RECURSO EM SENTIDO ESTRITO (426) Nº 5002620-24.2021.4.03.6181
RELATOR: Gab. 44 - DES. FED. HELIO NOGUEIRA
RECORRENTE: MINISTERIO PUBLICO FEDERAL - PR/SP
RECORRIDO: JOSE MANELLA NETO
Advogado do(a) RECORRIDO: DOUGLAS BONALDI MARANHAO - PR36010-A
OUTROS PARTICIPANTES:
RECURSO EM SENTIDO ESTRITO (426) Nº 5002620-24.2021.4.03.6181 RELATOR: Gab. 44 - DES. FED. HELIO NOGUEIRA RECORRENTE: MINISTERIO PUBLICO FEDERAL - PR/SP RECORRIDO: JOSE MANELLA NETO Advogado do(a) RECORRIDO: DOUGLAS BONALDI MARANHAO - PR36010-A OUTROS PARTICIPANTES: R E L A T Ó R I O Trata-se de recurso em sentido estrito interposto pelo Ministério Público Federal (ID 275425558), com fulcro no art. 581, inc. VIII, do Código de Processo Penal, contra decisão proferida pelo Juízo da 5ª Vara Federal Criminal de São Paulo/SP (ID 275425480), que declarou a extinção da punibilidade do denunciado JOSÉ MANELLA NETO e o absolveu sumariamente, com fundamento no art. 397, inc. IV, do Código de Processo Penal, em virtude da anistia (art. 107, inc. II, do Código Penal) concedida pela Lei 6.683/1979 e reafirmada pela EC 26/85. Conforme descreve a denúncia, o recorrido, no dia 29 de setembro de 1969, na sede do Instituto Médico Legal (IML) em São Paulo, atuando como médico legista, em concurso com o também médico legista Orlando Brandão (já falecido), teria omitido, em documento público (laudo de exame necroscópico), declaração que dele devia constar, com o fim de alterar a verdade sobre fato juridicamente relevante, contribuindo, assim, para a ocultação e a impunidade de crimes de tortura e homicídio perpetrados contra a vítima Carlos Roberto Zanirato, por parte da equipe do Delegado Sérgio Fernando Paranhos Fleury e de agentes do 4º Regimento de Infantaria de Quitaúna (Osasco/SP), bem como por outros agentes não identificados. Ademais, com tal conduta, o denunciado, entre o dia 29 de setembro de 1969 e a presente data, agindo em concurso com Orlando Brandão e outras pessoas não identificadas, teria ocultado o cadáver da referida vítima, cujo corpo ainda se encontra desaparecido. Ante tais fatos, o Ministério Público Federal denunciou José Manella Neto como incurso nas penas do art. 299, parágrafo único, combinado com o art. 61, inc. II, b, em concurso com o art. 211, na forma do art. 69, todos do Código Penal (ID 275424190). A denúncia foi recebida em 27 de outubro de 2021 (ID 275425192). Citado, o réu apresentou resposta à acusação (ID 275425343). O Juízo a quo rejeitou o pedido de absolvição sumária e determinou o prosseguimento do feito (ID 275425349). Contra essa decisão, o réu impetrou o habeas corpus nº 5009994-39.2023.4.03.0000, perante este Tribunal Regional Federal da 3ª Região, no qual foi concedida, em parte, a medida liminar pleiteada, para anular parcialmente a decisão que rejeitou o pleito de absolvição sumária, determinando a prolação de nova decisão com apreciação explícita das razões deduzidas no pedido de extinção da punibilidade do paciente com base na Lei da Anistia e no entendimento firmado pelo STF no julgamento da ADPF 153 (ID 275425479). Reapreciada a matéria, o Juízo de origem declarou a extinção da punibilidade do denunciado, sob o fundamento, em síntese, de que os delitos imputados foram praticados e consumados dentro do interregno previsto na Lei 6.683/1979, a qual concedeu anistia ampla e irrestrita aos crimes políticos e conexos praticados no período de 2 de setembro de 1961 a 15 de agosto de 1979, havendo o STF reconhecido, no julgamento da ADPF 153, a compatibilidade de tal diploma normativo com a ordem constitucional vigente. Por outro lado, foi reconhecida a prescrição da pretensão punitiva dos delitos imputados ao réu, ante o transcurso do prazo prescricional máximo previsto no Código Penal, de 20 (vinte) anos (art. 109, I), entre a data da consumação dos crimes (setembro de 1969) e o recebimento da denúncia (outubro de 2021), havendo sido, assim, pronunciada a incidência de causa extintiva da punibilidade e absolvido sumariamente o acusado (ID 275425480). Aduz o Ministério Público Federal, em seu recurso, que se encontram presentes os requisitos autorizadores do recebimento da denúncia e do regular prosseguimento do feito. Sustenta a impossibilidade de aplicação da anistia ao presente caso, tendo em vista: o caráter de crime de lesa-humanidade de que se reveste o conjunto de ações e omissões penalmente relevantes executadas pelo denunciado; as decisões, de caráter vinculante, da Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH), em que se afirmou expressamente a impossibilidade de invocação da Lei de Anistia brasileira a casos como o analisado nos autos; assim como a eficácia vinculante das referidas decisões da Corte IDH, cuja aplicabilidade não encontra óbice no julgamento proferido pelo STF na ADPF 153. Caso superada a questão da anistia, pugna pelo reconhecimento da imprescritibilidade das condutas imputadas ao denunciado. Pleiteia, assim, a reforma da decisão recorrida e o consequente prosseguimento da ação penal (ID 275425559). O réu apresentou contrarrazões (ID 275425579). Em sede de juízo de delibação, restou mantida a decisão recorrida (ID 275425580). A Procuradoria Regional da República da 3ª Região manifestou-se pelo provimento do recurso (ID 275920842). É o relatório. Dispensada a revisão, nos termos regimentais.
RECURSO EM SENTIDO ESTRITO (426) Nº 5002620-24.2021.4.03.6181 RELATOR: Gab. 44 - DES. FED. HELIO NOGUEIRA RECORRENTE: MINISTERIO PUBLICO FEDERAL - PR/SP RECORRIDO: JOSE MANELLA NETO Advogado do(a) RECORRIDO: DOUGLAS BONALDI MARANHAO - PR36010-A OUTROS PARTICIPANTES: V O T O O Ministério Público Federal denunciou José Manella Neto como incurso nas penas do art. 299, parágrafo único, combinado com o art. 61, inc. II, b, em concurso com o art. 211, na forma do art. 69, todos do Código Penal, sob o fundamento de que o acusado, no dia 29 de setembro de 1969, na sede do Instituto Médico Legal (IML) em São Paulo, atuando como médico legista, em concurso com o também médico legista Orlando Brandão (já falecido), teria omitido, em documento público (laudo de exame necroscópico), declaração que dele devia constar, com o fim alterar a verdade sobre fato juridicamente relevante, contribuindo, assim, para a ocultação e a impunidade de crimes de tortura e homicídio perpetrados contra a vítima Carlos Roberto Zanirato, por parte da equipe do Delegado Sérgio Fernando Paranhos Fleury e de agentes do 4º Regimento de Infantaria de Quitaúna (Osasco/SP), bem como por outros agentes não identificados. Ademais, com tal conduta, o denunciado, entre o dia 29 de setembro de 1969 e a presente data, agindo em concurso com Orlando Brandão e outras pessoas não identificadas, teria ocultado o cadáver da referida vítima, cujo corpo ainda se encontra desaparecido. A decisão recorrida declarou a extinção da punibilidade do denunciado, sob o entendimento, em síntese, de que os delitos imputados foram praticados e consumados dentro do interregno previsto na Lei 6.683/1979, a qual concedeu anistia aos crimes políticos e conexos praticados no período de 2 de setembro de 1961 a 15 de agosto de 1979, havendo o STF reconhecido, no julgamento da ADPF 153, a compatibilidade de tal diploma normativo com a ordem constitucional vigente. Por outro lado, foi reconhecida a prescrição da pretensão punitiva dos delitos imputados, ante a superação do prazo prescricional máximo previsto no Código Penal, de 20 (vinte) anos (art. 109, I), no período compreendido entre a data de consumação dos crimes (setembro de 1969) e o recebimento da denúncia (outubro de 2021), havendo sido, assim, pronunciada a incidência de causa extintiva de punibilidade e absolvido sumariamente o acusado (ID 275425480). O presente recurso em sentido estrito deve ser provido, pelos fundamentos que passo a analisar topicamente. Do controle de convencionalidade Inicialmente, é relevante anotar que, no ano de 2022, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ), visando à implementação do controle de convencionalidade como instrumento da interpretação internacionalista dos direitos humanos no Brasil, instituiu a Recomendação nº 123, de 7 de janeiro de 2022, e estabeleceu o “Pacto Nacional do Judiciário pelos Direitos Humanos”. A referida Recomendação consignou, em seus “considerandos”, que a jurisprudência da Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH) afirma “o dever de controlar a convencionalidade pelo Poder Judiciário, no sentido de que cabe aos juízes e juízas aplicar a norma mais benéfica à promoção dos direitos humanos no equilíbrio normativo impactado pela internacionalização cada vez mais crescente e a necessidade de se estabelecer um diálogo entre os juízes”, bem como apontou que “cabe aos juízes extrair o melhor dos ordenamentos buscando o caminho para o equilíbrio normativo impactado pela internacionalização cada vez mais crescente e a necessidade de se estabelecer um diálogo entre os juízes”. Ancorando-se em tais pressupostos, o CNJ recomendou aos órgãos do Poder Judiciário que observem os “tratados e convenções internacionais de direitos humanos em vigor no Brasil e a utilização da jurisprudência da Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH), bem como a necessidade de controle de convencionalidade das leis internas”, e que garantam “a priorização do julgamento dos processos em tramitação relativos à reparação material e imaterial das vítimas de violações a direitos humanos determinadas pela Corte Interamericana de Direitos Humanos em condenações envolvendo o Estado brasileiro e que estejam pendentes de cumprimento integral”. Por sua vez, o Pacto Nacional do Judiciário pelos Direitos Humanos consiste na “adoção de medidas variadas voltadas para a concretização dos Direitos Humanos no âmbito do Poder Judiciário” e tem por objetivo promover a “cultura de direitos humanos” no sistema de justiça, adotando-se por base a implementação do uso da jurisprudência internacional da matéria pelos órgãos judicantes, assim como a experiência promovida pela criação, pelo CNJ, da Unidade de Monitoramento e Fiscalização das Decisões da Corte Interamericana de Direitos Humanos (Resolução nº 364/2021), que se destina a verificar o cumprimento das decisões da Corte IDH no Brasil. Infere-se, em suma, que, por meio da Recomendação nº 123/2022 e do Pacto Nacional do Judiciário pelos Direitos Humanos, o CNJ exorta os órgãos do Poder Judiciário brasileiro a observar, em sua atividade judicante, os tratados internacionais de direitos humanos, assim como a submeter os diplomas normativos internos ao crivo do, assim denominado pela doutrina, “controle de convencionalidade de matriz internacional”, tendo em vista a referência expressa à utilização da jurisprudência da Corte IDH. Com base em tais premissas e tendo por orientação a efetiva implementação do controle judicial de convencionalidade, nos moldes em que preconizado pelas referidas orientações do CNJ, passo à análise da matéria submetida à apreciação no caso em tela. Primeiramente, no que tange à construção jurisprudencial acerca da matéria versada nos autos, releva lembrar que, no ano de 2008, o Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) propôs, perante o Supremo Tribunal Federal (STF), a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 153, a qual tinha por objeto promover uma interpretação do parágrafo único do art. 1º da Lei 6.683/1979 (Lei da Anistia) conforme à Constituição de 1988, de modo a se declarar que a anistia concedida pela mencionada lei aos crimes políticos ou conexos praticados durante a ditadura militar não se estenderia aos crimes comuns perpetrados pelos agentes da repressão, civis ou militares, contra opositores políticos. O STF, ao proceder ao julgamento da ADPF 153, em 28 de abril de 2010 (Rel. Min. Eros Grau, Tribunal Pleno, DJe 06/08/2010), julgou improcedente o pedido e decidiu que a Lei da Anistia alcançaria, de forma ampla e irrestrita, os agentes da ditadura militar e os delitos por eles praticados, obstando, assim, a persecução criminal pelos graves crimes perpetrados durante o regime de exceção. Paralelamente, naquele momento encontrava-se submetido à apreciação da Corte IDH um processo movido, em 26 de março de 2009, pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos (Comissão IDH) contra o Brasil, denominado Caso Gomes Lund (Guerrilha do Araguaia), em que se postulava o reconhecimento do dever de investigação, persecução e punição penal, pelo Estado brasileiro, dos responsáveis pelas graves violações de direitos humanos empreendidas durante o regime militar contra a população civil, adotando-se por base a remansosa jurisprudência da Corte IDH refratária às leis de anistia. Apreciando a postulação deduzida no Caso Gomes Lund, a Corte IDH, poucos meses após a decisão do STF na ADPF 153, em 24 de novembro de 2010, condenou o Brasil a dar cumprimento ao seu dever, à luz da Convenção Americana de Direitos Humanos, de promover a completa investigação, persecução e punição criminal dos agentes da repressão política da ditadura militar, determinando o afastamento dos efeitos jurídicos da Lei da Anistia em relação aos responsáveis por tais crimes, sob o fundamento de que a aludida norma violou o direito à justiça das vítimas e seus familiares, previsto implicitamente nos arts. 8º e 25 da Convenção Americana de Direitos Humanos. Neste ponto, mostra-se elucidativa a transcrição do seguinte excerto da decisão proferida pela Corte IDH: “172. A Corte Interamericana considera que a forma na qual foi interpretada e aplicada a Lei de Anistia aprovada pelo Brasil (pars. 87, 135 e 136 supra) afetou o dever internacional do Estado de investigar e punir as graves violações de direitos humanos, ao impedir que os familiares das vítimas no presente caso fossem ouvidos por um juiz, conforme estabelece o artigo 8.1 da Convenção Americana, e violou o direito à proteção judicial consagrado no artigo 25 do mesmo instrumento, precisamente pela falta de investigação, persecução, captura, julgamento e punição dos responsáveis pelos fatos, descumprindo também o artigo 1.1 da Convenção. Adicionalmente, ao aplicar a Lei de Anistia impedindo a investigação dos fatos e a identificação, julgamento e eventual sanção dos possíveis responsáveis por violações continuadas e permanentes, como os desaparecimentos forçados, o Estado descumpriu sua obrigação de adequar seu direito interno, consagrada no artigo 2 da Convenção Americana. 173. A Corte considera necessário enfatizar que, à luz das obrigações gerais consagradas nos artigos 1.1 e 2 da Convenção Americana, os Estados Parte têm o dever de adotar as providências de toda índole, para que ninguém seja privado da proteção judicial e do exercício do direito a um recurso simples e eficaz, nos termos dos artigos 8 e 25 da Convenção. Em um caso como o presente, uma vez ratificada a Convenção Americana, corresponde ao Estado, em conformidade com o artigo 2 desse instrumento, adotar todas as medidas para deixar sem efeito as disposições legais que poderiam contrariá-lo, como são as que impedem a investigação de graves violações de direitos humanos, uma vez que conduzem à falta de proteção das vítimas e à perpetuação da impunidade, além de impedir que as vítimas e seus familiares conheçam a verdade dos fatos. 174. Dada sua manifesta incompatibilidade com a Convenção Americana, as disposições da Lei de Anistia brasileira que impedem a investigação e sanção de graves violações de direitos humanos carecem de efeitos jurídicos. Em consequência, não podem continuar a representar um obstáculo para a investigação dos fatos do presente caso, nem para a identificação e punição dos responsáveis, nem podem ter igual ou similar impacto sobre outros casos de graves violações de direitos humanos consagrados na Convenção Americana ocorridos no Brasil.” Consoante se extrai dos fundamentos da sentença internacional em análise, a decisão veiculou um comando judicial expressamente impositivo em relação à obrigação do Brasil de promover a investigação, persecução e punição criminal dos responsáveis pelos crimes praticados na ditadura. O mesmo entendimento veio a ser posteriormente reiterado pela Corte IDH, em março de 2018, no julgamento do Caso Vladimir Herzog, no qual foi novamente reconhecida a responsabilidade internacional do Brasil por violação ao dever cogente de investigar, processar e punir os agentes da repressão que atuaram durante o regime militar, e cujo cumprimento não poderia ser obstado pela aplicação da Lei da Anistia. Nesta decisão, a Corte IDH reafirmou sua jurisprudência no sentido de que as condutas praticadas no contexto de graves violações de direitos humanos promovidas, como política sistemática e generalizada, por agentes públicos contra a população civil, constituem crimes contra a humanidade, cuja persecução e punição incumbe ao Estado e em relação à qual não são oponíveis os óbices da prescrição ou de qualquer imunidade ou anistia. Confira-se, a respeito, os seguintes trechos da decisão proferida: “232. Desde sua primeira sentença, esta Corte destacou a importância do dever estatal de investigar e punir as violações de direitos humanos. A obrigação de investigar e, oportunamente, processar e punir assume particular importância diante da gravidade dos delitos cometidos e da natureza dos direitos lesados, especialmente em vista da proibição das execuções extrajudiciais e tortura como parte de um ataque sistemático contra uma população civil. A particular e determinante intensidade e importância dessa obrigação em casos de crimes contra a humanidade significa que os Estados não podem invocar: i) a prescrição; ii) o princípio ne bis in idem; iii) as leis de anistia; assim como iv) qualquer disposição análoga ou excludente similar de responsabilidade, para se escusar de seu dever de investigar e punir os responsáveis. Além disso, como parte das obrigações de prevenir e punir crimes de direito internacional, a Corte considera que os Estados têm a obrigação de cooperar e podem v) aplicar o princípio de jurisdição universal a respeito dessas condutas. (…) 269. Em suma, a Corte constata que, para o caso concreto, a aplicação da figura da prescrição como obstáculo para a ação penal seria contrária ao Direito Internacional e, em especial, à Convenção Americana sobre Direitos Humanos. Para esta Corte, é claro que existe suficiente evidência para afirmar que a imprescritibilidade de crimes contra a humanidade era uma norma consuetudinária do direito internacional plenamente cristalizada no momento dos fatos, assim como na atualidade. (….) 292. Desse modo, é evidente que, desde sua aprovação, a Lei de Anistia brasileira se refere a delitos cometidos fora de um conflito armado não internacional e carece de efeitos jurídicos porque impede a investigação e a punição de graves violações de direitos humanos e representa um obstáculo para a investigação dos fatos do presente caso e a punição dos responsáveis. No presente caso, a Corte considera que essa Lei não pode produzir efeitos jurídicos e ser considerada validamente aplicada pelos tribunais internos. Já em 1992, quando se encontrava em plena vigência a Convenção Americana para o Brasil, os juízes que intervieram na ação de habeas corpus deveriam ter realizado um “controle de convencionalidade” ex officio entre as normas internas e a Convenção Americana, evidentemente no âmbito de suas devidas competências e das regulamentações processuais respectivas. Com ainda mais razão, as considerações acima se aplicavam ao caso sub judice, ao se tratar de condutas que chegaram ao limiar de crimes contra a humanidade”. Com base em tais fundamentos, é possível inferir que os crimes imputados ao denunciado no presente caso, cometidos no contexto de uma política de violação sistemática de direitos humanos durante o regime militar, constituem delitos cuja persecução consubstancia dever cogente do Estado brasileiro e em relação aos quais não são invocáveis a anistia ou a prescrição como causas extintivas da punibilidade, seja em virtude da qualificação de tais condutas como crimes contra a humanidade, seja por força do eficácia vinculante das sentenças proferidas pela Corte IDH em relação ao Brasil no julgamento dos Casos Gomes Lund e Vladimir Herzog. Neste ponto, importa sublinhar que a submissão do Estado brasileiro à jurisdição da Corte IDH não constitui violação à sua soberania, mas, em contrário, serve a concretizá-la, tendo em vista que o reconhecimento da competência jurisdicional contenciosa de um Tribunal Internacional constitui manifestação oriunda de um ato soberano do Estado signatário, que, exercendo-o, promove sua adesão à jurisdição internacional. No caso, o Brasil ratificou a Convenção Americana sobre Direitos Humanos no ano de 1992 (Decreto nº 678/1992) e reconheceu, por meio da ratificação da cláusula facultativa de jurisdição obrigatória prevista no art. 62 da referida Convenção (Decreto nº 4.463/2002), a competência da Corte IDH em relação a fatos posteriores a 10 de dezembro de 1998 – dentre os quais se incluem aqueles que, mesmo praticados anteriormente a tal data, configuram delitos permanentes e ainda não exauridos, tal como no caso em tela –, de modo que a observância e efetiva implementação das decisões prolatadas pelo referido Tribunal Internacional constitui ato de concretização da soberania brasileira e de observância das obrigações dela decorrentes. Ressalta-se que o dever de cumprimento de boa-fé das obrigações internacionais voluntariamente assumidas pelos entes estatais (pacta sunt servanda) constitui princípio básico de regência da responsabilidade internacional dos Estados. Como é cediço, as normas convencionais vinculam todos os Poderes e órgãos dos Estados-partes, aos quais incumbe assegurar o efetivo cumprimento das obrigações internacionais contraídas e seus efeitos próprios no plano de seu direito interno, sendo vedada, nos termos do art. 27 da Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados, a invocação de razões de ordem interna para justificar o inadimplemento de um tratado. Por conseguinte, eventual negativa de eficácia à Convenção Americana sobre Direitos Humanos ou às decisões da Corte IDH somente poderia ocorrer mediante prévia declaração de inconstitucionalidade do ato de incorporação das respectivas normas internacionais ao Direito interno e consequente denúncia integral da referida Convenção (art. 44.1 e 75 da Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados), o que não se verifica na situação analisada. Impõe-se, portanto, o efetivo cumprimento das decisões proferidas pela Corte IDH nos Casos Gomes Lund e Vladimir Herzog vs. Brasil. Inquestionavelmente, contudo, mostra-se impositiva a necessidade de compatibilização entre os efeitos vinculantes da decisão proferida pelo STF, em sede de controle concentrado de constitucionalidade, na ADPF 153, e a obrigatoriedade de implementação do comando exarado pela Corte IDH. Não obstante a indubitável divergência de soluções aplicadas ao caso pelas decisões proferidas pela Corte Constitucional brasileira e pelo Tribunal Interamericano, a análise criteriosa da questão conduz à conclusão de que o conflito entre as jurisdições é apenas aparente, devendo a controvérsia ser resolvida pelos critérios estruturados pela elucidativa teoria do duplo controle ou crivo de direitos humanos. Conforme estabelecem as diretrizes desta construção dogmática, as jurisdições do STF e da Corte IDH, embora igualmente incumbidas da tutela dos direitos humanos, não se sobrepõem, mas desempenham, no âmbito de suas respectivas atividades judicantes, controles de naturezas distintas sobre os atos e normas do poder público submetidos à sua apreciação, sendo o Poder Judiciário interno responsável pelo controle de constitucionalidade e, o Tribunal Internacional, pelo controle de convencionalidade. É correto afirmar, portanto, que vige no ordenamento jurídico brasileiro um sistema de duplo controle ou dupla garantia dos direitos humanos, por meio do qual todos os atos e normas do Poder Público devem se submeter, paralela e simultaneamente, a dois crivos de validade, quais sejam, o controle de constitucionalidade e o controle de convencionalidade, cada um dos quais exercido, de modo dissociado, pelo STF e pela Corte IDH, respectivamente. Inexiste, portanto, qualquer espécie de conflito ou sobreposição entre as esferas decisórias das referidas instâncias jurisdicionais, as quais atuam em âmbitos diversos, com base em arcabouços jurídico-normativos distintos. No caso em análise, a solução a ser adotada deve orientar-se por tais parâmetros, cuja observância conduz à conclusão de que, em face da sistemática do duplo controle dos atos normativos internos, a Lei 6.683/79 (Lei da Anistia) deve ser reputada compatível com a Constituição da República de 1988, em observância à decisão proferida pelo STF, porém inconvencional à luz da Convenção Americana de Direitos Humanos, em conformidade com a decisão exarada pela Corte IDH, não devendo tal diploma subsistir, portanto, na ordem jurídica. A respeito da matéria, destaca-se, na doutrina, o magistério de André de Carvalho de Ramos: “Caso paradigmático do ‘beco sem saída’ da interpretação nacionalista dos tratados ocorreu no chamado ‘Caso da Guerrilha do Araguaia’. Pela primeira vez, um tema (superação – ou não – da anistia a agentes da ditadura militar brasileira) foi analisado pelo Supremo Tribunal Federal e pela Corte Interamericana de Direitos Humanos. (...) A ADPF 153 foi julgada em 28 de abril de 2010, tendo o STF decidido que a Lei da Anistia alcança os agentes da ditadura militar, tornando impossível a persecução criminal pelas graves violações de direitos humanos ocorridas na época dos ‘anos de chumbo’. Chama a atenção que, novamente, ignorou-se a interpretação internacional da Convenção Americana de Direitos Humanos, de responsabilidade da Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH). Contudo, em 24 de novembro de 2010, meses após a decisão do STF, a Corte IDH condenou o Brasil no Caso Gomes Lund, exigindo que fosse feita completa investigação, persecução e punição criminal aos agentes da repressão política durante a ditadura militar, mandando o Brasil desconsiderar, então, a anistia para tais indivíduos. Como cumprir a decisão da Corte IDH? Inicialmente, parto da seguinte premissa: não há conflito insolúvel entre as decisões do STF e da Corte IDH, uma vez que ambos os tribunais têm a incumbência de proteger os direitos humanos. Adoto assim a teoria do duplo controle ou crivo de direitos humanos, que reconhece a atuação em separado do controle de constitucionalidade (STF e juízos nacionais) e do controle de convencionalidade internacional (Corte de San José e outros órgãos de direitos humanos do plano internacional). Os direitos humanos, então, no Brasil possuem uma dupla garantia: o controle de constitucionalidade e o controle de convencionalidade internacional. Qualquer ato ou norma deve ser aprovado pelos dois controles, para que sejam respeitados os direitos no Brasil. Esse duplo controle parte da constatação de uma verdadeira separação de atuações, na qual inexistiria conflito real entre as decisões porque cada Tribunal age em esferas distintas e com fundamentos diversos. De um lado, o STF, que é o guardião da Constituição e exerce o controle de constitucionalidade. Por exemplo, na ADPF 153 (controle abstrato de constitucionalidade), a maioria dos votos decidiu que o formato amplo de anistia foi recepcionado pela nova ordem constitucional. Por outro lado, a Corte de San José é guardiã da Convenção Americana de Direitos Humanos e dos tratados de direitos humanos que possam ser conexos. Exerce, então, o controle de convencionalidade de matriz internacional. Para a Corte IDH, a Lei da Anistia não é passível de ser invocada pelos agentes da ditadura. Com base nessa separação, é possível dirimir o conflito aparente entre uma decisão do STF e da Corte de San José. Assim, ao mesmo tempo em que se respeita o crivo de constitucionalidade do STF, deve ser incorporado o crivo de convencionalidade da Corte Interamericana de Direitos Humanos. Todo ato interno (não importa a natureza ou origem) deve obediência aos dois crivos. Caso não supere um deles (por violar direitos humanos), deve o Estado envidar todos os esforços para cessar a conduta ilícita e reparar os danos causados. No caso da ADPF 153, houve o controle de constitucionalidade. No caso Gomes Lund, houve o controle de convencionalidade. A anistia aos agentes da ditadura, para subsistir, deveria ter sobrevivido intacta aos dois controles, mas só passou (com votos contrários, diga-se) por um, o controle de constitucionalidade. Foi destroçada no controle de convencionalidade. Cabe, agora, aos órgãos internos (Ministério Público, Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário) cumprirem a sentença internacional”. (RAMOS, André de C. Curso de direitos humanos. Editora Saraiva, 2024. E-book, p. 344-345. ISBN 9788553623068) – g.n. De rigor, portanto, o reconhecimento da Lei 6.683/79 como recepcionada pela ordem constitucional vigente, em observância ao efeito vinculante e à eficácia erga omnes da decisão proferida pelo STF, em sede de controle concentrado de constitucionalidade, na ADPF 153 (art. 102, §§ 1º e 2º, da Constituição da República; art. 10, caput e § 3º, da Lei 9.882/1999; e art. 927, inc. I, do Código de Processo Civil), porém inconvencional, por força da sentença internacional proferida pela Corte IDH no julgamento do Caso Gomes Lund (Guerrilha do Araguaia) vs. Brasil, dotada de eficácia vinculante (art. 5º, § 2º, da Constituição da República e art. 68.1 da Convenção Americana de Direitos Humanos). Consigna-se que este entendimento já foi adotado pela 11ª Turma desta Corte Regional, em precedente que versava sobre hipótese semelhante à analisada nestes autos: PENAL E PROCESSO PENAL. RECURSO EM SENTIDO ESTRITO NO QUAL SE BUSCA A REFORMA DE R. DECISÃO QUE RECONHECEU A PRESCRIÇÃO DA PRETENSÃO PUNITIVA EM CONTEXTO EM QUE A IMPUTAÇÃO REFERE-SE A DELITO – FALSIDADE IDEOLÓGICA – PERPETRADO EM CONTEXTO DE UM ATAQUE SISTEMÁTICO E GENERALIZADO À POPULAÇÃO CIVIL PELO APARATO ESTATAL EXISTENTE NO PERÍODO DITATORIAL BRASILEIRO. POSSIBILIDADE DE SE RECONHECER COMO SENDO “CRIME CONTRA A HUMANIDADE” A PERPETRAÇÃO DO DELITO DE “FALSIDADE IDEOLÓGICA” NO CONTEXTO DE ATAQUE DESUMANO. REGIME JURÍDICO APLICÁVEL À HIPÓTESE DE RECONHECIMENTO DE QUE OS DELITOS PERPETRADOS NO CONTEXTO DE UM ATAQUE SISTEMÁTICO E GENERALIZADO À POPULAÇÃO CIVIL PELO APARATO ESTATAL EXISTENTE NO PERÍODO DITATORIAL BRASILEIRO CONFIGURAM “CRIME CONTRA A HUMANIDADE”: AFASTAMENTO DAS CAUSAS EXTINTIVAS DE PUNIBILIDADE DA ANISTIA E DA PRESCRIÇÃO DA PRETENSÃO PUNITIVA. - Os fatos imputados ao denunciado guardam relação com o potencial falseamento da verdade que teria sido levado a efeito nos idos de 04 de setembro de 1973 quando, na sede do Instituto Médico Legal (IML) em São Paulo, referida pessoa (ao lado de outro médico legista já falecido), visando assegurar a ocultação e a impunidade de 02 (dois) pretéritos delitos de homicídio (que teriam sido executados pelo Delegado Sérgio Fernando Paranhos Fleury, pelo Agente Policial Luiz Martins de Miranda Filho, pelo Coronel Antônio Cúrcio Neto e por Gabriel Antônio Duarte Ribeiro, além de terceiros não identificados, em detrimento de Manoel Lisboa de Moura e Emmanuel Bezerra dos Santos), teria omitido em documentos públicos (02 – dois – Laudos de Exames Necroscópicos) declaração que neles deveria constar com o desiderato de alterar a verdade sobre fato juridicamente relevante (qual seja, a submissão, por parte daqueles que foram mortos, a sevícias e a torturas que teriam sido perpetradas em contexto de um ataque sistemático e generalizado à população civil pelo aparato estatal existente no período ditatorial brasileiro). - O MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL recorre da r. decisão que declarou extinta a punibilidade de denunciado em relação aos crimes do art. 299, caput, do Código Penal, em razão do assentamento da prescrição da pretensão punitiva (nos termos do art. 107, IV, c.c. art. 109, III, ambos do Código Penal). Para tanto, entendeu a autoridade judicante que o crime de “falsidade ideológica” não encontraria respaldo no princípio da legalidade quando incidente na seara internacional na justa medida em que o Direito Internacional não elencaria, dentre o rol dos “crimes contra a humanidade”, a infração penal que o Parquet federal extraiu das condutas descritas neste feito – nessa toada, à luz da ausência da pecha de “crime contra a humanidade” ao delito de “falsidade ideológica”, haveria que incidir, na espécie, as regras de direito interno a permitir o reconhecimento da prescrição da pretensão punitiva ante o transcurso de lapso superior ao previsto na legislação se se levar em conta a data dos fatos e o momento em que potencialmente a denúncia poderia ser recebida - Os “falsos ideológicos” em tese imputados ao denunciado, segundo visão acusatória, decorreriam exatamente da suposta omissão, em documentos públicos (quais sejam, Laudos de Exame de Corpo de Delito), de declarações que neles deviam constar (vale dizer, as diversas marcas decorrentes das sessões de tortura que Manoel Lisboa de Moura e Emmanuel Bezerra dos Santos teriam suportado) com o especial fim de alterar a verdade sobre fato juridicamente relevante (veiculação de uma “versão oficial” mais palatável acerca daquelas mortes), tudo isso em um cenário subjacente relacionado ao ataque sistemático e generalizado que civis estavam sendo vítimas pela repressão estatal. Em última instância, as supostas declarações falsas, ao que consta dos autos, tinham potencialmente a finalidade de fechar e de encobrir (frise-se novamente: dar a “versão oficial”) os desmandos ditatoriais pretéritos que teriam defenestrado a vida das vítimas Manoel Lisboa de Moura e Emmanuel Bezerra dos Santos (consistentes em supostas violentas e desumanas sessões de tortura), sendo, assim, inconteste o vínculo de conexidade com a plêiade de infrações que teriam acabado ceifando a vida dos indicados dissidentes políticos ao regime então vigente - Ainda que fosse possível suplantar o raciocínio tecido acima, o posicionamento encampado pelo magistrado federal monocrático também não subsistiria tendo como supedâneo a inferência de que os Tratados e as Convenções Internacionais aplicáveis à matéria também permitiriam enquadrar os delitos de “falso ideológico” (em tese perpetrados pelo denunciado) como “crimes contra a humanidade” de molde a se vislumbrar o implemento do Princípio da Legalidade (tanto internacional – a fim de qualificar a conduta como “crime contra a humanidade” – com internamente – como mecanismo a implementar a tipicidade estrita em matéria penal) - Isso porque o primeiro marco internacional que merece menção sobre o assunto ora em apreciação refere-se à “Carta de Londres” (de 1945), que instituiu o “Tribunal Internacional de Nuremberg” (com o objetivo de processar e de punir os crimes de guerra executados pelos países integrantes do “Eixo Europeu” na 2º Guerra Mundial). Assim, desde o ano de 1945 (portanto, desde antes do período ditatorial brasileiro), a Comunidade Internacional já tinha tipificado condutas que se subsumiriam ao conceito de “crimes contra a humanidade” (destacando-se a execução de assassinatos e de perseguições baseadas em critérios políticos), havendo, ademais, a aposição de uma cláusula de conteúdo aberto (“ou outro ato desumano contra a população”) com o escopo de se buscar ao máximo afastar condutas que, apesar de não expressamente elencadas no diploma internacional, possuiriam nitidamente o condão de transparecer ofensas de lesa-humanidade. Desta feita, mostra-se plenamente crível vislumbrar-se, ainda que não textualmente escrito na “Carta de Londres” (de 1945), que tais “falsos”, por serem o último ato de uma cadeia de condutas, em tese, criminosas e deveras ofensiva aos Direitos Humanos, subsumiriam a rubrica “crimes contra a humanidade” na vertente de “homicídio” (no cenário derradeiro necessário para a sua ocultação) ou, ao menos, sob a expressão “outro ato desumano levado a efeito contra a população civil” (na justa medida em que o falseamento da verdade em questões ligadas ao direito de personalidade das pessoas, especialmente o contexto em que morreram ou, na realidade, foram mortas, já teria o condão de indicar o quão desumano foi o tratamento conferido no período em que o Brasil esteve sob ditadura militar) - A aferição de compatibilidade de uma lei editada pelo Parlamento, nos dias atuais, passa por dois estágios de verificação: (a) o primeiro deles em face da Constituição Federal tendo como base a ideia regente contida no Princípio da Supremacia da Constituição (cabendo ressaltar que, acaso a lei não esteja de acordo com o Texto Magno, padecerá de vício que a tornará inconstitucional, seja sob o aspecto formal, seja sob o aspecto material) e (b) o segundo deles à luz dos Tratados Internacionais de Direitos Humanos cuja natureza jurídica seja supralegal (como ocorre, por exemplo, com o Pacto de São José da Costa Rica), sendo imperioso destacar que eventual incompatibilidade levará ao reconhecimento da existência de vício de inconvencionalidade. - O C. Supremo Tribunal Federal teve a oportunidade de analisar a Lei de Anistia quando do julgamento da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 153. Todavia, referido precedente não teve o condão de exaurir o exame do alcance e da validade da anistia versada na Lei nº 6.683/1979 na justa medida em que resta pendente de enfretamento embargos de declaração nos quais se questiona a extensão material da anistia aos crimes de homicídio, de estupro e de tortura. Ademais, a C. Corte Suprema ainda deverá apreciar o mérito da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 320 na qual se propugna a inaplicabilidade da Lei de Anistia aos crimes de grave violação de direitos humanos cometidos por agentes públicos - A Constituição de 1967 (então em vigor quando da edição da Lei nº 6.683/1979) trazia, em seu art. 150, um rol de direitos e de garantias fundamentais que serviam para proteger o cidadão da atuação estatal, objetivando a imposição de limites na atuação dos Poderes como cláusula inquebrantável de intangibilidade do ser humano como corolário da dignidade da pessoa humana. Verifica-se, portanto, na senda dos crimes praticados por agentes estatais contra a população civil valendo-se, para tanto, do aparato repressor institucionalizado no escopo de combater subversivos ao regime político-militar, nítida violação a tais garantias fundamentais porquanto os atos estatais levados a efeito mostraram-se como transgressores dos limites insculpidos na Ordem Constitucional vigente, cabendo destacar que era pressuposto que os representantes do Estado se portassem de modo a respeitar o direito posto - Fazendo um juízo de validade da Lei de Anistia tendo como base os Tratados Internacionais de Direitos Humanos e partindo da premissa de que referidos atos normativos possuem atualmente status de normas supralegais (entendimento sufragado pelo C. Supremo Tribunal Federal a partir do julgamento dos RE's 466.343 e 349.703), nota-se a ausência de compatibilidade da Lei nº 6.683/1979 com diversas Convenções afetas ao tema de Direitos Humanos, o que chancela sua inconvencionalidade no âmbito de aferição que tem por pressuposto a nova conformação da pirâmide normativa kelseniana - Portanto, levando em consideração a submissão da Lei de Anistia ao controle de convencionalidade, bem como o reconhecimento de responsabilidade do Estado brasileiro em promover a persecução penal contra os acusados de graves violações de Direitos Humanos durante a ditadura militar brasileira, mostra-se imperativo assentar que o respeito aos Direitos Humanos deve ser considerado como norma cogente e inafastável do Direito Internacional, respeito este do qual o Estado brasileiro não poderia dispor, seja por ato de vontade (anistia), seja por inércia (prescrição), sob pena de subverter sua própria Ordem Constitucional ou os Tratados e as Convenções Internacionais assinados em matéria de Direitos Humanos - Dado provimento ao Recurso em Sentido Estrito interposto pelo MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL (para o desiderato de afastar o reconhecimento da prescrição da pretensão punitiva sufragada pelo magistrado monocrático e, como consequência, determinar o retorno do feito ao 1º grau de jurisdição para que tenha continuidade o juízo de admissibilidade da exordial acusatória então ofertada). (TRF-3 - ReSe 50017562020204036181/SP, Rel. Des. Fed. Fausto Martin de Sanctis, 11ª Turma, DJe: 28/07/2021) – g.n. No mesmo sentido já se pronunciou o Tribunal Regional Federal 2ª Região, em situação análoga: HABEAS CORPUS - TRANCAMENTO AÇÃO PENAL - HOMICÍDIO - OCULTAÇÃO DE CADÁVER - FRAUDE PROCESSUAL - QUADRILHA ARMADA - SUJEITO ATIVO MILITARES - COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA FEDERAL - ART. 109 DA CF/88 ART. 82 DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL MILITAR - ANISTIA - PRESCRIÇÃO - INOCORRÊNCIA - CRIMES PERMANENTES - CRIMES CONTRA A HUMANIDADE. I - Hipótese em que a denúncia narra conjunto de fatos que compreendem sequestro, tortura, morte e ocultação de cadáver do Deputado Federal RUBENS BEYRODT PAIVA, praticado por militares em 1971, com o intuito de reprimir opositores ao regime então em vigor; II - O art. 109 da CF/88 é expresso no sentido de competir à Justiça Federal processar e julgar os crimes políticos e as infrações penais praticadas em detrimento de bens, serviços ou interesse da União ou de suas entidades autárquicas ou empresas públicas, bem como as causas relativas a direitos humanos, havendo previsão expressa de que "nas hipóteses de grave violação de direitos humanos, o Procurador-Geral da República, com a finalidade de assegurar o cumprimento de obrigações decorrentes de tratados internacionais de direitos humanos dos quais o Brasil seja parte, poderá suscitar, perante o Superior Tribunal de Justiça, em qualquer fase do inquérito ou processo, incidente de deslocamento de competência para a Justiça Federal" (§ 5º, do art. 109, da CF/88, incluído pela Emenda Constitucional nº 45/2004); III - O art. 82 do Código de Processo Penal Militar (DL 1002, de 21/10/1969), com a nova redação que lhe deu a Lei nº 9.299/96, ao reconhecer o foro militar como especial e especificar as pessoas que a ele estão sujeitas, exclui de sua apreciação os crimes dolosos 1 181-Habeas Corpus Criminal - Turma Espec. I - Penal, Previdenciário e Propriedade Industrial 0104222-36.2014.4.02.0000 (2014.00.00.104222-3) ORIGEM: 04ª Vara Federal Criminal do Rio de Janeiro (00230059120144025101) contra a vida, praticados por militares contra civil, determinando, em seu § 2º, que nestes casos, a Justiça Militar encaminhará os autos do inquérito policial militar à Justiça Comum; IV - A anistia concedida pela Lei nº 6.683/79 contempla somente os crimes praticados com fundamento em atos de exceção (Atos Institucionais e Complementares) e não aqueles regrados pela legislação comum; V - Se a Lei de Anistia não alcançou os militantes armados que se insurgiram contra o governo militar, não pode ser interpretada favoravelmente aqueles que sequestraram, torturaram, mataram e ocultaram corpos pelo simples fato de terem agido em nome da manutenção do regime; VI - O Brasil reconheceu a competência contenciosa da Corte Interamericana de Direitos Humanos em 10 de dezembro de 1998, para os fatos posteriores a esse reconhecimento, aí incluídos os que mesmo praticados anteriormente configuram delito permanente, e não se exauriram até a presente data; VII - "As disposições da Lei de Anistia Brasileira que impedem a investigação e sanção de graves violações de direitos humanos são incompatíveis com a Convenção Americana, carecem de efeitos jurídicos e não podem seguir representando um obstáculo para a investigação dos fatos do presente caso, nem para a identificação e punição dos responsáveis, e tampouco podem ter igual ou semelhante impacto a respeito de outros casos de graves violações de direitos humanos consagrados na Convenção Americana, ocorridos no Brasil . (Trecho de sentença proferida pela Corte IDH no caso Gomes Lund e Outros vs. Brasil - 24 de novembro de 2010) VIII - Inocorrência de prescrição em relação ao delito de ocultação de cadáver, por sua natureza de crime permanente, bem 2 181-Habeas Corpus Criminal - Turma Espec. I - Penal, Previdenciário e Propriedade Industrial 0104222-36.2014.4.02.0000 (2014.00.00.104222-3) ORIGEM: 04ª Vara Federal Criminal do Rio de Janeiro (00230059120144025101) como em relação aos demais, que por sua forma e modo de execução se caracterizam como crimes de lesa-humanidade, imprescritíveis de acordo com princípios de Direito Internacional; IX - Ordem denegada. (TRF-2 - HC: 01042223620144020000/RJ, Rel. Des. Fed. Messod Azulay Neto, j. 12/09/2014) Nesses termos, mostra-se inafastável o acolhimento da pretensão recursal, para que seja reformada a decisão recorrida e afastado o pronunciamento da incidência da causa extintiva de punibilidade prevista no art. 107, inc. II, do Código Penal, determinando-se o regular prosseguimento da ação penal. Da natureza permanente do crime de ocultação de cadáver (art. 211 do Código Penal) No caso, ainda que se cogitasse da superação das razões que embasam a declaração de inconvencionalidade da Lei da Anistia, o prosseguimento da ação penal subjacente se imporia por fundamento diverso, qual seja, a natureza permanente do crime de ocultação de cadáver (art. 211 do Código Penal). Conforme leciona a doutrina, considera-se crime permanente aquele cuja consumação se protrai no tempo e cuja cessação depende de uma ação, comissiva ou omissiva, do sujeito ativo. Não se confunde, portanto, com crime instantâneo de efeitos permanentes, em que a ação é instantânea e a permanência dos efeitos produzidos não depende do prolongamento da ação do agente. Nesse sentido: “Permanente é aquele crime cuja consumação se alonga no tempo, dependente da atividade do agente, que poderá cessar quando este quiser (cárcere privado, sequestro etc.). Crime permanente não pode ser confundido com crime instantâneo de efeitos permanentes (homicídio, furto), cuja permanência não depende da continuidade da ação do agente. Na mesma linha já era o entendimento de Magalhães Noronha, que pontificava: ‘Crime permanente é aquele cuja consumação se prolonga no tempo, dependente da atividade, ação ou omissão, do sujeito ativo, como sucede no cárcere privado. Não se confunde com o delito instantâneo de efeitos permanentes, em que a permanência do efeito não depende do prolongamento da ação do delinquente: homicídio, furto etc.’ Na verdade, o que caracteriza a permanência de uma conduta criminosa não é a durabilidade dos efeitos, tampouco a repetição da atividade pelo agente, mas sim a extensão da fase consumatória propriamente da mesma ação do agente. A repetição de atividade (ou ação) pelo agente — receber mensalmente —, por exemplo, vantagem indevida, não é elementar constitutiva de crime permanente, mas tão somente consequência de uma ação executada. Consequentemente, os crimes instantâneos de efeitos permanentes não admitem, na sequência, a prisão em flagrante, exatamente porque se trata de crime instantâneo, e os efeitos que produzem é que são permanentes; além disso, não é a conduta criminosa que tem natureza permanente, o que caracterizaria o crime permanente. O crime permanente, como se sabe, protrai no tempo sua consumação. Exemplo típico é o crime de sequestro: enquanto o sequestrador não liberta a vítima, o delito está sendo consumado e, pois, é delito permanente, pelo que o sujeito ativo pode ser preso em flagrante. Sobre “o elemento subjetivo, nos crimes permanentes, cumpre lembrar que a permanência decorre de um non facere quod debetur, pelo que o agente está, sem sombra de dúvida, desobedecendo à norma que o manda remover a situação antijurídica que criou. O agente deve, assim, ter a possibilidade de alterar essa situação ilícita. (...) Com efeito, o crime instantâneo de efeitos permanentes, ao contrário do que ocorre com o crime permanente, não possibilita ao sujeito ativo reduzir ou diminuir seus efeitos. Não há como retornar, não há como fazer cessar os efeitos da ação que já foi praticada. Em outros termos, não há como fazer cessar a ação, pois esta já se esgotou, é instantânea, e os seus efeitos é que são permanentes, v. g., o homicídio”. (BITENCOURT, Cezar R. Tratado de direito penal: parte geral. v.1. São Paulo: Editora Saraiva, 2024. E-book, p. 142. ISBN 9786553629325) Tal entendimento amolda-se à figura do delito previsto no art. 211 do Código Penal, o qual, quando praticado na modalidade “ocultar”, tem a sua consumação protraída no tempo, enquanto mantida a ocultação do cadáver. Em tal prática delitiva, o sujeito ativo, embora tenha a possibilidade de alterar a situação ilícita por meio da revelação do local onde se encontra o corpo ocultado, mantém-se, deliberadamente, em estado de desobediência à norma que determina a remoção da situação antijurídica por ele criada. Tal circunstância conduz à caracterização deste delito como crime permanente (BITENCOURT, Cezar R. Tratado de direito penal: parte especial. “Crimes contra o patrimônio até crimes contra o sentimento religioso e contra o respeito aos mortos (arts. 155 a 212)”. v.3. São Paulo]: Editora Saraiva, 2023. E-book, p. 262. ISBN 9786553627161). Assim, mantendo-se até o presente momento a violação do bem jurídico (sentimento de respeito aos mortos) provocada pela prática criminosa de ocultação de cadáver, a sua consumação encontra-se prolongada no tempo, projetando-se até a atualidade e, portanto, para além do interregno de produção dos efeitos da anistia prevista pela Lei 6.683/1979, aplicável apenas às condutas ilícitas perpetradas no período de 2 de setembro de 1961 a 15 de agosto de 1979. Incabível, assim, a incidência Lei da Anistia sobre o caso em tela. Pelas mesmas razões, infere-se não haver transcorrido o prazo prescricional da pretensão punitiva. Consoante dispõe o art. 111, inc. III, do Código Penal, nos crimes permanentes, o termo inicial da prescrição, antes de transitar em julgado a sentença final, corresponde ao dia em que cessar a permanência. No presente caso, não havendo, até o momento, cessado a permanência do delito de ocultação de cadáver, cuja consumação mantém-se protraída no tempo, não há que se falar no início do decurso do prazo prescricional. Nesse sentido já decidiu este Tribunal Regional Federal 3ª Região: PENAL. PROCESSUAL PENAL. RECURSO EM SENTIDO ESTRITO. DENÚNCIA. ARTIGO 121, § 2º, INCISOS I, E III, C.C. ARTIGO 211, C.C. 29, TODOS DO CÓDIGO PENAL. HOMICIDIO QUALIFICADO. ANISTIA. LEI 6.683/79. PRESCRIÇÃO. OCULTAÇÃO DE CADÁVER. CRIME PERMANENTE. PRESCRIÇÃO AFASTADA. RECURSO PARCIALMENTE PROVIDO. (...) 2. OCULTAÇÃO DE CADÁVER: A prescrição, segundo o disposto no artigo 109, inciso IV, do CPP, ocorre em 08 anos, prazo ainda não decorrido desde a consumação do crime (cessação da permanência). Sendo permanente, sua consumação se protrai no tempo. - O crime de ocultação de cadáver narrado na denúncia, por sua natureza permanente, teve início em 1975; eclodiu por motivos político-ideológicos; foi praticado por grupos armados, civis e militares, que agiram em afronta à ordem constitucional então em vigor; está fora do alcance da Lei de Anistia, pois o crime continuou sendo praticado a partir de 1979; ainda em curso o referido delito, já sob a égide da Constituição de 1988. - Presentes a prova da existência do crime e indícios suficientes de autoria delitiva. A denúncia, ainda, contém exposição clara e objetiva dos fatos ditos delituosos, com narração de todos os elementos essenciais e circunstanciais que lhes são inerentes, atendendo aos requisitos descritos no artigo 41 do Código de Processo Penal. (...) (TRF-3 - ReSe 50026748720214036181/SP, Rel. Des. Fed. Ali Mazloum, 5ª Turma, DJe 18/08/2023) – g.n. Impõe-se, por conseguinte, o afastamento da declaração de extinção da punibilidade do agente pela prática, em tese, dos crimes imputados na denúncia, com base nas hipóteses de anistia e prescrição (art. 107, inc. II e IV, do Código Penal), não subsistindo fundamento apto a embasar a manutenção da absolvição sumária decretada na decisão recorrida. Dispositivo Ante o exposto, dou provimento ao recurso em sentido estrito interposto pelo Ministério Público Federal para afastar a absolvição sumária do réu amparada no reconhecimento das causas extintivas da punibilidade previstas no art. 107, inc. II e IV, do Código Penal, e determinar o regular prosseguimento da ação penal. É o voto.
RECURSO EM SENTIDO ESTRITO (426) Nº 5002620-24.2021.4.03.6181
RELATOR: Gab. 44 - DES. FED. HELIO NOGUEIRA
RECORRENTE: MINISTERIO PUBLICO FEDERAL - PR/SP
RECORRIDO: JOSE MANELLA NETO
Advogado do(a) RECORRIDO: DOUGLAS BONALDI MARANHAO - PR36010-A
OUTROS PARTICIPANTES:
V O T O
O SENHOR DESEMBARGADOR FEDERAL NINO TOLDO:
Divirjo do e. Relator, com a devida vênia, quanto ao provimento do recurso.
Sua Excelência dá provimento ao recurso em sentido estrito interposto pelo Ministério Público Federal (MPF) para afastar a declaração de extinção da punibilidade do recorrido JOSÉ MANELLA NETO e decretar sua absolvição sumária, ante o reconhecimento da incidência das causas previstas no art. 107, II e IV, do Código Penal, e, assim, determinar o regular prosseguimento da ação penal.
Pois bem.
A discussão cinge-se à correção, ou não, da decisão recorrida, que declarou extinta a punibilidade em razão da anistia concedida pela Lei nº 6.683/1979 (Lei de Anistia) e da ocorrência de prescrição da pretensão punitiva estatal, bem como reconheceu ausentes os pressupostos processuais e a justa causa para o exercício da ação penal (CPP, art. 395, II e III), com a decretação da absolvição sumária do recorrido (CPP, art. 397, IV).
O tema da anistia para os crimes políticos ou conexos com estes cometidos no período de 02.01.1964 a 15.08.1979, concedida pela Lei nº 6.683/1979, já foi amplamente discutido no âmbito do Supremo Tribunal Federal (STF), na ADPF nº 153, cuja ementa transcrevo:
EMENTA: LEI N. 6.683/79, A CHAMADA "LEI DE ANISTIA". ARTIGO 5º, CAPUT, III E XXXIII DA CONSTITUIÇÃO DO BRASIL; PRINCÍPIO DEMOCRÁTICO E PRINCÍPIO REPUBLICANO: NÃO VIOLAÇÃO. CIRCUNSTÂNCIAS HISTÓRICAS. DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA E TIRANIA DOS VALORES. INTERPRETAÇÃO DO DIREITO E DISTINÇÃO ENTRE TEXTO NORMATIVO E NORMA JURÍDICA. CRIMES CONEXOS DEFINIDOS PELA LEI N. 6.683/79. CARÁTER BILATERAL DA ANISTIA, AMPLA E GERAL. JURISPRUDÊNCIA DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL NA SUCESSÃO DAS FREQUENTES ANISTIAS CONCEDIDAS, NO BRASIL, DESDE A REPÚBLICA. INTERPRETAÇÃO DO DIREITO E LEIS-MEDIDA. CONVENÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS CONTRA A TORTURA E OUTROS TRATAMENTOS OU PENAS CRUÉIS, DESUMANOS OU DEGRADANTES E LEI N. 9.455, DE 7 DE ABRIL DE 1997, QUE DEFINE O CRIME DE TORTURA. ARTIGO 5º, XLIII DA CONSTITUIÇÃO DO BRASIL. INTERPRETAÇÃO E REVISÃO DA LEI DA ANISTIA. EMENDA CONSTITUCIONAL N. 26, DE 27 DE NOVEMBRO DE 1985, PODER CONSTITUINTE E "AUTO-ANISTIA". INTEGRAÇÃO DA ANISTIA DA LEI DE 1979 NA NOVA ORDEM CONSTITUCIONAL. ACESSO A DOCUMENTOS HISTÓRICOS COMO FORMA DE EXERCÍCIO DO DIREITO FUNDAMENTAL À VERDADE.
1. Texto normativo e norma jurídica, dimensão textual e dimensão normativa do fenômeno jurídico. O intérprete produz a norma a partir dos textos e da realidade. A interpretação do direito tem caráter constitutivo e consiste na produção, pelo intérprete, a partir de textos normativos e da realidade, de normas jurídicas a serem aplicadas à solução de determinado caso, solução operada mediante a definição de uma norma de decisão. A interpretação/aplicação do direito opera a sua inserção na realidade; realiza a mediação entre o caráter geral do texto normativo e sua aplicação particular; em outros termos, ainda: opera a sua inserção no mundo da vida.
2. O argumento descolado da dignidade da pessoa humana para afirmar a invalidade da conexão criminal que aproveitaria aos agentes políticos que praticaram crimes comuns contra opositores políticos, presos ou não, durante o regime militar, não prospera.
3. Conceito e definição de "crime político" pela Lei n. 6.683/79. São crimes conexos aos crimes políticos "os crimes de qualquer natureza relacionados com os crimes políticos ou praticados por motivação política"; podem ser de "qualquer natureza", mas [i] hão de terem estado relacionados com os crimes políticos ou [ii] hão de terem sido praticados por motivação política; são crimes outros que não políticos; são crimes comuns, porém [i] relacionados com os crimes políticos ou [ii] praticados por motivação política. A expressão crimes conexos a crimes políticos conota sentido a ser sindicado no momento histórico da sanção da lei. A chamada Lei de anistia diz com uma conexão sui generis, própria ao momento histórico da transição para a democracia. Ignora, no contexto da Lei n. 6.683/79, o sentido ou os sentidos correntes, na doutrina, da chamada conexão criminal; refere o que "se procurou", segundo a inicial, vale dizer, estender a anistia criminal de natureza política aos agentes do Estado encarregados da repressão.
4. A lei estendeu a conexão aos crimes praticados pelos agentes do Estado contra os que lutavam contra o Estado de exceção; daí o caráter bilateral da anistia, ampla e geral, que somente não foi irrestrita porque não abrangia os já condenados --- e com sentença transitada em julgado, qual o Supremo assentou --- pela prática de crimes de terrorismo, assalto, seqüestro e atentado pessoal.
5. O significado válido dos textos é variável no tempo e no espaço, histórica e culturalmente. A interpretação do direito não é mera dedução dele, mas sim processo de contínua adaptação de seus textos normativos à realidade e seus conflitos. Mas essa afirmação aplica-se exclusivamente à interpretação das leis dotadas de generalidade e abstração, leis que constituem preceito primário, no sentido de que se impõem por força própria, autônoma. Não àquelas, designadas leis-medida (Massnahmegesetze), que disciplinam diretamente determinados interesses, mostrando-se imediatas e concretas, e consubstanciam, em si mesmas, um ato administrativo especial. No caso das leis-medida interpreta-se, em conjunto com o seu texto, a realidade no e do momento histórico no qual ela foi editada, não a realidade atual. É a realidade histórico-social da migração da ditadura para a democracia política, da transição conciliada de 1979, que há de ser ponderada para que possamos discernir o significado da expressão crimes conexos na Lei n. 6.683. É da anistia de então que estamos a cogitar, não da anistia tal e qual uns e outros hoje a concebem, senão qual foi na época conquistada. Exatamente aquela na qual, como afirma inicial, "se procurou" [sic] estender a anistia criminal de natureza política aos agentes do Estado encarregados da repressão. A chamada Lei da anistia veicula uma decisão política assumida naquele momento --- o momento da transição conciliada de 1979. A Lei n. 6.683 é uma lei-medida, não uma regra para o futuro, dotada de abstração e generalidade. Há de ser interpretada a partir da realidade no momento em que foi conquistada.
6. A Lei n. 6.683/79 precede a Convenção das Nações Unidas contra a Tortura e Outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes --- adotada pela Assembléia Geral em 10 de dezembro de 1984, vigorando desde 26 de junho de 1987 --- e a Lei n. 9.455, de 7 de abril de 1997, que define o crime de tortura; e o preceito veiculado pelo artigo 5º, XLIII da Constituição --- que declara insuscetíveis de graça e anistia a prática da tortura, entre outros crimes --- não alcança, por impossibilidade lógica, anistias anteriormente a sua vigência consumadas. A Constituição não afeta leis-medida que a tenham precedido.
7. No Estado democrático de direito o Poder Judiciário não está autorizado a alterar, a dar outra redação, diversa da nele contemplada, a texto normativo. Pode, a partir dele, produzir distintas normas. Mas nem mesmo o Supremo Tribunal Federal está autorizado a rescrever leis de anistia.
8. Revisão de lei de anistia, se mudanças do tempo e da sociedade a impuserem, haverá --- ou não --- de ser feita pelo Poder Legislativo, não pelo Poder Judiciário.
9. A anistia da lei de 1979 foi reafirmada, no texto da EC 26/85, pelo Poder Constituinte da Constituição de 1988. Daí não ter sentido questionar-se se a anistia, tal como definida pela lei, foi ou não recebida pela Constituição de 1988; a nova Constituição a [re]instaurou em seu ato originário. A Emenda Constitucional n. 26/85 inaugura uma nova ordem constitucional, consubstanciando a ruptura da ordem constitucional que decaiu plenamente no advento da Constituição de 5 de outubro de 1988; consubstancia, nesse sentido, a revolução branca que a esta confere legitimidade. A reafirmação da anistia da lei de 1979 está integrada na nova ordem, compõe-se na origem da nova norma fundamental. De todo modo, se não tivermos o preceito da lei de 1979 como ab-rogado pela nova ordem constitucional, estará a coexistir com o § 1º do artigo 4º da EC 26/85, existirá a par dele [dicção do § 2º do artigo 2º da Lei de Introdução ao Código Civil]. O debate a esse respeito seria, todavia, despiciendo. A uma por que foi mera lei-medida, dotada de efeitos concretos, já exauridos; é lei apenas em sentido formal, não o sendo, contudo, em sentido material. A duas por que o texto de hierarquia constitucional prevalece sobre o infraconstitucional quando ambos coexistam. Afirmada a integração da anistia de 1979 na nova ordem constitucional, sua adequação à Constituição de 1988 resulta inquestionável. A nova ordem compreende não apenas o texto da Constituição nova, mas também a norma-origem. No bojo dessa totalidade --- totalidade que o novo sistema normativo é --- tem-se que "[é] concedida, igualmente, anistia aos autores de crimes políticos ou conexos" praticados no período compreendido entre 02 de setembro de 1961 e 15 de agosto de 1979. Não se pode divisar antinomia de qualquer grandeza entre o preceito veiculado pelo § 1º do artigo 4º da EC 26/85 e a Constituição de 1988.
10. Impõe-se o desembaraço dos mecanismos que ainda dificultam o conhecimento do quanto ocorreu no Brasil durante as décadas sombrias da ditadura.
(ADPF 153/DF, Pleno, maioria, Rel. Min. Eros Grau, j. 29.04.2010, DJe-145 DIVULG 05.08.2010 PUBLIC 06.08.2010, RTJ 216, p. 11)
Não vou estender-me em considerações que seriam repetitivas em relação a tudo o que foi exposto no voto do Ministro Eros Grau e nos dos que o acompanharam. Da mesma forma em relação ao que consta na sentença.
O que posso acrescentar é que, por mais que sejam dolorosas as lembranças de tudo o quanto ocorreu em desrespeito aos direitos humanos durante o período de exceção vivido no Brasil, o fato é que houve um concerto político, do qual participaram diversas entidades importantes do cenário nacional, dentre as quais a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), para que a anistia fosse ampla e o País retomasse o caminho da democracia. O caminho não foi o da batalha, mas o da paz, pela concordância nos termos que vieram a ser estabelecidos na Lei nº 6.683/1979. Isso foi destacado, por exemplo, por José Paulo Cavalcanti Filho, advogado e ex-membro da Comissão Nacional da Verdade, em artigo publicado no jornal Folha de S. Paulo, edição do dia 22.05.2018:
A anistia, entre nós, veio em dois momentos. O primeiro, com a lei 6.683, de 28 de agosto de 1979, negociada entre Petrônio Portela (ministro da Justiça de Ernesto Geisel) e Raymundo Faoro (presidente da OAB Nacional). De um lado, preparando a volta de exilados como Miguel Arraes e Leonel Brizola - e protegendo condenados ou processados pela ditadura; de outro, protegendo os militares por tudo o que fizeram. Duro preço a pagar para permitir a transição. Uma lei imposta pelos militares, claramente para se proteger. Vão-se os anéis.
Mas houve outra, depois, da qual pouco se diz. A Emenda Constitucional 26, de 27 de novembro de 1985, votada por um Congresso livre, o mesmo que elegeu Tancredo Neves.
A reprodução do texto, tecnicamente o mesmo, se deveu ao fato de que o episódio grotesco do Riocentro ocorreu em 1981, posteriormente à primeira lei. Os militares exigiam que também aquele episódio fosse coberto por uma anistia.
E tudo se deu no contexto de negociações feitas por Tancredo, antes da posse, para garantir uma transição sem maiores traumas. Dos militares para a oposição civil - e não, como na generalidade dos países, primeiro dos militares para o estamento civil do sistema.
O STF, ao julgar a ADPF nº 153, determinou os rumos de ações que visassem revolver fatos alcançados pela anistia mencionada. Isto porque essa decisão tem eficácia contra todos e efeito vinculante relativamente aos demais órgãos do Poder Público, nos termos do art. 10, § 3º, da Lei nº 9.982, de 03.12.1999.
Assim é que outras ações propostas pelo MPF com o mesmo objetivo não foram acolhidas pelas Turmas Criminais deste Tribunal, inclusive em feito julgado no âmbito da Quarta Seção:
DIREITO PENAL. PROCESSO PENAL. EMBARGOS INFRINGENTES. OCULTAÇÃO DE CADÁVER. DENÚNCIA. AGENTE POLICIAL. DITADURA MILITAR. LEI DE ANISTIA. LEI Nº 6.683/79. ABRANGÊNCIA. INCIDÊNCIA NO CASO CONCRETO. PREVALÊNCIA DO VOTO VENCIDO. MANTIDA A EXTINÇÃO DA AÇÃO PENAL.
1. Embargos infringentes interpostos contra decisão que, por maioria, reformou decisão de primeiro grau para determinar o prosseguimento de ação penal em que se imputava a agentes estatais a prática do crime de ocultação de cadáver (Código Penal, art. 211), que teria ocorrido a partir de janeiro de 1972. Crime cometido no contexto da repressão imposta pela ditadura militar iniciada em 1964.
2. O procedimento de atribuição de sentido aos textos normativos (ou seja, de extração de normas) envolve atividade interpretativa que pode ir da simples compreensão de um sentido comum de comandos básicos a complexos procedimentos metodológicos de compreensão e decisão. Não há interpretação de texto (inclusive normativo) sem análise de seu contexto (em sentido amplo: fático, histórico, jurídico-normativo, et cetera). A constatação exsurge mais ou menos evidente a depender do teor de uma prescrição normativa, de suas possibilidades de aplicação e relações com outros textos normativos, ou ainda, do âmbito do real sobre o qual incidirá ou que é tomado como relevante para a própria formulação do texto.
3. No caso, tem-se o complexo contexto da chamada "Lei de Anistia" (Lei nº 6.683/79), a qual foi anunciada como medida para o perdão e a exclusão, para efeitos penais, de todos os atos políticos ou "conexos" (entendida essa expressão em sentido amplo e pouco técnico, no sentido de "relacionados"), no período compreendido entre 02 de setembro de 1961 e 15 de agosto de 1979 - ou seja, dos dias que antecederam a posse do Presidente João Goulart até o período imediatamente anterior à promulgação da própria Anistia, compreendendo mais de quinze anos do regime de exceção, além do período anterior já referido.
4. A Lei de Anistia, por todo o contexto histórico de sua discussão e aprovação, foi etapa fundamental do restabelecimento do Estado de Direito efetivo no Brasil. É, nesse sentido, lei da maior excepcionalidade, traduzida como medida de consenso entre setores relevantes da sociedade e do meio político, bem assim do comando do governo militar, para iniciar a transição final com o reencontro de milhares de pessoas presas, torturadas ou exiladas, que poderiam retornar à liberdade ou ao território nacional por meio da medida. Tratando-se de acordo, e não de uma batalha em que se separam vencedores e vencidos, o caminho escolhido foi o da concórdia possível, com a consequente impossibilidade jurídica de punição individual tanto dos jovens que se lançaram em armas na luta contra a opressão, quanto de agentes estatais de diversos tipos que, nos mais variados contextos, impuseram sevícias ou a morte a brasileiros até o final dos anos 1970.
5. Quando a Lei 6.683/79 dispõe acerca da anistia de todos os crimes "cometidos" no período compreendido entre 02 de setembro de 1961 e 15 de agosto de 1979, não se tem aí mero marco temporal para condutas criminosas. O que há é delimitação de um período histórico de extrema turbulência ou, em sua maior parte, de vigência de regime de exceção, em que atos amoldáveis a crimes graves foram praticados em favor do ou em combate ao governo militar. Não podem os marcos temporais em questão, ou o vocábulo "cometidos", ser tomados com o sentido usual que seria extraído de outros enunciados normativos inseridos em outros contextos ou regimes jurídicos. Aqui, a referência é claramente a um círculo de fatos: os crimes cujo núcleo fático tenha tido como distinção temporal ter ocorrido na precitada quadra histórica, e como marca material o caráter político ou de crime conexo ao político, no sentido de atos em tese criminosos relacionados a ações políticas de defesa do regime militar (frequentemente praticados por agentes de Estado, com a complacência e permissividade, ou mesmo comando, do regime ditatorial), ou de combate ao mesmo regime por atos políticos e até enfrentamentos armados.
6. Assim, são abrangidos pela anistia os fatos originalmente típicos (políticos ou conexos) cujo núcleo de cometimento tenha se dado no período de exceção, não se tratando, neste contexto, de simples vislumbre temporal, com uso da categoria do crime permanente, para inferir que em tese um ato de ocultação teria se protraído para além de 15 de agosto de 1979. A anistia abarca os crimes cometidos no período de setembro de 1961 a agosto de 1979 em seu núcleo fático.
7. Os crimes políticos ou a eles conexos cujo núcleo de ação tenha ocorrido no período compreendido entre 02 de setembro de 1961 e 15 de agosto de 1979 (daí advindo a expressão legal "cometidos", neste contexto) se encontram abarcados por anistia, nos termos do art. 1º da Lei 6.683/79, inclusive os de natureza em tese permanente, ressalvados apenas os casos em que novos atos efetivos e autônomos tenham ultrapassado o lapso temporal previsto na precitada disposição legal.
8. A denúncia que inaugura os autos retrata situação desse jaez, ao imputar ao embargante Alcides Singillo a prática de ocultação de cadáver de militante político contrário ao regime militar, mediante atos cujo cometimento teria se dado em 1972. A não apresentação do cadáver como omissão acessória dessa prática anterior, e a ela intimamente ligada, não alcança existência autônoma que se dissocie do comando descriminalizador da Lei 6.683/79, porquanto não se narram condutas efetivamente praticadas, ou comandadas intelectualmente pelo réu, que se autonomizem desse contexto e se protraiam para além de 15 de agosto de 1979.
9. O julgado da Corte Interamericana de Direitos Humanos acerca de crimes permanentes em tese cometidos por agentes da repressão no Brasil no período da ditadura militar não poderia se sobrepor a uma disposição legal que retira o caráter criminoso dos fatos e que foi reconhecida pelo Supremo Tribunal Federal, em julgado com efeitos vinculantes, como integralmente recepcionada pela atual ordem constitucional pátria.
10. Embargos infringentes providos. Mantida a extinção da ação penal.
(EIfNu 0004823-25.2013.4.03.6181, Quarta Seção, Rel. Des. Federal José Lunardelli, j. 21.03.2019, e-DJF3 Judicial 1 01.04.2019)
PROCESSO PENAL. RECURSO EM SENTIDO ESTRITO. DECISÃO QUE NÃO RECEBEU A DENÚNCIA. IMPUTAÇÃO DE CRIMES A AGENTES ESTATAIS. HOMICÍDIO QUALIFICADO PRATICADO NO CONTEXTO DO REGIME MILITAR. LEI Nº 6.683/79. ARGUIÇÃO DE DESCUMPRIMENTO DE PRECEITO FUNDAMENTAL Nº 153. RECURSO DESPROVIDO.
1. O tema da anistia para os crimes políticos ou conexos com estes cometidos no período de 02.01.1964 a 15.08.1979, concedida pela Lei nº 6.683/79, já foi amplamente discutido no âmbito do STF, por meio da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 153. Tal julgamento assentou a validade da mencionada lei e a impossibilidade de revisitar, em termos jurídico-penais, os atos por ela abarcados, valendo ressaltar que tal decisão tem eficácia contra todos e efeito vinculante relativamente aos demais órgãos do Poder Público, nos termos do art. 10, § 3º, da Lei nº 9.982, de 03.12.1999.
2. Por mais que sejam dolorosas as lembranças de tudo o quanto ocorreu em desrespeito aos direitos humanos durante o período de exceção vivido no Brasil, o fato é que houve um concerto político, do qual participaram diversas entidades importantes do cenário nacional, dentre as quais a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), para que a anistia fosse ampla e o País retomasse o caminho da democracia. O caminho não foi o da batalha, mas o da paz, pela concordância nos termos que vieram a ser estabelecidos na Lei nº 6.683/79.
3. Tramita no STF a ADPF nº 320/DF, sob relatoria do Min. Luiz Fux, na qual está novamente em debate a aplicação da anistia concedida pela Lei nº 6.683/79 aos crimes de graves violações de direitos humanos e aos crimes continuados ou permanentes. Nessa ADPF o tema poderá ser revisto pelo STF, mas, enquanto não decidida, os órgãos do Poder Judiciário estão vinculados à decisão proferida na ADPF nº 153. Precedentes.
4. Recurso em sentido estrito não provido.
(RSE 0015358-42.2015.4.03.6181, Décima Primeira Turma, Rel. Des. Federal Fausto De Sanctis, Rel. p/ acórdão Des. Fed. Nino Toldo, j. 05.02.2019, e-DJF3 Judicial 1 06.03.2019)
DIREITO PENAL. RECURSO EM SENTIDO ESTRITO. DENÚNCIA. REJEIÇÃO. IMPUTAÇÃO. HOMICÍDIO. AGENTES ESTATAIS. PERÍODO DA DITADURA MILITAR. LEI DA ANISTIA - LEI Nº 6.683/79. INCIDÊNCIA. REJEIÇÃO MANTIDA. RECURSO DESPROVIDO.
1. Recurso interposto contra decisão que rejeitou denúncia ajuizada pelo Ministério Público Federal, em que se imputou aos acusados práticas em tese amoldadas ao art. 121 (caput e § 2º, incisos I, III e IV). Homicídio qualificado em tese praticado por agentes da repressão estatal no período da ditadura militar brasileira.
2. Não se pode, hodiernamente, controverter acerca da recepção, com plena normatividade, das disposições da Lei 6.683/79 e da Emenda Constitucional 26/85 (emenda ao texto constitucional de 1967), no que tange à anistia de todos os abarcados pela extensão material e temporal de suas disposições. Isso porque o tema foi objeto de expresso pronunciamento do Supremo Tribunal Federal na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 153.
3. Tem-se, na Lei nº 6.683/79, texto normativo cujo sentido efetivo é indissociável de um contexto histórico extremamente grave e específico, que a ele se incorpora inclusive para fins de verificação de seu efetivo conteúdo.
4. A Lei de Anistia, por todo o contexto histórico de sua discussão e aprovação, foi etapa fundamental do restabelecimento do Estado de Direito efetivo no Brasil. É, nesse sentido, lei da maior excepcionalidade, traduzida como medida de consenso entre setores relevantes da sociedade e do meio político, bem assim do comando do governo militar, para iniciar a transição final com o reencontro de milhares de pessoas presas, torturadas ou exiladas, que poderiam retornar à liberdade ou ao território nacional por meio da medida. Tratando-se de acordo, e não de uma batalha em que se separam vencedores e vencidos, o caminho escolhido foi o da concórdia possível, com a consequente impossibilidade jurídica de punição individual tanto dos jovens que se lançaram em armas na luta contra a opressão, quanto de agentes estatais de diversos tipos que, nos mais variados contextos, impuseram sevícias ou a morte a brasileiros até o final dos anos 1970.
5. A narrativa ministerial é de clareza solar: imputa-se aos denunciados prática de crime grave tendo por contexto o próprio exercício da repressão ilegal a pretexto de combater divergências subversivas. Trata-se, pois, da parcela de ex-agentes públicos anistiados em suas práticas originalmente típicas, anistia essa decorrente da Lei nº 6.683/79. O reconhecimento de sua incidência é, pois, obrigatório, devendo ser mantida a decisão recorrida.
6. Rejeição da denúncia mantida. Recurso desprovido.
(RSE 0001147-74.2010.4.03.6181, Décima Primeira Turma, Rel. Des. Federal José Lunardelli, j. 05.02.2019)
PENAL. PROCESSO PENAL. LEI Nº 6.683/79. ANISTIA. EXTINÇÃO DA PUNIBILIDADE. COMPATIBILIDADE COM A CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988. DENÚNCIA. REJEIÇÃO.
1. A morte do agente constitui causa de extinção da punibilidade.
2. A anistia concedida pela Lei nº 6.683/79 foi ampla e geral, alcançando os crimes políticos e eleitorais praticados pelos agentes da repressão, no período compreendido entre 02/09/1961 e 15/08/1979.
3. A Lei nº 6.683/79 foi integrada na nova ordem constitucional de 1988.
4. Em razão da concessão de anistia em relação aos delitos políticos e os conexos com estes, praticados no período compreendido entre 02/09/1961 a 15/08/1979, não há falar em existência material de crime. Ausência de justa causa para a ação penal. Rejeição da denúncia é medida de rigor.
5. Recurso em sentido estrito prejudicado em parte, em razão da morte de agente. Na parte não prejudicada, recurso desprovido.
(RSE 0016351-22.2014.4.03.6181, Quinta Turma, Rel. Des. Federal Mauricio Kato, j. 07.08.2017, e-DJF3 Judicial 1 18.08.2017)
PENAL. PROCESSUAL PENAL. RECURSO EM SENTIDO ESTRITO. REJEIÇÃO DA DENÚNCIA. REGIME MILITAR. ANISTIA. HOMICÍDIO. OCULTAÇÃO OU DESTRUIÇÃO DE CADÁVER. INDÍCIOS DE MATERIALIDADE E AUTORIA. RESTOS MORTAIS NÃO LOCALIZADOS. CRIME PERMANENTE. PRESCRIÇÃO. SUJEIÇÃO DO BRASIL ÀS DECISÕES DA CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. CASO GOMES LUND. DESAPARECIMENTO FORÇADO. CONVENÇÃO AMERICANA E OS PRINCÍPIOS DO DIREITO INTERNACIONAL. CONTROLE DE CONVENCIONALIDADE. CONTROLE DE CONSTITUCIONALIDADE. DISTINÇÃO. ENTENDIMENTO DO STF SOBRE A LEI DE ANISTIA. ADPF 153. COMPATIBILIDADE COM A DECISÃO INTERNACIONAL. 1. Imputação ao réu da prática dos crimes de homicídio duplamente qualificado (CP, art. 121, § 2º, I e IV) e de ocultação de cadáver (CP, art. 211), cometidos quando ocupava o cargo de chefia do DOI-CODI, em setembro de 1975.
2. O Supremo Tribunal Federal já proclamou não somente a validade mas também a abrangência bilateral da Lei n. 6.683, de 28.08.79, conhecida como Lei da Anistia, que se aplica aos delitos cometidos entre 02 de setembro de 1961 e 15 de agosto de 1979.
3. Não consta que a decisão proferida pela Corte Interamericana de Direitos Humanos tenha obliterado a decisão proferida pelo Supremo Tribunal Federal. Nestes autos, aquela é meramente citada sem que se identifiquem efetivamente seus efeitos para a economia deste processo, isto é, em que medida seus efeitos criam, extinguem ou modificam direitos de caráter processual ou de direito material no que respeita ao regular andamento da ação penal. Em princípio, o juiz goza de independência no âmbito de sua função jurisdicional, cumprindo-lhe aplicar a lei ao caso concreto mediante o exercício de seu entendimento, segundo o Direito. Essa atividade somente é obstruída em decorrência de decisão que tenha a propriedade de substituir ou, de qualquer modo, reformar sua decisão. Os compromissos internacionais assumidos pelo Brasil não afetam esse pressuposto, que de resto é facilmente compreensível. Nem é preciso maiores digressões, pois o fenômeno é, na sua natureza, idêntico ao que ocorre no âmbito das obrigações assumidas pelo Brasil no âmbito interno. Daí que não há razão, de caráter processual, para não guardar a tradicional reverência ao julgamento proferido pelo Supremo Tribunal Federal.
4. Anistia aplicável ao delito de homicídio referido na denúncia.
5. A prática do crime do art. 211 do Código Penal em sua modalidade "destruir" demanda a mesma conclusão atinente ao delito de homicídio, por plenamente incidentes as disposições da Lei n. 6.683, de 28.08.79.
6. A mera natureza permanente do crime de ocultação de cadáver não faz ressurgir a pretensão punitiva. Pois nos crimes permanentes há de subsistir a atividade criminosa ao longo do tempo. A denúncia, contudo, não fundamenta seu pedido condenatório em uma suposta ulterior atividade criminosa que, por si mesma, teria feito surgir (ou, o que dá no mesmo, subsistir) a pretensão punitiva. Daí que aqueles fatos foram efetivamente abrangidos pela anistia.
7. O Código Penal, art. 111, III, diz que, nos crimes permanentes, a prescrição começa a correr "do dia em que cessou a permanência". Assim, subsistindo a tipificação do fato, fenômeno que ocorre por causa da atividade delitiva do agente, resulta evidente que não está a correr o prazo prescricional. Não há referência à atividade criminosa dos agentes posterior à Lei da Anistia que poderia - como se pretende - postergar o início da fluência do prazo prescricional. Contudo, a própria aplicação desse dispositivo fica prejudicada na medida em que, por oura razão, já não há mais pretensão punitiva passível de ser extinta pela prescrição.
8. Recurso não provido.
(RSE 0015754-19.2015.4.03.6181, Quinta Turma, Rel. Des. Federal André Nekatschalow, j. 50.12.2016, e-DJF3 Judicial 1 15.12.2016)
O STF também reafirmou a autoridade da decisão proferida na ADPF nº 153 ao deferir liminares nas Reclamações nºs 18.686/RJ (Rel. Min. Teori Zavascki) e 19.760/SP (Rel. Min. Rosa Weber), suspendendo as ações penais que tramitavam no primeiro grau de jurisdição.
Observo, ainda, que tramita no STF a ADPF nº 320/DF, na qual está novamente em debate a aplicação da anistia concedida pela Lei nº 6.683/1979 aos crimes de graves violações de direitos humanos e aos crimes continuados ou permanentes.
Nessa ADPF o tema poderá ser revisto pelo STF, mas, enquanto não decidida, os órgãos do Poder Judiciário estão vinculados à decisão proferida na ADPF nº 153/DF.
Observo, apenas para registro, que essa impossibilidade de revisão por outros órgãos judiciários que não o próprio STF foi admitida por José Carlos Dias, Maria Rita Kehl, Paulo Sérgio Pinheiro, Pedro Dallari e Rosa Cardoso, ex-integrantes da Comissão Nacional da Verdade, em artigo publicado no jornal Folha de S. Paulo, edição de 19.05.2018, no qual defenderam a revisão da lei de anistia após novas revelações sobre a ditadura militar:
A medida de julgamento dos agentes públicos envolvidos na repressão já havia sido determinada ao Estado brasileiro por meio de decisão de 2010 da Corte Interamericana de Direitos Humanos. O Ministério Público Federal, evoluindo de sua posição anterior, passou a promover ações objetivando a condenação dos responsáveis.
A recomendação da CNV permanece, portanto, integralmente válida e, no relatório, estão nominadas 377 pessoas comprometidas com os crimes apurados, cerca de metade delas provavelmente ainda vivas. Impõe-se, assim, a promoção do afastamento dos eventuais impedimentos da Lei nº 6.683/1979 (Lei de Anistia), aprovada ainda durante a ditadura, para que a atuação do Judiciário possa ter curso.
Isso poderá se dar por via de decisão do Supremo Tribunal Federal, havendo ações aguardando julgamento, ou de deliberação do Congresso Nacional, sendo diversos os projetos nesse sentido.
O fundamental é que a civilização prevaleça sobre a barbárie e o Brasil deixe a condição vergonhosa de ser a única exceção entre os países da América Latina -que, olhando de frente para o seu passado, julgaram os agentes da repressão, promovendo a justiça e a democracia. (negritei)
Não obstante tudo isso, a pretensão punitiva estatal encontra-se prescrita.
Com efeito, foi imputada ao recorrido a prática dos crimes de falsidade ideológica (CP, art. 299) e de destruição, subtração ou ocultação de cadáver (CP, art. 211), sendo que as penas máximas desses delitos são de 5 (cinco) e 3 (três) anos de reclusão, prescritíveis em 12 (doze) e 8 (oito) anos, nos termos do art. 109, III e IV, do Código Penal, respectivamente.
Todavia, o recorrido é maior de 70 (setenta) anos, pois nasceu em 23.02.1940, sendo esse prazo prescricional reduzido de metade (CP, art. 115), ou seja, a prescrição ocorre em 6 (seis) e 4 (quatro) anos.
É importante frisar que nenhum desses crimes é permanente, de sorte que a prescrição começa a correr a partir da sua consumação (CP, art. 111, I).
Segundo a denúncia, a prática das condutas - e a consumação dos crimes - ocorreram no dia 29.9.1969, enquanto a denúncia foi recebida em 27.10.2021 (ID 275425192), após decorrido período de tempo muito superior a esses prazos, sem qualquer suspensão ou interrupção da prescrição.
Portanto, a punibilidade do recorrido encontra-se extinta, seja pela anistia (CP, art. 107, II), seja pela prescrição da pretensão punitiva estatal, tendo por base as penas previstas em abstrato (CP, art. 107, IV, c.c. os arts. 109, III e IV, e 115).
Posto isso, NEGO PROVIMENTO ao recurso em sentido estrito.
É o voto.
E M E N T A
PENAL. PROCESSUAL PENAL. DIREITOS HUMANOS. RECURSO EM SENTIDO ESTRITO. DENÚNCIA. OCULTAÇÃO DE CADÁVER. FALSIDADE IDEOLÓGICA. CONTEXTO DE ATAQUE SISTEMÁTICO E GENERALIZADO À POPULAÇÃO CIVIL PELOS AGENTES DA REPRESSÃO DA DITADURA MILITAR. CRIMES CONTRA A HUMANIDADE. IMPRESCRITIBILIDADE. ANISTIA. LEI 6.683/79. CONTROLE DE CONVENCIONALIDADE. TEORIA DO DUPLO CONTROLE. INSUBSISTÊNCIA DA NORMA ANISTIADORA. DEVER ESTATAL DE INVESTIGAÇÃO, PERSECUÇÃO E PUNIÇÃO CRIMINAL DOS AGENTES DA REPRESSÃO POLÍTICA. PRESCRIÇÃO. INOCORRÊNCIA. CRIME PERMANENTE. AFASTAMENTO DAS CAUSAS EXTINTIVAS DE PUNIBILIDADE. RECURSO PROVIDO.
1. Recurso em sentido estrito interposto em face de decisão que declarou a extinção da punibilidade do denunciado, sob o fundamento de que os delitos imputados foram praticados e consumados dentro do interregno previsto na Lei 6.683/1979 (Lei da Anistia), a qual concedeu anistia ampla e irrestrita aos crimes políticos e conexos praticados no período de 2 de setembro de 1961 a 15 de agosto de 1979, havendo o Supremo Tribunal Federal (STF) reconhecido, no julgamento da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 153, a compatibilidade de tal diploma normativo com a ordem constitucional vigente. Por outro lado, foi reconhecida a prescrição da pretensão punitiva dos delitos imputados ao réu, ante o transcurso do prazo prescricional máximo previsto no Código Penal, de 20 (vinte) anos (art. 109, I), entre a data da consumação dos crimes (setembro de 1969) e o recebimento da denúncia (outubro de 2021), havendo sido, assim, pronunciada a incidência de causa extintiva da punibilidade e absolvido sumariamente o acusado
2. O réu foi denunciado como incurso nas penas do art. 299, parágrafo único, combinado com o art. 61, inc. II, b, em concurso com o art. 211, na forma do art. 69, todos do Código Penal, sob o fundamento de que, no dia 29 de setembro de 1969, na sede do Instituto Médico Legal (IML) em São Paulo, atuando como médico legista, em concurso com o também médico legista Orlando Brandão (já falecido), teria omitido, em documento público (laudo de exame necroscópico), declaração que dele devia constar, com o fim alterar a verdade sobre fato juridicamente relevante, contribuindo, assim, para a ocultação e a impunidade de crimes de tortura e homicídio perpetrados contra a vítima Carlos Roberto Zanirato, por parte da equipe do Delegado Sérgio Fernando Paranhos Fleury e de agentes do 4º Regimento de Infantaria de Quitaúna (Osasco/SP), bem como por outros agentes não identificados. Ademais, com tal conduta, o denunciado, entre o dia 29 de setembro de 1969 e a presente data, agindo em concurso com Orlando Brandão e outras pessoas não identificadas, teria ocultado o cadáver da referida vítima, cujo corpo ainda se encontra desaparecido.
3. O STF, ao proceder ao julgamento da ADPF 153, em 28 de abril de 2010 (Rel. Min. Eros Grau, Tribunal Pleno, DJe 06/08/2010), julgou improcedente o pedido e decidiu que a Lei da Anistia alcançaria, de forma ampla e irrestrita, os agentes da ditadura militar e os delitos por eles praticados, obstando, assim, a persecução criminal pelos graves crimes perpetrados durante o regime de exceção.
4. Paralelamente, a Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH), no julgamento proferido no Caso Gomes Lund (Guerrilha do Araguaia), condenou o Brasil a dar cumprimento ao seu dever, à luz da Convenção Americana de Direitos Humanos, de promover a completa investigação, persecução e punição criminal dos agentes da repressão política da ditadura militar, determinando o afastamento dos efeitos jurídicos da Lei da Anistia em relação aos responsáveis por tais crimes, sob o fundamento de que a aludida norma violou o direito à justiça das vítimas e seus familiares, previsto implicitamente nos arts. 8º e 25 da Convenção Americana de Direitos Humanos.
5. O entendimento veio a ser posteriormente reiterado pela Corte IDH, em março de 2018, no julgamento do Caso Vladimir Herzog, no qual foi novamente reconhecida a responsabilidade internacional do Brasil por violação ao dever cogente de investigar, processar e punir os agentes da repressão que atuaram durante o regime militar, e cujo cumprimento não poderia ser obstado pela aplicação da Lei da Anistia. Nesta decisão, a Corte IDH reafirmou sua jurisprudência no sentido de que as condutas praticadas no contexto de graves violações de direitos humanos promovidas, como política sistemática e generalizada, por agentes públicos contra a população civil, constituem crimes contra a humanidade, cuja persecução e punição incumbe ao Estado e em relação à qual não são oponíveis os óbices da prescrição ou de qualquer imunidade ou anistia.
6. A submissão do Estado brasileiro à jurisdição da Corte IDH não constitui violação à sua soberania, mas, em contrário, serve a concretizá-la, tendo em vista que o reconhecimento da competência jurisdicional contenciosa de um Tribunal Internacional constitui manifestação oriunda de um ato soberano do Estado signatário, que, exercendo-o, promove sua adesão à jurisdição internacional. No caso, o Brasil ratificou a Convenção Americana sobre Direitos Humanos no ano de 1992 (Decreto nº 678/1992) e reconheceu, por meio da ratificação da cláusula facultativa de jurisdição obrigatória prevista no art. 62 da referida Convenção (Decreto nº 4.463/2002), a competência da Corte IDH em relação a fatos posteriores a 10 de dezembro de 1998 – dentre os quais se incluem aqueles que, mesmo praticados anteriormente a tal data, configuram delitos permanentes e ainda não exauridos, tal como no caso em tela –, de modo que a observância e efetiva implementação das decisões prolatadas pelo referido Tribunal Internacional constitui ato de concretização da soberania brasileira e de observância das obrigações dela decorrentes.
7. O dever de cumprimento de boa-fé das obrigações internacionais voluntariamente assumidas pelos entes estatais (pacta sunt servanda) constitui princípio básico de regência da responsabilidade internacional dos Estados. As normas convencionais vinculam todos os Poderes e órgãos dos Estados-partes, aos quais incumbe assegurar o efetivo cumprimento das obrigações internacionais contraídas e seus efeitos próprios no plano de seu direito interno, sendo vedada, nos termos do art. 27 da Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados, a invocação de razões de ordem interna para justificar o inadimplemento de um tratado.
8. Os crimes imputados ao denunciado, no presente caso, cometidos no contexto de uma política de violação sistemática de direitos humanos durante o regime militar, constituem delitos cuja persecução consubstancia dever cogente do Estado brasileiro e em relação aos quais não são invocáveis a anistia ou a prescrição como causas extintivas da punibilidade, seja em virtude da qualificação de tais condutas como crimes contra a humanidade, seja por força do eficácia vinculante das sentenças proferidas pela Corte IDH em relação ao Brasil no julgamento dos Casos Gomes Lund e Vladimir Herzog.
9. Vige no ordenamento jurídico brasileiro um sistema de duplo controle ou dupla garantia dos direitos humanos, por meio do qual todos os atos e normas do Poder Público devem se submeter, paralela e simultaneamente, a dois crivos de validade, quais sejam, o controle de constitucionalidade e o controle de convencionalidade, cada um dos quais exercido, de modo dissociado, pelo STF e pela Corte IDH, respectivamente. Inexiste, portanto, qualquer espécie de conflito ou sobreposição entre as esferas decisórias das referidas instâncias jurisdicionais, as quais atuam em âmbitos diversos, com base em arcabouços jurídico-normativos distintos.
10. Imperioso o reconhecimento da Lei 6.683/79 como recepcionada pela ordem constitucional vigente, em observância ao efeito vinculante e à eficácia erga omnes da decisão proferida pelo STF, em sede de controle concentrado de constitucionalidade, na ADPF 153 (art. 102, §§ 1º e 2º, da Constituição da República; art. 10, caput e § 3º, da Lei 9.882/1999; e art. 927, inc. I, do Código de Processo Civil), porém inconvencional, por força da sentença internacional proferida pela Corte IDH no julgamento do Caso Gomes Lund (Guerrilha do Araguaia) vs. Brasil, dotada de eficácia vinculante (art. 5º, § 2º, da Constituição da República e art. 68.1 da Convenção Americana de Direitos Humanos), não devendo tal diploma subsistir, portanto, na ordem jurídica vigente. Precedentes.
11. Ainda que se cogitasse da superação das razões que embasam a declaração de inconvencionalidade da Lei da Anistia, o prosseguimento da ação penal subjacente se imporia por fundamento diverso, qual seja, a natureza permanente do crime de ocultação de cadáver (art. 211 do Código Penal).
12. O delito previsto no art. 211 do Código Penal, quando praticado na modalidade “ocultar”, tem a sua consumação protraída no tempo, enquanto mantida a ocultação do cadáver. Em tal prática delitiva, o sujeito ativo, embora tenha a possibilidade de alterar a situação ilícita por meio da revelação do local onde se encontra o corpo ocultado, mantém-se, deliberadamente, em estado de desobediência à norma que determina a remoção da situação antijurídica por ele criada. Tal circunstância conduz à caracterização desta infração penal como crime permanente.
13. Mantendo-se até o presente momento a violação do bem jurídico (sentimento de respeito aos mortos) provocada pela prática criminosa de ocultação de cadáver, a sua consumação encontra-se prolongada no tempo, projetando-se até a atualidade e, portanto, para além do interregno de produção dos efeitos da anistia prevista pela Lei 6.683/1979, aplicável apenas às condutas ilícitas perpetradas no período de 2 de setembro de 1961 a 15 de agosto de 1979. Incabível, assim, a incidência Lei da Anistia sobre o caso em tela.
14. Pelas mesmas razões, infere-se não haver transcorrido o prazo prescricional da pretensão punitiva. Consoante dispõe o art. 111, inc. III, do Código Penal, nos crimes permanentes, o termo inicial da prescrição, antes de transitar em julgado a sentença final, corresponde ao dia em que cessar a permanência. No caso, não havendo, até o momento, cessado a permanência do delito de ocultação de cadáver, cuja consumação mantém-se protraída no tempo, não há que se falar no início do decurso do prazo prescricional. Precedente.
15. Impõe-se o afastamento da declaração de extinção da punibilidade do agente pela prática, em tese, dos crimes imputados na denúncia, com base nas hipóteses de anistia e prescrição (art. 107, inc. II e IV, do Código Penal), não subsistindo fundamento apto a embasar a manutenção da absolvição sumária decretada na decisão recorrida.
16. Dado provimento ao recurso em sentido estrito interposto pelo Ministério Público Federal para afastar a absolvição sumária do réu amparada no reconhecimento das causas extintivas da punibilidade previstas no art. 107, inc. II e IV, do Código Penal, e determinar o regular prosseguimento da ação penal.