APELAÇÃO CÍVEL (198) Nº 5000701-74.2020.4.03.6006
RELATOR: Gab. 21 - DES. FED. MAIRAN MAIA
APELANTE: UNIAO FEDERAL - FAZENDA NACIONAL
APELADO: LOCALIZA RENT A CAR SA
Advogado do(a) APELADO: SIGISFREDO HOEPERS - SP186884-A
OUTROS PARTICIPANTES:
APELAÇÃO CÍVEL (198) Nº 5000701-74.2020.4.03.6006 RELATOR: Gab. 21 - DES. FED. MAIRAN MAIA APELANTE: UNIAO FEDERAL - FAZENDA NACIONAL APELADO: LOCALIZA RENT A CAR SA Advogado do(a) APELADO: SIGISFREDO HOEPERS - SP186884-A OUTROS PARTICIPANTES: R E L A T Ó R I O Cuida-se de ação de conhecimento, com pedido de antecipação dos efeitos da tutela, processada sob o rito comum, ajuizada por LOCALIZA RENT A CAR S.A. em face da UNIÃO FEDERAL, com vistas à anulação de ato administrativo e ao ressarcimento dos danos materiais ou restituição de bem apreendido. Narra-se que, em 10/05/2019, a empresa autora celebrou contrato de locação com JOÃO HENRIQUE MONTEIRO MOTA, tendo por objeto o veículo GM/Chevrolet, modelo Prisma 1.0 MT Joy E, cor prata, ano fabricação/modelo 2019/2019, Placa QQI9248, para utilização na modalidade Uber. De acordo com a inicial, após o veículo não ter sido devolvido nas condições pactuadas, a locadora tomou conhecimento da apreensão do veículo pela Delegacia da Receita Federal do Brasil em Mundo Novo/MS, em razão da condução de mercadorias estrangeiras sem a regular comprovação de introdução no território brasileiro. Aduz-se que, por ser prestadora de serviços de locação, não teve nenhuma participação na conduta ilegal, razão pela qual a pena de perdimento foi aplicada de forma ilegal e arbitrária. Requer, nesse passo, seja anulado o ato administrativo impugnado, bem como seja a ré condenada a restituir o veículo. Com a inicial, foram juntados documentos. A União contestou o feito. Aduziu, em síntese, ser legítima a aplicação da pena de perdimento. A sentença julgou procedente o pedido. Opostos embargos de declaração por ambas as partes, o recurso da autora foi acolhido, para condenar a ré ao pagamento dos honorários advocatícios, no percentual mínimo do § 3º do art. 85 do CPC, e o recurso da ré foi acolhido em parte, tão somente para prestar esclarecimentos. Em apelação, a União pugnou a reforma da decisão. Com contrarrazões da autora, os autos foram remetidos a esta Corte. É o relatório.
DECLARAÇÃO DE VOTO A Exma. Sra. Desembargadora Federal Marisa Santos Peço vênia para divergir do e. Relator O entendimento do Superior Tribunal de Justiça é tranquilo no sentido de que a pena de perdimento de veículo automotor de propriedade de locadora de veículo utilizado em prática de contrabando não é automática. Para que a pena seja aplicada, é necessário que haja a efetiva demonstração da participação, comissiva ou omissiva, da locadora no fato-crime. Em outros dizeres, a simples constatação de que o veículo automotor foi utilizado para transportar mercadorias contrabandeadas não é suficiente para imputar a pena de perdimento do bem à locadora. É preciso demonstrar que a locadora sabia ou deveria saber que o veículo seria utilizado para fins ilícitos, ou que tenha agido com negligência ou imprudência na sua locação. O fato de a locadora não ter investigado os “antecedentes” do cliente não pode ser utilizado como argumento para se concluir pela responsabilidade da empresa-locadora. Nesse sentido: REsp 1817179/RS, Rel. Ministro Gurgel de Faria, 1ª Turma, j. 17/09/2019, DJe 02/10/2019 - Informativo 658 STJ. Por sua vez, a Súmula 138 do antigo TFR estabelece que "A pena de perdimento de veículo, utilizado em contrabando ou descaminho, somente se justifica se demonstrada, em procedimento regular, a responsabilidade de seu proprietário na prática do ilícito." Este Tribunal possui entendimento no sentido de que a prestação do serviço de fretamento ou locação, a princípio, isenta de responsabilidade o locador/proprietário do veículo automotor apreendido em transporte de mercadorias desacompanhadas de documentação comprobatória de regularidade fiscal, desde que presentes indícios de que os bens pertencem a terceiros, no caso, ao condutor ou eventuais passageiros, e não demonstrada qualquer conduta que possa indicar eventual participação ou facilitação na prática do fato-crime. Com essas considerações, pedindo vênia ao Senhor Relator, NEGO PROVIMENTO à apelação da União.
O Exmo. Sr. Desembargador Federal Souza Ribeiro
Peço vênia para divergir do e. Relator
Tratando-se a autora de empresa locadora de veículos este Tribunal Regional vem entendendo que a prestação do serviço de fretamento ou locação, a princípio, livra de responsabilidade o proprietário locador do veículo apreendido em transporte de mercadorias desacompanhadas de documentação comprobatória de regularidade fiscal, desde que presentes indícios de que os bens pertencem a terceiros, no caso, ao condutor ou eventuais passageiros, e não demonstrada qualquer conduta específica de participação ou facilitação na prática da infração, entendimento este consubstanciado nos termos da Súmula 138, do extinto Tribunal Federal de Recursos:
"A pena de perdimento de veículo, utilizado em contrabando ou descaminho, somente se justifica se demonstrada, em procedimento regular, a responsabilidade de seu proprietário na prática do ilícito"
Ressalte-se que o E. STJ já proferiu decisão no sentido de que “a pessoa jurídica, proprietária do veículo, que exerce a regular atividade de locação, com fim lucrativo, não pode sofrer a pena de perdimento em razão de ilícito praticado pelo condutor-locatário, salvo se tiver participação no ato ilícito para internalização de mercadoria própria, exceção que, à míngua de previsão legal, não pode ser equiparada à não investigação dos "antecedentes" do cliente” (REsp 1817179/RS, Rel. Ministro GURGEL DE FARIA, PRIMEIRA TURMA, julgado em 17/09/2019, DJe 02/10/2019)
Ante o exposto, NEGO provimento à apelação, nos termos da fundamentação supra.
APELAÇÃO CÍVEL (198) Nº 5000701-74.2020.4.03.6006
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V O T O
Pretende-se a restituição do veículo apreendido utilizado para o transporte de mercadorias introduzidas irregularmente no país (sem nota fiscal), sob alegação de boa-fé da proprietária, locadora de automóveis, na medida em que não teria qualquer participação na infração.
A pena de perdimento está prevista nos artigos 96 e 104 do Decreto-lei nº 37/66:
Art. 96 – As infrações estão sujeitas às seguintes penas, aplicáveis separada ou cumulativamente:
I. perda do veículo transportador;
II. perda da mercadoria;
III. multa.
Art.104 - Aplica-se a pena de perda do veículo nos seguintes casos:
...
V - quando o veículo conduzir mercadoria sujeita à pena de perda, se pertencente ao responsável por infração punível com aquela sanção;
Parágrafo único. Aplicam-se cumulativamente: (Redação dada pela Lei nº 10.833, de 2003)
I - no caso do inciso II do caput, a pena de perdimento da mercadoria; (Incluído pela Lei nº 10.833, de 2003)
II - no caso do inciso III do caput, a multa de R$ 200,00 (duzentos reais) por passageiro ou tripulante conduzido pelo veículo que efetuar a operação proibida, além do perdimento da mercadoria que transportar. (Incluído pela Lei nº 10.833, de 2003)”
O Decreto nº 6.759, de 05/02/2009, por conseguinte, ao regulamentar a administração das atividades aduaneiras, fiscalização, controle e tributação das operações de comércio exterior, dispõe, verbis:
“Art. 688. Aplica-se a pena de perdimento do veículo nas seguintes hipóteses, por configurarem dano ao Erário (Decreto-Lei nº 37, de 1966, art. 104; Decreto-Lei nº 1.455, de 1976, art. 24; e Lei nº 10.833, de 2003, art. 75, § 4º):
...
V - quando o veículo conduzir mercadoria sujeita a perdimento, se pertencente ao responsável por infração punível com essa penalidade;
Art. 689. Aplica-se a pena de perdimento da mercadoria nas seguintes hipóteses, por configurarem dano ao Erário (Decreto-Lei nº 37, de 1966, art. 105; e Decreto-Lei nº 1.455, de 1976, art. 23, caput e § 1º, este com a redação dada pela Lei no 10.637, de 2002, art. 59): [...] X - estrangeira, exposta à venda, depositada ou em circulação comercial no País, se não for feita prova de sua importação regular; (g.n.)
Como visto, aplica-se a pena de perdimento ao veículo utilizado para transporte de mercadoria sujeita à mesma penalidade, tendo por fundamento o dano ocasionado ao erário, o qual não se limita a eventual prejuízo financeiro, mas pressupõe desrespeito à legislação e ao controle aduaneiro, em detrimento da política fiscal e alfandegária do país.
Relativamente aos veículos conduzidos por terceiros, é certa a possibilidade de incidir a pena de perdimento que recai à mercadoria, ainda que não tenha o proprietário envolvimento direto no evento ilícito. Nesse sentido, destaco os seguintes arestos do C. Superior Tribunal de Justiça, in verbis:
ADMINISTRATIVO - DECRETO-LEI 37/66 - VIOLAÇÃO DO ART. 535 DO CPC - NÃO OCORRÊNCIA - PENA DE PERDIMENTO DE VEÍCULO - APLICABILIDADE SE COMPROVADA A RESPONSABILIDADE DO PROPRIETÁRIO NA PRÁTICA DO DELITO.
1. Não ocorre ofensa ao art. 535 do CPC se o Tribunal de origem decide, fundamentadamente, as questões essenciais ao julgamento da lide.
2. "A pena de perdimento de veículo utilizado em contrabando ou descaminho somente é aplicada se demonstrada a responsabilidade do proprietário na prática do delito" (Súmula 138 do extinto TFR).
3. A pena de perdimento de veículo utilizado para conduzir mercadoria sujeita a mesma sanção está prevista no art. 96 do Decreto-Lei n.º 37/66, exigindo a norma, para a perfeita subsunção do fato à hipótese nela descrita, que o veículo esteja transportando "mercadoria sujeita à pena de perda, se pertencente ao responsável por infração punível com aquela sanção" (art. 104, V).
4. Tratando-se de dispositivo legal que disciplina, especificamente, a aplicação da pena de perdimento de veículo, a expressão "pertencer ao responsável pela infração" tem relação com o veículo transportador, e não com as mercadorias transportadas.
5. Ainda que o proprietário do veículo transportador ou um preposto seu não esteja presente no momento da autuação, possível será a aplicação da pena de perdimento sempre que restar comprovado, pelas mais diversas formas de prova, que sua conduta (comissiva ou omissiva) concorreu para a prática delituosa ou, de alguma forma, lhe trouxe algum benefício (Decreto-Lei n.º 37/66, art. 95).
6. Entendendo o Tribunal de origem que a empresa autora concorreu para a prática do ato infracional ou dele se beneficiou, não é possível rever essa conclusão em sede de recurso especial, por incidir o óbice da Súmula 7/STJ.
7. A apreensão do veículo durante a tramitação do procedimento administrativo instaurado para averiguar a aplicabilidade da pena de perdimento constitui medida legítima, consoante os ditames do art. 131 do Decreto-Lei n.º 37/66.
8. Recurso especial parcialmente conhecido e, nessa parte, não provido, prejudicado o pedido de antecipação da tutela recursal.
(REsp n. 1.243.170/PR, relatora Ministra Eliana Calmon, Segunda Turma, julgado em 11/4/2013, DJe de 18/4/2013.)
“TRIBUTÁRIO. AGRAVO INTERNO NO RECURSO ESPECIAL. PENADEPERDIMENTO DE VEÍCULO. CONTRATO DE ALIENAÇÃO FIDUCIÁRIA. POSSIBILIDADE.
1. As Turmas que compõem a Primeira Seção deste STJ firmaram entendimento no sentido de que a penadeperdimento por transporte de mercadorias objeto de descaminho ou contrabando pode atingir os veículos sujeitos ao contrato de alienação fiduciária ou de arrendamento mercantil, independentemente da participação do credor fiduciário ou arrendante no evento ilícito. Precedentes: EREsp 1.240.899/SC, Rel. Ministro Og Fernandes, Primeira Seção, julgado em 14/6/2017, DJe 30/6/2017; AgInt no REsp 1.726.032/MS, Rel. Ministro Gurgel de Faria, Primeira Turma, julgado em 16/3/2020, DJe 27/3/2020; REsp 1.628.038/SP, Rel. Ministro Francisco Falcão, Segunda Turma, julgado em 5/11/2019, DJe 18/11/2019.
2. Agravo interno não provido.”
(AgInt no REsp n. 1.692.944/MS, Relator Ministro Sérgio Kukina, DJe de 1/7/2020)
“TRIBUTÁRIO. ADUANEIRO. VEÍCULO OBJETO DE CONTRATO DE LEASING. PENADEPERDIMENTO. CABIMENTO.
1. Conforme estabelecido pelo Plenário do STJ, ‘aos recursos interpostos com fundamento no CPC/2015 (relativos a decisões publicadas a partir de 18 de março de 2016) serão exigidos os requisitos de admissibilidade recursal na forma do novo CPC’. (Enunciado Administrativo n. 3).
2. O Superior Tribunal de Justiça firmou compreensão segundo a qual ‘é admitida a aplicação da penadeperdimento de veículo objeto de alienação fiduciária ou de arrendamento mercantil, independentemente da participação do credor fiduciário ou arrendante no evento que deu causa à pena’ (EREsp 1.240.899/SC, Rel. Ministro OG FERNANDES, PRIMEIRA SEÇÃO, julgado em 14/06/2017, DJe 30/06/2017).
3. Agravo interno desprovido.”
(AgInt no REsp n. 1.726.032/MS, Relator Ministro Gurgel de Faria, DJe de 27/3/2020)
“PROCESSUAL CIVIL. AÇÃO DE IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA. FRAUDES EM LICITAÇÕES. VERBAS PÚBLICAS. DESVIOS. ANÁLISE DE DISPOSITIVOS CONSTITUCIONAIS. COMPETÊNCIA EXCLUSIVA DA SUPREMA CORTE. ALEGAÇÃO DE VIOLAÇÃO DO ART. 1.022 DO CPC/2015. DEFICIÊNCIA DA FUNDAMENTAÇÃO. INCIDÊNCIA, POR ANALOGIA, DO ENUNCIADO N. 284 DA SÚMULA DO STF. AUSÊNCIA DE PREQUESTIONAMENTO. INCIDÊNCIA DO ENUNCIADO DA SÚMULA N. 211/STJ. INCIDENTE DE FALSIDADE. SUSPENSÃO DO PROCESSO PRINCIPAL. PRETENSÃO DE REEXAME FÁTICO-PROBATÓRIO. INCIDÊNCIA DO ENUNCIADO N. 7 DA SÚMULA DO STJ. AGRAVO INTERNO. ALEGAÇÕES DE VÍCIOS NO ACÓRDÃO. INEXISTENTES.
I - Na origem, trata-se de ação ordinária ajuizada pela Bradesco Administradora de Consórcio Ltda. contra a União (Fazenda Nacional) pretendendo anular o auto de infração que culminou na apreensão e aplicação da pena de perdimento do veículo, sob a alegação de ser proprietário indireto, em razão do contrato de alienação fiduciária.
II - Na sentença, julgou-se procedente o pedido para declarar nulo o ato de perdimento do bem, determinando-se a sua devolução e fixando-se honorários advocatícios em 10% sobre o valor atualizado da divida remanescente do financiamento. No Tribunal a quo, a sentença foi mantida. Nesta Corte, deu-se provimento ao recurso especial da União para julgar improcedente o pedido inicial, invertendo-se os honorários advocatícios.
III - Com relação à alegada violação dos arts. 94, 95 e 105 do Decreto-Lei n. 37/66 e dos arts. 123 e 136 do CTN, com razão a recorrente União, dado que o aresto vergastado encontra-se em dissonância com a jurisprudência desta Corte, firmada no sentido de ser admitida a aplicação da penadeperdimento de veículo objeto de alienação fiduciária ou de arrendamento mercantil, independentemente da participação do credor fiduciário ou arrendante no evento que deu causa à pena. A esse respeito, os seguintes julgados: REsp n. 1.694.124/SC, Relator Ministro Herman Benjamin, Segunda Turma, Julgamento em 16/11/2017, DJe 19/12/2017 e AgInt no REsp 1.240.899/SC, Relator Ministra Regina Helena Costa, Primeira Turma, Julgamento em 17/11/2016, DJe 30/11/2016.
IV - Quanto à alegação de violação do art. 1.022 do CPC/2015, verifica-se que o acolhimento da pretensão recursal relacionada à possibilidade de apreensão de veículo objeto alienação fiduciária torna desnecessária a análise de suposta omissão do recurso especial quanto à jurisprudência firmada nesta Corte a respeito do tema.
V - Observado que o entendimento aqui consignado, lastreado na jurisprudência, é prevalente no Superior Tribunal de Justiça, aplica-se o enunciado da Súmula n. 568/STJ, nestes termos: ‘O relator, monocraticamente e no STJ, poderá dar ou negar provimento ao recurso quando houver entendimento dominante acerca do tema.’
VI - Agravo interno improvido.”
(AgInt no REsp n. 1.827.362/MS, Relator Ministro Francisco Falcão, DJe de 10/3/2020)
Assim colocada a questão, para afastar a incidência do perdimento, deve o proprietário do veículo comprovar ter procedido cuidado e correção, o que não ocorreu no presente caso.
Sabe-se que o Estado do Mato Grosso do Sul é uma das principais rotas de contrabando e descaminho de mercadoria trazida de países vizinhos como Bolívia e Paraguai, justamente pela localização próxima às suas fronteiras. Anualmente, a apreensão de mercadoria introduzida ilicitamente em território nacional movimenta milhões de reais e isso lesa o erário de forma patrimonial e sistêmica, situação que não pode ser ignorada.
Sem embargo do entendimento de que a locadora não teria como prever a destinação efetivamente dada ao seu bem pelo locatário, a adoção de cuidados mínimos no momento de verificar a idoneidade de quem pretende alugá-lo fazem parte de qualquer negócio.
E, nesse quadro, é recorrente a utilização de veículos locados para a prática de atos lesivos à Administração Aduaneira, fato que, evidentemente, é de conhecimento da parte autora.
Não se pode olvidar que a empresa aufere os proveitos econômicos decorrentes do exercício da atividade de locação de veículos, do que deflui sua responsabilidade objetiva pelos riscos inerentes ao negócio. Esse, aliás, o teor do art. 927, parágrafo único, do Código Civil, segundo o qual haverá obrigação de reparar o dano, independentemente de culpa, nos casos especificados em lei, ou quando a atividade normalmente desenvolvida pelo autor do dano implicar, por sua natureza, risco para os direitos de outrem.
A respeito do dispositivo em comento, vale reproduzir, por oportuno, as palavras do Ministro Luis Felipe Salomão, segundo o qual a responsabilidade civil objetiva fundada no risco da atividade configura-se quando a atividade normalmente desenvolvida pelo autor do dano causar a pessoa determinada um ônus maior do que aos demais membros da coletividade (atividade habitual que gere uma situação de risco especial) - REsp n. 1.984.282/SP, Quarta Turma, julgado em 16/8/2022, DJe de 22/11/2022.
Embora a consulta ao COMPROT ou demais bancos de dados não seja obrigação prevista em lei, é certo que tal conduta, além de demonstrar postura ativa da empresa na proteção do próprio patrimônio, também contribuiria para evidenciar a posição de terceiro de boa-fé.
Noutro giro, é certo que a empresa pode adotar medidas diversas, como a utilização dos sistemas de georreferenciamento para controle de rotas, serviços de seguro específicos para os casos de transposição de fronteiras, entre outros.
In casu, a consulta ao COMPROT indica a existência de diversos processos em face do locatário (id. 286882835 – fl. 69).
Anote-se que a legislação aduaneira também não condiciona a aplicação da pena de perdimento a que seja comprovada a intenção ou o dolo do proprietário do veículo em lesar o Fisco, nos termos do disposto no Código Tributário Nacional em seu artigo 136:
“Salvo disposição de lei em contrário, a responsabilidade por infração da legislação tributária independe da intenção do agente ou do responsável e da efetividade, natureza e extensão dos efeitos do ato”
Outrossim, ressalte-se que a jurisprudência já se firmou no campo civil pela responsabilização do locador de veículo por danos praticados, a teor do verbete 492 da Súmula do Supremo Tribunal Federal:
“A empresa locadora de veículos responde, civil e solidariamente, com o locatário, pelos danos por eles causados a terceiros, no uso do carro locado.”
Em outras palavras, incumbia à empresa locadora de veículos se cercar das cautelas mínimas, a fim de mitigar os riscos do negócio, sendo certo que as medidas preventivas apontadas pela União Federal não se revelavam dispendiosas ou de grande complexidade, com aptidão de inviabilizar o exercício do negócio.
Todas essas peculiaridades descaracterizam a presunção de boa-fé por parte da parte autora, locadora de veículos, porquanto não demonstrada conduta zelosa e diligente, tampouco probidade a nortear os atos que culminaram no perdimento da mercadoria e dos veículos.
No mesmo sentido aqui esposado, esta e. Turma já decidiu que a mera conduta de dispor veículo próprio para o fim em questão já seria razão lídima para que o interessado seja responsabilizado pelo dano causado ao Erário, porquanto quem disponibiliza o veículo, seja a título gratuito ou oneroso, assume o ônus pelos danos causados pelo condutor e demais passageiros A responsabilidade do proprietário do veículo transportador, quando este não é o dono da mercadoria, demonstra-se através de indícios de falta de boa-fé. No caso, verifica-se que, a despeito de a empresa locadora de veículos, agravada, não possuir o dever legal de, antes de proceder a uma contratação, averiguar em minúcias toda a vida pregressa da outra parte interessada, não obstante aduzir que desconhecia que o veículo seria utilizado para o fim de transportes das mercadorias de forma irregular, há necessidade de justificação de sua omissão ao não efetuar simples consulta ao COMPROT, aberto a consulta pública, onde, no caso em tela, já constava que a pessoa locatária do carro ora em análise tinha prévios registros de contrabando de mercadorias em seu desfavor. Ou seja: à época da celebração do referido contrato, o locatário já possuía registros de apreensões de mercadorias em seu desfavor, o que implicava riscos adicionais à celebração da locação, e esses dados, mais uma vez de se repetir, estavam ao pleno alcance da locadora, ora recorrida (TRF 3ª Região, 6ª Turma, AI - AGRAVO DE INSTRUMENTO - 5012534-65.2020.4.03.0000, Rel. Desembargador Federal LUIZ ALBERTO DE SOUZA RIBEIRO, julgado em 22/02/2021, Intimação via sistema DATA: 02/03/2021)
De toda sorte, conquanto deva a autora suportar os efeitos da pena de perdimento, seus interesses permanecem resguardados, pois a lei civil assegura o direito de pleitear a indenização dos prejuízos ocasionados pelo locatário, como previsto no artigo 570 do Código Civil.
Por fim, vale trazer à baila breves considerações a respeito da Lei nº 12.846/13 (Dispõe sobre a responsabilização administrativa e civil de pessoas jurídicas pela prática de atos contra a administração pública, nacional ou estrangeira, e dá outras providências), conhecida como Lei Anticorrupção, a qual introduziu mecanismos de prevenção e repreensão a atos praticados por pessoas jurídicas, inclusive sociedades empresárias, que atentem contra o patrimônio público nacional ou estrangeiro, contra princípios da administração pública ou contra os compromissos internacionais assumidos pelo Brasil.
Em seu artigo 5º, inciso V, a Lei Anticorrupção elenca como ato lesivo à administração pública qualquer conduta que venha a dificultar atividade de investigação ou fiscalização de órgãos, entidades ou agentes públicos, ou intervir em sua atuação, inclusive no âmbito das agências reguladoras e dos órgãos de fiscalização do sistema financeiro nacional.
Verifica-se, dessarte, o claro intento do legislador de estender a responsabilidade por atos lesivos ao erário àqueles que, mesmo não integrando os quadros da Administração Pública, venham a contribuir, culposa ou dolosamente, para o evento doloso, ainda que de forma indireta.
O artigo 19 da referida lei prescreve inclusive, que, em razão da prática de atos previstos em seu art. 5º, a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, por meio das respectivas Advocacias Públicas ou órgãos de representação judicial, ou equivalentes, e o Ministério Público, poderão ajuizar ação com vistas à aplicação de sanções às pessoas jurídicas infratoras, dentre as quais se insere, justamente, a pena de perdimento de bens, direito ou valores, que representem vantagem ou proveito direta ou indiretamente obtidos da infração.
Como se pode notar, a depender das peculiaridades do caso concreto, seria possível subsumir a conduta de locação de veículo a terceiros, desacompanhada de cautelas mínimas, aos ditames da Lei 12.846/13, cuja edição engendrou novos marcos de compliance empresarial.
Nesse contexto, não assiste razão à demandante em apontar suposta ilegalidade ou abuso de poder na lavratura do ato administrativo que resultou na apreensão de seu veículo, o qual fora utilizado por terceiro para o transporte de mercadoria, introduzidas clandestinamente no território nacional, sem o recolhimento dos tributos pertinentes, e sem as notas fiscais devidamente correspondentes.
Inverto o ônus da sucumbência, condenando a parte autora ao pagamento da verba honorária de 10% sobre o valor corrigido da causa, nos termos do art. 85, § 3º, I, do Código de Processo Civil.
Ante o exposto, dou provimento à apelação.
E M E N T A
ADMINISTRATIVO. TRIBUTÁRIO. MERCADORIAS ESTRANGEIRAS. INTERNAÇÃO EFETUADA DE FORMA IRREGULAR. FATO-CRIME. DESCAMINHO OU CONTRABANDO. VEÍCULO AUTOMOTOR TRANSPORTADOR. LOCADORA DE VEÍCULOS. PROPRIEDADE. PARTICIPAÇÃO NO ILÍCITO. NÃO COMPROVAÇÃO. PENA DE PERDIMENTO DO BEM. ILEGALIDADE.
A pena de perdimento de veículo automotor de propriedade de locadora de veículo utilizado em prática de contrabando não é automática. Para que a pena seja aplicada, é necessário que haja a efetiva demonstração da participação, comissiva ou omissiva, da locadora no fato-crime.
O fato de a locadora não ter investigado os “antecedentes” do cliente não pode ser utilizado como argumento para se concluir pela responsabilidade da empresa-locadora. Precedentes do STJ.
Este Tribunal possui entendimento no sentido de que a prestação do serviço de fretamento ou locação, a princípio, isenta de responsabilidade o locador/proprietário do veículo automotor apreendido em transporte de mercadorias desacompanhadas de documentação comprobatória de regularidade fiscal, desde que presentes indícios de que os bens pertencem a terceiros, no caso, ao condutor ou eventuais passageiros, e não demonstrada qualquer conduta que possa indicar eventual participação ou facilitação na prática do fato-crime.
Apelação da União a que se nega provimento.