partir do conjunto probatório, verifica-se que não há elementos que comprovem a efetiva intenção do acusado em incitar ou induzir à prática de racismo, por não ter se estabelecido o envolvimento direto para o fim de considerar a participação ativa do acusado André na confecção, distribuição dos referidos materiais de caráter discriminatório tanto na criação, quanto na manutenção do site denominado www.kkkk.net/brasil. Com efeito, tratando-se de suposta conduta racista, tipificada como crime pela Lei nº 7.716/89, esta deve ser demonstrada com prova robusta e inequívoca a fim de sustentar um decreto condenatório, o que não ocorreu no caso dos autos.

4. Inclusive, o Superior Tribunal de Justiça já decidiu que a real intenção da norma penal em análise é reprimir a defesa e difusão de ideias preconceituosas e segregacionistas que afrontem a dignidade daqueles pertencentes a toda uma raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional, sendo imprescindível a presença do dolo específico na conduta do agente, que consiste na vontade livre e consciente de praticar, induzir ou incitar o preconceito ou discriminação de um grupo como um todo (STJ, RESP 200602768515, FELIX FISCHER, QUINTA TURMA, DJE DATA: 08/06/2009).

5. Diante da absoluta ausência de prova incriminadora que autorize o decreto condenatório, muito menos da comprovação do elemento subjetivo do crime de racismo objeto do art. 20, § 2º, da Lei nº 7.716/89, a absolvição mostra-se impositiva.

6. Apelação da defesa provida. (Ap. – APELAÇÃO CRIMINAL/SP Nº 0012137-46.2010.4.03.6110. Desembargador Federal MAURICIO KATO, TRF3 - 5ª Turma, DATA DO JULGAMENTO: 18/02/2019, e-DJF3 Judicial 1 DATA: 12/03/2019).”

Nesse contexto, diante da ausência de comprovação do elemento subjetivo do crime objeto do artigo 20, § 2º, da Lei nº 7.716/89, deve ser mantida a absolvição, o que faço, por fundamentação legal diversa, com fulcro no artigo 386, inciso III, do Código de Processo Penal.

Considerando a existência nos autos de documentos protegidos por sigilo, o presente feito deverá tramitar sob segredo de justiça, na modalidade “sigilo de documentos”.

Ante o exposto, NEGO PROVIMENTO ao recurso de apelação do MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL.”

Cabe salientar que os embargos infringentes constituem recurso de escopo restrito (conforme se extrai da norma de regência – Código de Processo Penal, art. 609, parágrafo único), cujo objeto se cinge ao pedido de prevalência (no todo ou em parte) de voto vencido proferido em condenação colegiada não unânime. Por consequência, a análise do caso deve ser restrita a esses lindes, sem ingresso em aspectos com relação aos quais não tenha havido divergência favorável à parte embargante (ressalvadas questões de ordem pública). E, no presente caso, a divergência se restringe à presença do elemento subjetivo do tipo, ou seja, quanto à presença do dolo específico na conduta do embargante, já que não houve divergência quanto à comprovação da materialidade delitiva, reconhecida também no voto vencido.

A questão a ser dirimida, portanto, diz com a existência do elemento subjetivo do tipo na conduta do embargante a sustentar a sua condenação nas penas do art. 20, parágrafo 2º, da Lei 7.716/89.

Penso que a razão está com o voto vencedor.

No presente caso, a denúncia narra, em apertada síntese, que Emerson de Almeida Chieri e os codenunciados Alex Lopes do Nascimento e Wanderlei Alves Mendes praticaram e incitaram a discriminação de raça e cor, por intermédio de meio de comunicação social, porquanto no dia 19/06/2007, em São Paulo/SP, o embargante, responsável pelo e-mail emersonchieri@hotmail.com, postou mensagem de cunho racista no site de relacionamentos denominado “Orkut”, em comunidade destinada a difundir ideias nazistas, criada pelo corréu Alex. A mensagem possuía o seguinte teor:

“Judaico-americanismo negro. Muito tempo atrás, a coroa Britânica junto com as Companhias da Índias, que é na verdade grupos de judeus, que dominavam o intercâmbio entre os chefes tribais africanos e o novo mundo, com seu monopólio escravagista trocavam negros por espelhos e outras quinquilharias. Esses mesmos escravos hoje se juntam com o seus escravisadores para reivindicarem reparações que não são justas. Eles deveriam reevindicar aos verdadeiros escravagistas que são os judeus, coisas que não fazem, muito pelo contrário. SÃO NA VERDADE OS VERDADEIROS CÃES DE GUARDA DO SIONISMO.”

O Ministério Público Federal imputou ao embargante a conduta descrita no art. 20, parágrafo 2º da Lei 7.716/89, que assim dispõe:

Art. 20. Praticar, induzir ou incitar a discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional. (Redação dada pela Lei nº 9.459, de 15/05/97)

Pena: reclusão de um a três anos e multa. (Redação dada pela Lei nº 9.459, de 15/05/97)

(…)

§ 2º Se qualquer dos crimes previstos neste artigo for cometido por intermédio dos meios de comunicação social, de publicação em redes sociais, da rede mundial de computadores ou de publicação de qualquer natureza:(Redação dada pela Lei nº 14.532, de 2023) Pena: reclusão de dois a cinco anos e multa.(Incluído pela Lei nº 9.459, de 15/05/97)

A sentença absolutória entendeu pela atipicidade da conduta, sob seguintes fundamentos: i) ausência de ofensa ao bem jurídico protegido pelo tipo do art. 20, caput e parágrafo 2º, da Lei 7.716/1989, fundamentando que “No caso em tela, não há a prática, induzimento ou incitação tratada no tipo penal, visto que não se identifica ação concreta para propagar a segregação ou ao impedimento do exercício de um determinado direito”; e ii) falta de demonstração do dolo específico na conduta do réu, que asseverou que suas declarações foram feitas em um contexto de crítica às políticas de cotas.

Após a interposição de recurso de apelação pelo órgão ministerial, sobreveio julgamento pela Quinta Turma desse Egrégio Tribunal Regional Federal da 3ª Região que considerou devidamente comprovada a materialidade do crime e, quanto ao elemento subjetivo do tipo, a maioria discordou do voto do relator, Exmo. Desembargador Federal Ali Mazloum, e concluiu pela tipicidade do delito e pela presença do dolo específico em sua conduta, dando provimento ao recurso ministerial para reformar a sentença e condenar o réu pela prática criminosa descrita no artigo 20, parágrafo 2º, da Lei 7.716/89.

A defesa busca a prevalência do voto vencido, que mantinha a sentença absolutória, entendendo que não estaria demonstrado o dolo específico do réu, por inexistirem elementos suficientes para se inferir a efetiva intenção em praticar, induzir ou incitar o crime de racismo, quer contra a população afrodescendente, quer contra a população judaica.

Como se sabe, o dolo consiste na vontade livre e consciente de praticar quaisquer das condutas descritas no tipo penal, no caso do art. 20 da Lei 7.716/89, “praticar, induzir ou incitar a discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional”. O dolo específico, no caso, se consubstancia na intenção de promover preconceito ou discriminação contra um grupo de pessoas distinguíveis pelos critérios de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional.

Da análise dos autos se depreende que o embargante postou, na rede social “Orkut”, em comunidade denominada “14/88”, da qual fazia parte, de cunho evidentemente nazista, mensagem afirmando que os judeus teriam sido os “verdadeiros escravagistas” do povo negro, os quais seriam os verdadeiros “cães de guarda do sionismo”, por não se voltarem contra os judeus. A postagem, portanto, se inseriu em contexto de disseminação da ideologia antissemita, em local particularmente destinado a esse fim.            

Nesse ponto, importa destacar que os números 14 e 88 são comumente associados e utilizados em contexto discriminatório por aqueles que defendem ideologias supremacistas e neonazistas. Em rápida pesquisa é possível verificar que o número 14 advém de slogan, de origem estadunidense, utilizado por grupos separatistas supremacistas brancos, qual seja, "We must secure the existence of our people and a future for white children" (que pode ser traduzido por "Devemos assegurar a existência de nosso povo e um futuro para as crianças brancas"). Já o número 88 faz referência à saudação nazista “Heil Hitler”, por ser o “h” a oitava letra do alfabeto, formando sua repetição referência à citada saudação, que tem como letras iniciais duas letras “h”. Portanto, a leitura do quanto consta dos autos leva à conclusão inafastável que a conduta se deu em evidente ambiente de promoção à discriminação contra a população afrodescendente e judaica.

Assim, a alegação no sentido da falta de demonstração do dolo específico na conduta do embargante, que afirmou que suas declarações foram feitas em um contexto de crítica às políticas de cotas, não encontra respaldo no conjunto probatório. Pelo próprio ambiente em que inseridas (especificamente destinado a promover discurso de ódio contra afrodescendentes e judeus) não é razoável admitir-se que seriam apenas críticas sociais a determinada ação afirmativa, despidas de qualquer caráter discriminatório, já que a utilização da falsa associação dos judeus à imagem de escravagistas revela a intenção deliberada de gerar a sua segregação social.

Ainda no que tange ao dolo, saliento que, salvo em casos de confissão plena, é certo que não há como se produzir uma prova de índole psíquica que ateste o íntimo conhecimento, a deliberação e a vontade livre, nem se o exige o ordenamento jurídico. O dolo é, em regra, aferível pelo contexto de ação do agente, pelo conjunto probatório a demonstrar as características da conduta apurada e quais os fatos conexos a essa conduta, de maneira a demonstrar (ou não) a ciência de um acusado a respeito do que está a fazer (ou, ao menos, a assunção deliberada do risco de estar a praticar uma conduta que se amolda a um tipo penal). No caso dos autos, tem-se tal demonstração com relação ao embargante, devido aos elementos probatórios já examinados e ao contexto fático concreto, descrito acima.

Como bem destacou o voto vencedor, “pode-se pensar que o réu estava discutindo um fato histórico ou fazendo uma afirmação sobre um fato histórico, qual seja, o de que os judeus seriam os principais responsáveis pelo comércio de escravizados para as Américas. Mas a assertiva insere-se, sim, num contexto de discriminação e antissemitismo. A uma, porque tal “fato histórico” não resiste à análise, uma vez que todas as nacionalidades europeias estiveram profundamente envolvidas com o tráfico negreiro, e seria generalização desarrazoada dizer que esses comerciantes eram em sua maioria de origem judaica. Setores da própria Igreja católica, segundo os historiadores, justificaram a escravização de negros. A duas porque, ainda que o tal fato histórico fosse verdadeiro, a afirmação foi feita em um site neonazista, em contexto de evidente antissemitismo”.

A alegação defensiva no sentido de que o embargante apenas se utilizou de sua liberdade de expressão para discordar de políticas de cotas raciais, portanto, não encontra sustentação nos autos. Nos termos das bem lançadas razões de apelação (ID 144606294):

“No que tange à afirmação de que a fala do réu se inseriria no debate das cotas raciais, realmente houve uma alusão às “reparações que não são justas” que “esses mesmos escravos” (a população negra) estariam reivindicando, quando deveriam reivindicar dos “verdadeiros escravagistas que são os judeus”. Com efeito, cabe lembrar que os pretos, pardos e indígenas (PPI) são aqueles a quem a reserva de vaga pelo critério racial se destina, no regime da Lei nº 12.711/12. Entretanto, dentro de qualquer debate, o direito à liberdade de manifestação da opinião não abrange expressões discriminatórias, racistas e extremistas. Especialmente quando, repita-se, tal “opinião” foi expressada em um grupo que continha uma apologia aos ideais nazistas já em seu nome “14/88”, e era marcado pelo preconceito contra negros e judeus. Para fins de ilustração, havia uma outra postagem do grupo de data relativamente próxima (29 de maio de 2007) também fazendo referência à população negra, conforme identificado pela Google em ofício. Esta se intitulava “Massa de manobra” e seu teor era o seguinte: “Camaradas, não nos esqueçamos de que os negros nada mais são do que massa de manobra utilizada pela (sic.) sionismo internacional. Recordemos os ensinamentos do Fuhrer, não nos esqueçamos de quem realmente é inimigo primordial do nosso modo de vida” (ID. 24522824 - fl.64). Embora não se possa atribuir a colocação deste terceiro ao réu, o teor das discussões a que se destinava a comunidade “14/88” era, como demonstrado, bastante ofensivo em relação a judeus e negros, minorias perseguidas pela Alemanha Nazista ao ponto de serem presas e mortas em campos de concentração. Nesse sentido, imputar injustamente a um povo a qualidade de “escravagista”, distorcendo e depreciando tanto a sua história quanto a de outro povo, vai além de simplesmente proferir uma opinião singela e trivial. Em vista do caráter das discussões a que, como demonstrado, se dedicava o grupo, seria absurdo afirmar que a mensagem não tem cunho racista, consistente no objetivo de “praticar, induzir ou incitar a discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional.”

Ao contrário do que pretende fazer crer a defesa, da simples leitura da publicação é possível identificar-se a incitação de insurgência contra grupos de pessoas, quais sejam, os judeus. Identifica-se clara referência nas expressões “Judaico-americanismo negro”, “grupos de judeus”, “cães de guarda do sionismo”, entre outras, bem como a intenção do embargante de inferiorização e desqualificação do povo judeu retratando-os como escravagistas tanto em séculos passados quanto atualmente, o que revela a incitação à discriminação, com acentuado conteúdo racista, reforçada pelo contexto em que se inseriu.

Conforme já se reconheceu na jurisprudência dos Tribunais Superiores, comete o crime de racismo, quem emprega palavras pejorativas, contra determina pessoa, com a clara intenção de menosprezar ou diferenciar determinada coletividade, agrupamento ou raça.

Nesse sentido o seguinte precedente do Supremo Tribunal Federal:

HABEAS-CORPUS. PUBLICAÇÃO DE LIVROS: ANTI-SEMITISMO. RACISMO. CRIME IMPRESCRITÍVEL. CONCEITUAÇÃO. ABRANGÊNCIA CONSTITUCIONAL. LIBERDADE DE EXPRESSÃO. LIMITES. ORDEM DENEGADA. 1. Escrever, editar, divulgar e comerciar livros "fazendo apologia de idéias preconceituosas e discriminatórias" contra a comunidade judaica (Lei 7716/89, artigo 20, na redação dada pela Lei 8081/90) constitui crime de racismo sujeito às cláusulas de inafiançabilidade e imprescritibilidade (CF, artigo 5º, XLII). 2. Aplicação do princípio da prescritibilidade geral dos crimes: se os judeus não são uma raça, segue-se que contra eles não pode haver discriminação capaz de ensejar a exceção constitucional de imprescritibilidade. Inconsistência da premissa. 3. Raça humana. Subdivisão. Inexistência. Com a definição e o mapeamento do genoma humano, cientificamente não existem distinções entre os homens, seja pela segmentação da pele, formato dos olhos, altura, pêlos ou por quaisquer outras características físicas, visto que todos se qualificam como espécie humana. Não há diferenças biológicas entre os seres humanos. Na essência são todos iguais. 4. Raça e racismo. A divisão dos seres humanos em raças resulta de um processo de conteúdo meramente político-social. Desse pressuposto origina-se o racismo que, por sua vez, gera a discriminação e o preconceito segregacionista. 5. Fundamento do núcleo do pensamento do nacional-socialismo de que os judeus e os arianos formam raças distintas. Os primeiros seriam raça inferior, nefasta e infecta, características suficientes para justificar a segregação e o extermínio: inconciabilidade com os padrões éticos e morais definidos na Carta Política do Brasil e do mundo contemporâneo, sob os quais se ergue e se harmoniza o estado democrático. Estigmas que por si só evidenciam crime de racismo. Concepção atentatória dos princípios nos quais se erige e se organiza a sociedade humana, baseada na respeitabilidade e dignidade do ser humano e de sua pacífica convivência no meio social. Condutas e evocações aéticas e imorais que implicam repulsiva ação estatal por se revestirem de densa intolerabilidade, de sorte a afrontar o ordenamento infraconstitucional e constitucional do País. 6. Adesão do Brasil a tratados e acordos multilaterais, que energicamente repudiam quaisquer discriminações raciais, aí compreendidas as distinções entre os homens por restrições ou preferências oriundas de raça, cor, credo, descendência ou origem nacional ou étnica, inspiradas na pretensa superioridade de um povo sobre outro, de que são exemplos a xenofobia, "negrofobia", "islamafobia" e o anti-semitismo. 7. A Constituição Federal de 1988 impôs aos agentes de delitos dessa natureza, pela gravidade e repulsividade da ofensa, a cláusula de imprescritibilidade, para que fique, ad perpetuam rei memoriam, verberado o repúdio e a abjeção da sociedade nacional à sua prática. 8. Racismo. Abrangência. Compatibilização dos conceitos etimológicos, etnológicos, sociológicos, antropológicos ou biológicos, de modo a construir a definição jurídico-constitucional do termo. Interpretação teleológica e sistêmica da Constituição Federal, conjugando fatores e circunstâncias históricas, políticas e sociais que regeram sua formação e aplicação, a fim de obter-se o real sentido e alcance da norma. 9. Direito comparado. A exemplo do Brasil as legislações de países organizados sob a égide do estado moderno de direito democrático igualmente adotam em seu ordenamento legal punições para delitos que estimulem e propaguem segregação racial. Manifestações da Suprema Corte Norte-Americana, da Câmara dos Lordes da Inglaterra e da Corte de Apelação da Califórnia nos Estados Unidos que consagraram entendimento que aplicam sanções àqueles que transgridem as regras de boa convivência social com grupos humanos que simbolizem a prática de racismo. 10. A edição e publicação de obras escritas veiculando idéias anti-semitas, que buscam resgatar e dar credibilidade à concepção racial definida pelo regime nazista, negadoras e subversoras de fatos históricos incontroversos como o holocausto, consubstanciadas na pretensa inferioridade e desqualificação do povo judeu, equivalem à incitação ao discrímen com acentuado conteúdo racista, reforçadas pelas conseqüências históricas dos atos em que se baseiam. 11. Explícita conduta do agente responsável pelo agravo revelador de manifesto dolo, baseada na equivocada premissa de que os judeus não só são uma raça, mas, mais do que isso, um segmento racial atávica e geneticamente menor e pernicioso. 12. Discriminação que, no caso, se evidencia como deliberada e dirigida especificamente aos judeus, que configura ato ilícito de prática de racismo, com as conseqüências gravosas que o acompanham. 13. Liberdade de expressão. Garantia constitucional que não se tem como absoluta. Limites morais e jurídicos. O direito à livre expressão não pode abrigar, em sua abrangência, manifestações de conteúdo imoral que implicam ilicitude penal. 14. As liberdades públicas não são incondicionais, por isso devem ser exercidas de maneira harmônica, observados os limites definidos na própria Constituição Federal (CF, artigo 5º, § 2º, primeira parte). O preceito fundamental de liberdade de expressão não consagra o "direito à incitação ao racismo", dado que um direito individual não pode constituir-se em salvaguarda de condutas ilícitas, como sucede com os delitos contra a honra. Prevalência dos princípios da dignidade da pessoa humana e da igualdade jurídica. 15. "Existe um nexo estreito entre a imprescritibilidade, este tempo jurídico que se escoa sem encontrar termo, e a memória, apelo do passado à disposição dos vivos, triunfo da lembrança sobre o esquecimento". No estado de direito democrático devem ser intransigentemente respeitados os princípios que garantem a prevalência dos direitos humanos. Jamais podem se apagar da memória dos povos que se pretendam justos os atos repulsivos do passado que permitiram e incentivaram o ódio entre iguais por motivos raciais de torpeza inominável. 16. A ausência de prescrição nos crimes de racismo justifica-se como alerta grave para as gerações de hoje e de amanhã, para que se impeça a reinstauração de velhos e ultrapassados conceitos que a consciência jurídica e histórica não mais admitem. Ordem denegada.

(HC 82424, Relator(a): MOREIRA ALVES, Relator(a) p/ Acórdão: MAURÍCIO CORRÊA, Tribunal Pleno, julgado em 17-09-2003, DJ 19-03-2004 PP-00024  EMENT VOL-02144-03 PP-00524) – G.n.

Portanto, a conduta do embargante, ao vincular mensagem preconceituosa e discriminatória, em ambiente voltado especificamente para este fim (grupo em que se divulgavam ideias neonazistas), ultrapassou os limites do direito à liberdade de expressão e evidencia a presença do elemento subjetivo do tipo, configurando o crime de racismo. A detida análise dos autos revela que a postagem se deu de forma deliberada e, ainda que travestida de crítica às ações afirmativas, reflete a intenção de propagar mensagens discriminatórias contra o povo judeu, violando princípios fundamentais de dignidade e igualdade.

Conclui-se, dessa forma, pela tipicidade do delito e pela presença do dolo específico em sua conduta.

Por tais razões, deve prevalecer o voto vencedor em seu inteiro teor.

Posto isso, NEGO PROVIMENTO aos embargos infringentes, para que prevaleça o voto vencedor.

É o voto.

 

 

 

 

 

 

 

 

 



E M E N T A

 

 

PENAL. EMBARGOS INFRINGENTES. CRIME DE RACISMO. ART. 20, § 2, DA LEI 7.716/89. PUBLICAÇÃO EM REDE SOCIAL. CONTEÚDO DE ANTISSEMITISMO. DADOS HISTÓRICOS DISTORCIDOS. COMUNIDADE NEONAZISTA. DOLO ESPECÍFICO CONFIGURADO. PREVALÊNCIA DO VOTO VENCEDOR. EMBARGOS INFRINGENTES DESPROVIDOS.

1. A denúncia narra, em apertada síntese, que o embargante, praticou e incitou a discriminação de raça e cor, por intermédio de meio de comunicação social, porquanto postou mensagem de cunho racista no site de relacionamentos denominado “Orkut”, em comunidade destinada a difundir ideias nazistas.

2. A questão a ser dirimida nos presentes embargos infringentes diz com a existência do elemento subjetivo do tipo na conduta do embargante a sustentar a sua condenação nas penas do art. 20, parágrafo 2º, da Lei 7.716/89.

3. O dolo consiste na vontade livre e consciente de praticar quaisquer das condutas descritas no tipo penal, no caso do art. 20 da Lei 7.716/89, “praticar, induzir ou incitar a discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional”. O dolo específico, no caso, se consubstancia na intenção de promover preconceito ou discriminação contra um grupo de pessoas distinguíveis pelos critérios de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional.

 3.1. A alegação no sentido da falta de demonstração do dolo específico na conduta do embargante, que afirmou que suas declarações foram feitas em um contexto de crítica às políticas de cotas, não encontra respaldo no conjunto probatório. Pelo próprio ambiente em que inseridas (especificamente destinado a promover discurso de ódio contra afrodescendentes e judeus) não é razoável admitir-se que seriam apenas críticas sociais a determinada ação afirmativa, despidas de qualquer caráter discriminatório, já que a utilização da falsa associação dos judeus à imagem de escravagistas revela a intenção deliberada de gerar a sua segregação social.

4. Da simples leitura da publicação é possível identificar-se a incitação de insurgência contra grupos de pessoas, quais sejam, os judeus. Identifica-se clara referência ao citado grupo nas expressões “Judaico-americanismo negro”, “grupos de judeus”, “cães de guarda do sionismo”, entre outras, bem como a intenção do réu de inferiorização e desqualificação do povo judeu retratando-os como escravagistas tanto em séculos passados quanto atualmente, o que revela a incitação à discriminação, com acentuado conteúdo racista, reforçada pelo contexto em que se inseriu.

5. Conforme já se reconheceu na jurisprudência dos Tribunais Superiores, comete o crime de racismo, quem emprega palavras pejorativas, contra determina pessoa, com a clara intenção de menosprezar ou diferenciar determinada coletividade, agrupamento ou raça.

6. Portanto, a conduta do embargante, ao vincular mensagem preconceituosa e discriminatória, em ambiente voltado especificamente para este fim, ultrapassou os limites do direito à liberdade de expressão e evidencia a presença do elemento subjetivo do tipo, configurando o crime de racismo. A detida análise dos autos revela que a postagem se deu de forma deliberada e, ainda que travestida de crítica às ações afirmativas, reflete a intenção de propagar mensagens discriminatórias contra o povo judeu, violando princípios fundamentais de dignidade e igualdade.

7. Embargos infringentes a que se nega provimento.


  ACÓRDÃO

Vistos e relatados estes autos em que são partes as acima indicadas, a Quarta Seção, por maioria, decidiu negar provimento aos embargos infringentes, para que prevaleça o voto vencedor, nos termos do voto do Relator, no que foi acompanhado pelos Desembargadores Federais FAUSTO DE SANCTIS, PAULO FONTES, NINO TOLDO, MAURÍCIO KATO, HÉLIO NOGUEIRA e ANDRÉ NEKATSCHALOW, restando vencido o Desembargador Federal ALI MAZLOUM, que dava provimento aos embargos infringentes, nos termos do relatório e voto que ficam fazendo parte integrante do presente julgado.