RECURSO EM SENTIDO ESTRITO (426) Nº 5002069-38.2023.4.03.6128
RELATOR: Gab. 16 - DES. FED. PAULO FONTES
RECORRENTE: MINISTERIO PUBLICO FEDERAL - PR/SP
RECORRIDO: ALVARO JOSE DO REGO
Advogado do(a) RECORRIDO: MARCO ANTONIO FERREIRA DE ALMEIDA - SP243270-A
OUTROS PARTICIPANTES:
RECURSO EM SENTIDO ESTRITO (426) Nº 5002069-38.2023.4.03.6128 RELATOR: Gab. 16 - DES. FED. PAULO FONTES RECORRENTE: MINISTERIO PUBLICO FEDERAL - PR/SP RECORRIDO: ALVARO JOSE DO REGO Advogado do(a) RECORRIDO: MARCO ANTONIO FERREIRA DE ALMEIDA - SP243270-A OUTROS PARTICIPANTES: R E L A T Ó R I O Trata-se de RECURSO EM SENTIDO ESTRITO interposto pelo MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL em face da decisão (ID 288087989), proferida pelo Juízo Federal da 1ª Vara Criminal de Jundiaí/SP, que rejeitou a denúncia oferecida em face de ÁLVARO JOSÉ DO REGO, com fundamento no art. 395, inc. III, do Código de Processo Penal. Em sede de razões recursais (ID 288087991), o Parquet requereu a reforma da decisão recorrida, para que seja recebida a denúncia e dado regular prosseguimento do feito, sob a argumentação de que restou evidenciada a tipicidade da conduta. Contrarrazões da defesa (ID 288087995). Em sede de juízo de retratação, a decisão foi mantida por seus próprios fundamentos (ID 288087996). A Exma. Procuradora Regional da República, Dra. Adriana da Silva Fernandes, manifestou-se pelo provimento do Recurso em Sentido Estrito, a fim de que a decisão recorrida seja reformada, "em razão da prematura conclusão nela lançada, determinando-se o retorno dos autos à instância de origem com vistas a regular tramitação da ação penal em desfavor de ÁLVARO JOSÉ DO REGO" (ID 283904723). É O RELATÓRIO. Dispensada a revisão, nos termos regimentais.
RECURSO EM SENTIDO ESTRITO (426) Nº 5002069-38.2023.4.03.6128 RELATOR: Gab. 16 - DES. FED. PAULO FONTES RECORRENTE: MINISTERIO PUBLICO FEDERAL - PR/SP RECORRIDO: ALVARO JOSE DO REGO Advogado do(a) RECORRIDO: MARCO ANTONIO FERREIRA DE ALMEIDA - SP243270-A OUTROS PARTICIPANTES: V O T O Do caso dos autos. Cuida-se de Recurso em Sentido Estrito interposto pelo Ministério Público Federal, objetivando o recebimento da denúncia pelo Juiz “a quo”, que a rejeitou com fundamento no art. 395, inc. III, do Código de Processo Penal. No caso vertente, ÁLVARO JOSÉ DO REGO foi denunciado pela suposta prática do crime previsto no art. 20, §2º, da Lei nº 7.716/89 c.c. art. 20-C do mesmo diploma legal. O Juízo da 1ª Vara Federal de Jundiaí/SP rejeitou a denúncia, com fundamento no art. 395, III, do CPP (ID 288087989). Confira-se: "... A denúncia deve ser rejeitada. No caso em análise especialmente esclarecedor o trecho do voto condutor do Min. Rel. Edson Fachin, que, servindo-se dos ensinamentos de Noberto Bobbio, balizou o caráter criminoso que assume o discurso quando ultrapassa três etapas, a saber: “Uma de caráter cognitivo, em que atestada a desigualdade entre grupos e/ou indivíduos; outra de viés valorativo, em que se assenta suposta relação de superioridade entre eles e, por fim; uma terceira, em que o agente, a partir das fases anteriores, supõe legítima a dominação, exploração, escravização, eliminação, supressão ou redução de direitos fundamentais do diferente que compreende inferior” (RHC 134682, Relator(a): EDSON FACHIN, Primeira Turma, julgado em 29/11/2016, PROCESSO ELETRÔNICO Dje-191 DIVULG 28-08-2017PUBLIC 29-08-2017). Não vislumbro que a conduta do investigado, por meio das postagens colacionadas aos autos, perpassa, cumulativamente, as três etapas adotadas como parâmetro pelo Supremo Tribunal Federal. Na realidade, extrai-se que o agente, ainda que de maneira indelicada, realiza uma crítica de cunho político por enxergar como contraditória a política de envio a povos tradicionais de remédios sintéticos e outros elementos que não fazem parte tradicionalmente da cultura daqueles povos. Isso não implica necessariamente na declaração de uma relação de superioridade entre povos ou de uma supressão de direitos fundamentais por entender serem os indígenas seres inferiores. O fato de o agente desconhecer que o artigo princípio da igualdade previsto no artigo 5º da Constituição Federal; a solidariedade como objetivo da nossa República, de que fala o artigo 3º da Carta Maior; ou mesmo o direito à saúde, do artigo 196 da mesma Constituição, são destinados a todos, o que inclui em especial as minorias, não o torna, por si só, em racista, ou praticante de ato assimilado a racismo. A mesma sorte atinge a publicação posterior. O agente tece uma crítica à indústria de cinema, que insere figuras negras em personagens que, pelo posicionamento geográfico não teriam esse fenótipo, apenas para engajamento. Ainda que as palavras utilizadas tenham sido de faro deselegantes, não se extrai delas a legitimação de uma relação de superioridade de raças ou de negação de direitos fundamentais. Pelo exposto, com fundamento no artigo 395, inciso III, do Código de Processo Penal, rejeito a denúncia ofertada contra Álvaro José do Rego." Inconformado, o Parquet requereu a reforma da decisão recorrida, para que seja recebida a denúncia e dado regular prosseguimento do feito, sob a argumentação de que restou evidenciada a tipicidade das condutas (ID 288087991). Do mérito recursal. O recurso é procedente. Inicialmente, oportuno ressaltar que aqui não se trata de um juízo de mérito, o qual só pode advir ao final do curso da ação penal. ÁLVARO JOSÉ DO REGO foi denunciado pela suposta prática do crime previsto no art. 20, §2º, da Lei nº 7.716/89 c.c. art. 20-C do mesmo diploma legal. O art. 20, §2º, da Lei n.º 7.716, assim dispõe: "Art. 20. Praticar, induzir ou incitar a discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional. ... § 2º Se qualquer dos crimes previstos no caput é cometido por intermédio dos meios de comunicação social ou publicação de qualquer natureza: Pena: reclusão, de 2 (dois) a 5 (cinco) anos, e multa (...)". Por sua vez, o art. 20- C do mesmo diploma legal dispõe: "Art. 20-C. Na interpretação desta Lei, o juiz deve considerar como discriminatória qualquer atitude ou tratamento dado à pessoa ou a grupos minoritários que cause constrangimento, humilhação, vergonha, medo ou exposição indevida, e que usualmente não se dispensaria a outros grupos em razão da cor, etnia, religião ou procedência." Segundo a peça acusatória, no dia 24 de janeiro de 2023, com cognição e liberdade volitiva, o denunciado teria praticado discriminação ou preconceito contra a etnia indígena Yanomami, por meio de publicação na rede social Facebook com o seguinte teor: "Meme do ano...Índios que vivem pedindo respeito e autonomia de suas culturas, precisam de Remédios sintéticos, Médicos formados, comida de mercado…", acompanhada de imagem na qual aparecem as palavras "SOS Yanomami" com a foto de um índio aparentemente desnutrido no lugar da letra "O" (ID 288087719, p. 38/39). Ainda, no dia 31 de janeiro de 2023, o denunciado teria praticado, com cognição e liberdade volitiva, discriminação ou preconceito de raça, por meio de publicação no Facebook com o seguinte teor: “Estão querendo empoderar uma turminha (que já é maioria da população aqui), de todo jeito. Adão preto. Velam e Salsicha pretos. Jál viking pretos (essa é fodal)”, acompanhada de imagens de pessoas negras representando Zeus, Kratos e gregos, na Grécia antiga (ID 288087986). Os fatos descritos na denúncia evidenciam a ocorrência de fato típico, haja vista que é possível verificar indícios de intenção discriminatória pautados na ideia de suposta desigualdade entre grupos de seres humanos, em que um se sobrepõe ao outro por determinadas características. Com efeito, considerar alguns seres humanos superiores aos outros por determinadas características ou retirar deles atributos essenciais à sua humanidade é uma forma clara de incitar o preconceito e a discriminação. Conforme bem pontuou a Procuradoria da República, o denunciado "... verbalizou que o acesso a remédios, médicos e comida industrializada seria incompatível com o respeito e a autonomia da cultura indígena. Veja-se que o comentário foi associado à série de mortes por fome e doença entre os Yanomami, considerada "meme" por ÁLVARO. A conduta visou discriminar a condição da pessoa com origem distinta, na medida em que a partir de um pressuposto de desigualdade entre grupos e/ou indivíduos, o agente conclui ser legítimo o amesquinhamento de direitos fundamentais do grupo alvo - no caso, os índios Yanomami - como a sua liberdade, a sua dignidade, a sua cultura. Os indígenas necessitarem de auxílio seria um "meme", e não uma necessidade real. A intenção da comunicação questionada é inequívoca, não havendo espaço para "mal-entendido". Quem considera que algo não é necessário, e apenas mero "meme'" inequivocamente está diminuindo o objeto de sua consideração. Na mesma toada, com relação à postagem relativa à raça negra, verifica-se, igualmente, intenção discriminatória, uma vez que os comentários de que se estaria querendo "(...) empoderar uma turminha (...)", realizados a partir de imagens nas quais, em tese, os negros teriam sido representados em outros grupos (como vikings, gregos etc), denotam que ÁLVARO considera que a raça negra não poderia ser retratada de determinadas formas, para que essa "turminha" não seja "empoderada". Em sede policial, o denunciado afirmou que não teria intenção de ofender ninguém e que tudo não passa de mal entendido sobre o teor de suas mensagens (ID 296972792, p. 6/7). Não obstante a negativa do acusado, a denúncia ofertada atendeu a todos os requisitos previstos no artigo 41 do Código de Processo Penal, e não se vislumbra qualquer das hipóteses previstas no artigo 395 do Código de Processo Penal, a justificar sua rejeição. Por tais fundamentos é que se determina, nesta primeira etapa, de mero juízo de delibação, a observância do princípio in dubio pro societate, não se impondo a mesma certeza necessária para eventual condenação. Nesse sentido é o entendimento deste E. Tribunal, em consonância com a Jurisprudência pátria. Senão, vejamos: "PENAL. RECURSO EM SENTIDO ESTRITO. ESTELIONATO CONTRA A PREVIDÊNCIA SOCIAL. REJEIÇÃO DA DENÚNCIA. INÉPCIA DA DENUNCIA AFASTADA. INDÍCIOS DE AUTORIA DELITIVA. APLICAÇÃO DO PRINCÍPIO IN DUBIO PRO SOCIETATE. 1. Recurso em sentido estrito interposto pelo Ministério Público Federal contra decisão que rejeitou denúncia em que se imputa ao acusado a prática do crime tipificado no artigo 171, §3º, do Código Penal, ao fundamento de que ausência de justa causa e inépcia da denúncia. 2. A denúncia contém exposição clara e objetiva dos fatos ditos delituosos, com narração de todos os elementos essenciais e circunstanciais que lhes são inerentes, atendendo aos requisitos descritos no artigo 41 do Código de Processo Penal, bem como permitindo ao réu o exercício pleno do direito de defesa assegurado pela Constituição Federal. 3. Os fatos descritos na denúncia evidenciam a ocorrência de fato típico, qual seja, a obtenção fraudulenta de benefício previdenciário por meio de documentos falsos. 4. Na fase inicial da ação penal vigora o princípio in dubio pro societate, cumprindo ao juiz a verificação da prova da existência do crime e indícios de autoria, bastando para o recebimento da denúncia a mera probabilidade de procedência da ação penal. A rejeição da denúncia somente se justifica diante da absoluta ausência de indícios de autoria, posto que se existente a prova indiciária, ainda que mínima, a dúvida deve ser resolvida, nesse momento processual, em favor da acusação. Precedentes. 5. Demonstrados indícios suficientes de autoria e da materialidade delitiva, pressupostos da ação penal e elementos motivadores da justa causa para seu início, bem como inexistindo qualquer das hipóteses descritas no artigo 43 do Código de Processo Penal, há elementos suficientes para a instauração da ação penal. 6. Recurso provido." (RSE 00061603020054036181, JUIZ CONVOCADO SILVIO GEMAQUE, TRF3 - PRIMEIRA TURMA, e-DJF3 Judicial 1 DATA:12/08/2010 PÁGINA: 93 ..FONTE_REPUBLICACAO:.) Dessa forma, o recebimento da denúncia, com o consequente prosseguimento da persecutio criminis, é de rigor, inclusive sob o pálio da regra in dubio pro societate, que vigora neste momento processual. Destaque-se, ainda, o teor da Súmula n. 709 do Supremo Tribunal Federal, no sentido de que o provimento de recurso em sentido estrito interposto contra a decisão que rejeita a denúncia importa no seu recebimento: "Súmula 709. Salvo quando nula a decisão de primeiro grau, o acórdão que provê o recurso contra a rejeição da denúncia vale, desde logo, pelo recebimento dela". Diante do exposto, DOU PROVIMENTO ao recurso ministerial, a fim de receber a denúncia proposta em desfavor de ÁLVARO JOSÉ DO REGO, determinando o retorno dos autos ao Juízo a quo para o prosseguimento da ação penal em relação aos fatos apontados na exordial acusatória. É COMO VOTO.
E M E N T A
PENAL. PROCESSO PENAL. RECURSO EM SENTIDO ESTRITO. REJEIÇÃO DA DENÚNCIA. ART. 20, §2º. C.C. ART. 20-C, AMBOS DA LEI Nº 7.716/89. REQUISITOS DO ART. 41 DO CPP VERIFICADOS. PRINCÍPIO DO IN DUBIO PRO SOCIETATE. RECURSO PROVIDO. DENÚNCIA RECEBIDA.
1. Segundo a peça acusatória, no dia 24 de janeiro de 2023, com cognição e liberdade volitiva, o denunciado teria praticado discriminação ou preconceito contra a etnia indígena Yanomami, por meio de publicação na rede social Facebook com o seguinte teor: "Meme do ano...Índios que vivem pedindo respeito e autonomia de suas culturas, precisam de Remédios sintéticos, Médicos formados, comida de mercado…", acompanhada de imagem na qual aparecem as palavras "SOS Yanomami" com a foto de um índio aparentemente desnutrido no lugar da letra "O" (ID 288087719, p. 38/39). Ainda, no dia 31 de janeiro de 2023, o denunciado teria praticado, com cognição e liberdade volitiva, discriminação ou preconceito de raça, por meio de publicação no Facebook com o seguinte teor: “Estão querendo empoderar uma turminha (que já é maioria da população aqui), de todo jeito. Adão preto. Velam e Salsicha pretos. Jál viking pretos (essa é fodal)”, acompanhada de imagens de pessoas negras representando Zeus, Kratos e gregos, na Grécia antiga (ID 288087986).
2. A denúncia contém exposição clara e objetiva dos fatos, com narração de todos os elementos essenciais e circunstâncias que lhes são inerentes, atendendo aos requisitos descritos no artigo 41 do Código de Processo Penal.
3. Os fatos descritos na denúncia evidenciam a ocorrência de fato típico.
4. Nesta primeira etapa, de mero juízo de delibação, vige a observância do princípio in dubio pro societate, não se impondo a mesma certeza necessária para eventual condenação.
5. De acordo com a Súmula n. 709 do Supremo Tribunal Federal, o provimento de recurso em sentido estrito interposto contra a decisão que rejeita a denúncia importa no seu recebimento.
6. Recurso provido a fim de receber a denúncia.