Diário Eletrônico

PODER JUDICIÁRIO

TRIBUNAL REGIONAL FEDERAL DA 3ª REGIÃO
 PODER JUDICIÁRIO
Tribunal Regional Federal da 3ª Região
11ª Turma

APELAÇÃO CRIMINAL (417) Nº 0002243-89.2018.4.03.6102

RELATOR: Gab. 38 - DES. FED. FAUSTO DE SANCTIS

APELANTE: ANA PAULA DA SILVA LEITE

APELADO: MINISTERIO PUBLICO FEDERAL - PR/SP

OUTROS PARTICIPANTES:

 

 


 

  

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Tribunal Regional Federal da 3ª Região
11ª Turma
 

APELAÇÃO CRIMINAL (417) Nº 0002243-89.2018.4.03.6102

RELATOR: Gab. 38 - DES. FED. FAUSTO DE SANCTIS

APELANTE: ANA PAULA DA SILVA LEITE

 

APELADO: MINISTERIO PUBLICO FEDERAL - PR/SP

 

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R E L A T Ó R I O

 


 

O DESEMBARGADOR FEDERAL FAUSTO DE SANCTIS:

 

Trata-se de ação penal movida pelo Ministério Público Federal em face de ANA PAULA DA SILVA LEITE, nascida em 25.07.1980, como incursa no artigo 171, §3º, do Código Penal, em continuidade delitiva.

 

Narra a denúncia (ID 201557921 – fls. 03/07), recebida na data de 24.05.2018 (ID 201557921 – fls. 08/09):

 

O presente inquérito policial foi instaurado a partir do recebimento de notícia -crime encaminhada por meio do ofício de f. 04, oriundo da Gerência Executiva do Instituto Nacional do Seguro Social (INSS) em Ribeirão Preto/SP, dando conta da obtenção indevida de benefício previdenciário após o óbito de sua titular. A partir dessa notitia criminis advinda do INSS, (...) constata-se que a titular do benefício previdenciário n.º 21/125.366.263-8, ANA MARIA DA SILVA LEITE, o percebeu até a data de seu falecimento (19.04.2007). Contudo, os valores da benesse referentes ao período compreendido entre abril de 2007 e junho de 2010, no valor de R$ 32.208,55 (trinta e dois mil, duzentos e oito reais e cinquenta e cinco centavos), corrigidos até 24.08.2016, foram recebidos indevidamente por ANA PAULA DA SILVA LEITE A autarquia encaminhou o procedimento administrativo que apurou a irregularidade em questão (f. 5/88). Consta da documentação supra que os pagamentos eram efetuados pela conta -corrente nº 0000002063, agência nº 264695 da Caixa Econômica Federal em Ribeirão Preto/SP (f. 7). Ademais, consta como procuradora cadastrada no sistema do INSS ANA PAULA DA SILVA LEITE (f. 25). Em pesquisa realizada pela Previdência Social no ano de 2010 (f. 9/10), no intuito de comprovar a vida da titular do benefício, servidora pública compareceu no endereço indicado como de sua residência, ocasião em que foi recebida por ANA PAULA, que informou ser filha de ANA MARIA DA SILVA LEITE. Alegou que sua mãe residia com ela, no entanto não se encontrava em casa naquele momento. A pesquisadora retomou mais três vezes ao local, sendo que em todas elas ANA PAULA DA SILVA LEITE disse que a mãe encontrava-se na casa de sua cunhada, desconhecendo seu endereço. Também não houve êxito em nenhuma das outras tentativas de contato. Verificou-se que o nome de ANA MARIA DA SILVA LEITE constou do Sistema de Informação de Mortalidade (SIM) - Ministério da Saúde (f. 26/27), de forma que o benefício foi cessado (f. 28/29). Foi encaminhado ofício de cobrança à ANA PAULA DA SILVA LEITE, haja vista que ela estava cadastrada como procuradora da titular do benefício (f. 81), mas a Guia da Previdência Social (GPS) não foi quitada, assim como não houve nenhuma manifestação de ANA PAULA (f. 86) Instaurado o inquérito policial (f. 213), ANA PAULA DA SILVA LEITE prestou declarações (f. 97), confirmando que realizou os saques do benefício previdenciário de sua genitora após o falecimento desta, haja vista que precisava do dinheiro para quitar as dívidas contraídas em razão da doença de ANA MARIA. Alegou, ainda, que estaria disposta a restituir o valor recebido indevidamente ao INSS, desde que de forma parcelada. Ao cabo do inquérito policial conclui-se que ANA PAULA DA SILVA LEITE obteve, indevidamente, parcelas do benefício previdenciário NB nº 21/135.366.263-8, após o óbito de sua titular, ANA MARIA DA SILVA LEITE. Assim procedeu sabedora da irregularidade de sua conduta em prejuízo do ente federal. (...)

 

Sentença de procedência da pretensão punitiva Estatal publicada em 11.01.2021, prolatada pelo Exmo. Juiz Federal César de Moraes Sabbag, da 6ª Vara Federal de Ribeirão Preto/SP (ID 201557930), para condenar a ré ANA PAULA DA SILVA LEITE pela prática do crime do artigo 171, §3º, do Código Penal, em continuidade delitiva, a pena de 2 (dois) anos, 2 (dois) meses e 20 (vinte) dias de reclusão, em regime inicial ABERTO, e pagamento de 10 (dez) dias-multa, cada qual no valor unitário de 1/30 do valor do salário-mínimo vigente na data dos fatos. Pena privativa de liberdade substituída por duas penas restritivas de direitos, consistentes na prestação de serviços à comunidade ou a entidades públicas e prestação pecuniária a entidade pública ou privada com destinação social, no valor de 1 (um) salário-mínimo.

 

Apelação interposta pela defesa de ANA PAULA DA SILVA LEITE (ID 201558183) alegando, preliminarmente, nulidade por ausência de oferecimento de proposta de suspensão condicional do processo, nos termos do artigo 89 da Lei n.º  9.099/1995. No mérito, pleiteia a absolvição pelo reconhecimento da prática da conduta criminosa por estado de necessidade ou inexigibilidade de conduta diversa, ou ainda, pela incidência do princípio da insignificância. Subsidiariamente, requer a redução de patamar de aumento em decorrência da continuidade delitiva para 1/3.

 

Contrarrazões de Apelação apresentadas pelo órgão ministerial (ID 201558187).

 

Nesta instância, a Procuradoria Regional da República emitiu parecer (ID 209887746) pelo desprovimento do Apelo da defesa e, de ofício, que seja afastada o reconhecimento da continuidade delitiva.

 

É o relatório.

 

À revisão.

 

 

 

 

 


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V O T O

 

 

 

O DESEMBARGADOR FEDERAL FAUSTO DE SANCTIS:

 

A ré ANA PAULA DA SILVA LEITE foi condenada pela prática do crime descrito no artigo 171, §3º, do Código Penal, em continuidade delitiva. De acordo com a denúncia, a acusada obteve vantagem indevida por receber valores do benefício previdenciário NB n.º 21/125.366.263-8, após o óbito da titular Ana Maria da Silva Leite, no período compreendido entre abril de 2007 e junho de 2010, totalizando um prejuízo à Previdência Social de R$ 32.208,55 (trinta e dois mil, duzentos e oito reais e cinquenta e cinco centavos), corrigidos até 24.08.2016.

 

MATÉRIA PRELIMINAR - DA ALEGADA NULIDADE POR AUSÊNCIA DE OFERECIMENTO DE PROPOSTA DE SUSPENSÃO CONDICIONAL DO PROCESSO

 

Aduz a defesa a necessidade de aplicação do instituto da suspensão condicional do processo neste feito, o que não ocorreu e seria o suficiente para o reconhecimento de nulidade desde o oferecimento da denúncia, sob o argumento de que a pena mínima para o crime de estelionato é um ano de reclusão.

 

Com efeito, a suspensão condicional do processo, que, a despeito de prevista no bojo da Lei nº 9.099, de 26 de setembro de 1995 (que instituiu os Juizados Especiais Cíveis e Criminais), pode incidir em infrações não tidas como de menor potencial ofensivo, tem seu cabimento quando a infração penal imputada ao agente possuir pena mínima abstrata igual ou inferior a 01 ano, conforme é possível ser aferido do art. 89 de indicada legislação: Nos crimes em que a pena mínima cominada for igual ou inferior a um ano, abrangidas ou não por esta Lei, o Ministério Público, ao oferecer a denúncia, poderá propor a suspensão do processo, por dois a quatro anos, desde que o acusado não esteja sendo processado ou não tenha sido condenado por outro crime, presentes os demais requisitos que autorizariam a suspensão condicional da pena (art. 77 do Código Penal).

 

Nota-se do preceito anteriormente transcrito que o critério balizador para a aplicação da suspensão condicional do processo está em se perquirir qual a pena mínima abstratamente aplicada pela legislação (igual ou inferior a um ano), independentemente da espécie de pena privativa de liberdade cominada no preceito secundário do tipo penal (se reclusão ou se detenção).

 

No caso concreto, contudo, o crime de estelionato foi praticado em face de Autarquia Federal (INSS), incidindo a causa de aumento de pena do §3º do artigo 171 do Código Penal (aumento da pena em 1/3), de forma que a pena mínima cominada extrapola o limite imposto pela norma citada (igual ou inferior a um ano).

 

Nestes termos, destaco:

 

PENAL E PROCESSO PENAL. APELAÇÃO CRIMINAL. ESTELIONATO. SUSPENSÃO CONDICIONAL DO PROCESSO. MATERIALIDADE, AUTORIA E DOLO COMPROVADOS. CONDENAÇÃO MANTIDA. SUBSTITUIÇÃO DA PENA PRIVATIVA DE LIBERDADE 1. Tendo em vista que o delito foi praticado contra uma entidade de direito público (Caixa Econômica Federal - CEF), aplica-se a majorante prevista no § 3º do art. 171 do Código Penal no patamar de 1/3 (um terço), de modo que, apesar da pena mínima em abstrato cominada ao crime de estelionato seja de 1 (um) ano, a incidência dessa causa de aumento obsta a concessão da suspensão condicional do processo. 2. Materialidade, autoria e dolo comprovados. 3. Incabível a aplicação do princípio da insignificância no estelionato majorado, eis que há um alto grau de reprovabilidade na conduta do agente. 4. Dosimetria da pena. Pena-base reduzida. 5. Substituição da pena privativa de liberdade por duas penas restritivas de direitos. 6. Apelação parcialmente provida. (g.n.) (TRF3. Ap.Crim. 0006822-95.2009.4.03.6102, Relator Desembargador Federal Nino Toldo, 11ª Turma, julgado em 28.11.2017, e-DJF3: data 04.12.2017)

 

Portanto, não há que se falar em nulidade do feito pela ausência de oferecimento da proposta de suspensão condicionado do processo, sendo o caso de rechaçar a preliminar da defesa.

 

BREVES CONSIDERAÇÕES SOBRE O DELITO DE ESTELIONATO

 

O art. 171, §3º, do Código Penal, assim dispõe:

 

Art. 171: Obter, para si ou para outrem, vantagem ilícita, em prejuízo alheio, induzindo ou mantendo alguém em erro, mediante artifício, ardil, ou qualquer outro meio fraudulento:

Pena - reclusão, de um a cinco anos, e multa.

(...)

§ 3º - A pena aumenta-se de um terço, se o crime é cometido em detrimento de entidade de direito público ou de instituto de economia popular, assistência social ou beneficência.

 

Trata-se de uma modalidade especial de estelionato, praticado contra entidades de direito público ou institutos de economia popular, assistência social ou beneficência (tais como a Caixa Econômica Federal e o INSS, por exemplo), de modo que é maior a reprovabilidade da conduta, já que tais entes prestam serviços fundamentais à sociedade, razão pela qual a lei prevê, para essa hipótese, uma causa especial de aumento de pena a ser considerada na terceira fase da dosimetria da pena.

 

Para a caracterização do crime de estelionato, devem estar presentes três requisitos fundamentais, quais sejam: I) o emprego de meio fraudulento, de que são exemplos o artifício (recurso engenhoso/artístico) e o ardil (astúcia, manha ou sutileza), ambos espécie do gênero fraude; II) o induzimento ou manutenção da vítima em erro; III) a obtenção, em prejuízo alheio, de vantagem ilícita (economicamente apreciável), sem o que não se há de falar em consumação deste delito.

 

A respeito do primeiro requisito (emprego de meio fraudulento), é relevante mencionar que, ontologicamente, não se há de falar em distinção entre fraude penal e fraude civil, já que não há diferenças estruturais entre estas. Com efeito, não existe diferença entre a fraude civil e a fraude penal. Só há uma fraude. Trata-se de uma questão de qualidade ou grau, determinado pelas circunstâncias da situação concreta. Elas é que determinam se o ato do agente não passou de apenas um mau negócio ou se neles estão presentes os requisitos do estelionato, caso em que o fato será punível penalmente (TJRS, AP. Crim. 70013151618, 7ª Câm. Crim., Rel Sylvio Baptista Neto, j. 22.12.2005).

 

É possível que haja um comportamento ilícito e, todavia, circunscrito à esfera civil. Assim, por força dos princípios da intervenção mínima e da fragmentariedade, é necessário, para a caracterização do crime de estelionato, que o agente tenha o dolo como fim especial de agir, sendo imprescindível a consciência, a vontade de enganar, ludibriar, com objetivo de obter vantagem ilícita em detrimento da vítima. É a presença do dolo que distinguirá uma conduta penalmente relevante daquela situação em que, por exemplo, o agente age com boa-fé, sem a intenção de enganar, mas, por motivos diversos, acaba por cometer um ilícito civil. Atente-se que se, por um lado, não se pode adentrar a consciência do indivíduo, por outro, é possível aferir a presença do elemento anímico a partir de fatores externos, ou seja, dos detalhes e circunstâncias que envolvem os fatos.

 

Ademais, ainda tratando da fraude como elemento central do delito de estelionato, é importante falar sobre a frequente hipótese em que a falsidade documental é o meio empregado para se obter êxito na empreitada criminosa. Neste caso, em observância ao princípio da consunção, deve prevalecer o entendimento de que o crime-meio (falsidade documental) deverá ser absorvido pelo crime-fim (estelionato), desde que, depois da utilização do documento falso para obtenção de vantagem ilícita, não reste qualquer potencialidade ofensiva, nos termos da súmula n.º 17 do Superior Tribunal de Justiça, in verbis:

 

Quando o falso se exaure no estelionato, sem mais potencialidade lesiva, é por este absorvido.

 

A respeito do segundo requisito (induzimento ou manutenção da vítima em erro), é relevante mencionar que o erro é a consequência provocada pela fraude e que, em se constatando que a fraude não foi suficientemente hábil para provocar ou manter em erro a vítima (fraude grosseira), deverá haver, em princípio, o reconhecimento da hipótese de crime impossível, por absoluta ineficácia do meio ou absoluta impropriedade do objeto (inteligência do art. 17 do CP).

 

Já a respeito do terceiro requisito (obtenção, em prejuízo alheio, de vantagem ilícita), cabe consignar que, em sendo o estelionato um crime material e de dano, sua consumação se dará com a efetiva obtenção da vantagem, isto é, a partir do momento em que a coisa passar da esfera de disponibilidade da vítima para a do infrator (ou de terceiro).

 

Além disso, não se deve perder de vista que a vantagem obtida pelo agente deve ser ilícita, ou seja, contrária ao ordenamento, uma vez que, se a vantagem for devida, ficará descaracterizado o delito de estelionato, podendo haver, por exemplo, a desclassificação para o delito de exercício arbitrário das próprias razões, nos termos do artigo 345 do CP.

 

Feitas essas breves considerações, passa-se à análise dos fatos descritos na presente ação penal.

 

 DA INAPLICABILIDADE DO PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA

 

Em razões de Apelação, a defesa da ré requer a absolvição por aplicação do princípio da insignificância.

 

O princípio da insignificância (ou da bagatela) demanda ser interpretado à luz dos postulados da mínima intervenção do Direito Penal e da ultima ratio como forma de afastar a aplicação do Direito Penal a fatos de somenos importância (e que, portanto, podem ser debelados com supedâneo nos demais ramos da Ciência Jurídica - fragmentariedade do Direito Penal). Dentro desse contexto, a insignificância tem o condão de afastar a tipicidade da conduta sob o aspecto material ao reconhecer que ela possui um reduzido grau de reprovabilidade e que houve pequena ofensa ao bem jurídico tutelado.

 

O crime previsto no art. 171, §3º, do Código Penal, macula bem jurídico pertencente à coletividade consistente no patrimônio público, o que, por si só, já faz com que seja incabível o pleito de aplicação do postulado em comento, ainda que o ardil tenha causado prejuízo abaixo do valor necessário para que a União Federal tenha interesse em cobrar judicialmente seu crédito por meio do ajuizamento de ação de execução fiscal. Ademais, há que ser consignado que a conduta perpetrada pelo estelionatário também malfere os bens jurídicos da moralidade administrativa e da fé pública (culminando, assim, no mau trato da coisa pública).

 

Importante ser dito que tanto o C. Supremo Tribunal Federal como esta E. Corte adotam o entendimento ora exposto no sentido da impossibilidade do reconhecimento de delito de bagatela quando perpetrada conduta tipificadora do crime de estelionato majorado:

 

ESTELIONATO. SEGURO-DESEMPREGO. INSIGNIFICÂNCIA. Descabe, em se tratando de bem protegido a partir do interesse público, como é o seguro-desemprego, cogitar da insignificância da prática delituosa presente o valor envolvido. (HC 108352 / RS, Relator (a): Min. MARCO AURÉLIO, Julgamento: 10/11/2015, Órgão Julgador: Primeira Turma, Publicação DJe-237 DIVULG 24-11-2015 PUBLIC 25-11-2015); 

 

PENAL. PROCESSUAL PENAL. APELAÇÃO CRIMINAL. ESTELIONATO. SEGURO-DESEMPREGO. PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA. CONTINUIDADE DELITIVA. 1. O princípio da insignificância não é cabível quando se trata de estelionato majorado (CP, art. 171, § 3º). Precedentes. 2. Houve três saques indevidos de seguro-desemprego, em três meses consecutivos, o que caracteriza a continuidade delitiva. 3. Apelação não provida. (...) (TRF 3ª Região, DÉCIMA PRIMEIRA TURMA, ACR - APELAÇÃO CRIMINAL – 0004248-34.2017.403.6130, Rel. DES. FED. NINO TOLDO, julgado em 11/03/2021, e-DJF3 Judicial 1 DATA: 02/06/2021)

 

No mais, o valor do prejuízo causado à Previdência Social, calculado em R$ 32.208,55 (trinta e dois mil, duzentos e oito reais e cinquenta e cinco centavos), corrigidos até 24.08.2016, é superior ao patamar de R$ 20.000,00 adotado para a incidência do princípio da insignificância.

 

Desta feita, todos os aspectos elencados impedem o acolhimento da pretensão de aplicação do princípio da insignificância ao caso ora em julgamento, portanto, resta afastado o pleito da defesa.

 

MATERIALIDADE, AUTORIA E ELEMENTO SUBJETIVO

 

Sem insurgência das partes, constata-se que a materialidade, autoria delitiva e o dolo da ré restaram devidamente comprovadas, conforme trecho destacado da sentença:

 

Materialidade

materialidade delitiva resta demonstrada por meio do Processo Administrativo nº 35426.000242/2013-18 (ID 40009353, p. 9/82), notadamente pelos seguintes documentos: Monitoramento Operacional de Benefícios (p. 30/31), Relação de Créditos (p. 39/40) e Cálculo e Atualização Monetária de Valores Recebidos Indevidamente Relatório Simplificado (p. 30/31).

Autoria e Elemento Subjetivo

Considero verdadeiros os fatos imputados à acusada Ana Paula da Silva Leite.

Em sede policial e em juízo a ré admitiu que praticou o delito descrito na denúncia (ID 40009353, p. 122 e mídia digital de ID 42306497, 01’:12”).

Também asseverou que tinha plena consciência da ilicitude do ato praticado, justificando que os sucessivos saques do benefício previdenciário de sua genitora se deram para pagamento exclusivo de dívidas e despesas contraídas em razão de enfermidade e falecimento daquela.

 

Do alegado estado de necessidade e inexigibilidade de conduta diversa

 

A defesa da ré ANA PAULA DA SILVA LEITE suscita em sua defesa dificuldades financeiras e a necessidade de pagar as despesas deixadas por sua mãe.

 

Primeiramente, o estado de necessidade pressupõe um perigo atual, ou seja, de ocorrência concomitante em relação à consumação do fato típico, o qual deixa de ser antijurídico tendo em vista a necessidade premente e imediata de salvar bem jurídico de maior relevância do que o sacrificado na execução do fato típico. A necessidade econômica não preenche este requisito. Para fazer jus à escusa do estado de necessidade, é imprescindível que o agente se encontre diante de uma "situação de perigo atual", que tenha gerado a "inevitabilidade da conduta lesiva".

 

Trago o artigo 24 do CP:

 

Art. 24 - Considera-se em estado de necessidade quem pratica o fato para salvar de perigo atual, que não provocou por sua vontade, nem podia de outro modo evitar, direito próprio ou alheio, cujo sacrifício, nas circunstâncias, não era razoável exigir-se.

 

A configuração do instituto do estado de necessidade ocorre quando o agente pratica o fato para salvar direito próprio ou alheio de perigo atual desde que não houvesse outro modo de evitá-lo. Por outro lado, a culpabilidade, um dos componentes da configuração do delito, é juízo de reprovação que recai sobre o autor do fato delituoso e se constitui de três elementos: i) imputabilidade, ii) potencial consciência da ilicitude e iii) exigibilidade de conduta diversa, de modo que a ausência de qualquer destes requisitos significa que o agente não é culpável e que, portanto, deve ser afastada a aplicação de pena.

 

É certo que, em tese, a existência de graves dificuldades financeiras poderia levar à conclusão de que era inexigível conduta diversa nas circunstâncias em que o acusado se encontrava. Contudo, para que se justifique a exclusão da culpabilidade, tais dificuldades devem ser intensas, devem extrapolar a mera situação de penúria.

 

Válida, nesse passo, a menção à lição de Aníbal Bruno:

 

[...] Se o reconhecimento da não exigibilidade como causa geral de exculpação abre espaço no sistema penal àquele movimento de justiça que ajusta a prática punitiva às exigências de humanidade e da consciência jurídica, por outro lado, uma aplicação indiscriminada do princípio poderia alargar uma brecha no regime, por onde viriam a passar casos onde evidentemente a punibilidade se impõe, com a consequência de enfraquecer a necessária firmeza do Direito Penal. Além disso, os casos que justificam de maneira mais clamante a aplicação do princípio já se encontram tipificados no Código, e verdadeiramente, fora dessas hipóteses, não há de ser sem rigorosa cautela que se admitirá o poder de exculpação do princípio da não exigibilidade. Não é que deliberadamente só por exceção se deva aplicar o princípio. Mas excepcional é, na realidade, o aparecimento de casos em que de fato, fora da tipificação da lei, se possa dizer que, razoavelmente, e tendo em vista os fins do Direito Penal, não era exigível do agente um comportamento conforme à norma (in Direito Penal. Tomo II. 5ª ed. rev. e atual. Rio de Janeiro: Forense, 2005, p. 64).

 

Este egrégio TRF-3 já pacificou sua jurisprudência no sentido de que meras alegações de dificuldades econômicas e financeiras não caracterizam o estado de necessidade para fins penais:

 

PENAL. PROCESSO PENAL. ESTELIONATO. ART. 171, §3º DO CÓDIGO PENAL. MATERIALIDADE, AUTORIA E DOLO DE AMBOS OS RÉUS COMPROVADOS. AFASTADAS AS ALEGAÇÕES DE EXCLUDENTE DE ILICITUDE E INEXIGIBILIDADE DE CONDUTA DIVERSA. DOSIMETRIA DA PENA. INEXISTEM CIRCUNSTÂNCIAS JUDICIAIS A SEREM VALORADAS. AUSENTES CIRCUNSTÂNCIAS AGRAVANTES OU ATENUANTES. PENA DE AMBOS OS ACUSADOS ACRESCIDA DE 1/3 (UM TERÇO) NOS EXATOS MOLDES PREVISTOS NO §3º, ART. 171, CP, E DE 1/4, EM VIRTUDE DA CONTINUIDADE DELITIVA PREVISTA NO ARTIGO 71, CP. RECURSO DA ACUSAÇÃO A QUE SE DÁ PROVIMENTO. (...) 3- Estado de necessidade. Para acolher a tese defensiva da ré, far-se-ia necessário que a acusada praticasse o fato para salvar direito próprio ou alheio de perigo atual e inevitável, desde que não houvesse outro modo de evitá-lo, o que não ocorre in casu. 4- Inexigibilidade de conduta diversa. A simples alegação de necessidade não permite a prática do crime, mormente se considerada a ausência de provas no feito que corroborem a dificuldade financeira indicada pela defesa da apelada(...) (g.n.) (TRF DA 3ª REGIÃO, 11ª TURMA, ACR 00001620720134036115, REL. JOSÉ LUNARDELLI, e-DJF3 Judicial 1 DATA:16/10/2014)

 

PENAL E PROCESSUAL PENAL. APELAÇÃO CRIMINAL. FURTO QUALIFICADO. REPOUSO NOTURNO. ART. 155, §§ 1º E 4º, I, DO CÓDIGO PENAL. MATERIALIDADE E AUTORIA COMPROVADAS ESTADO DE NECESSIDADE. INAPLICABILIDADE. DOSIMETRIA DA PENA MANTIDA. 1. Materialidade e autoria comprovadas. 2. Estado de necessidade afastado. As alegadas dificuldades do réu não justificam o sacrifício do bem jurídico protegido pela norma penal incriminadora. Não há nenhuma dúvida de que o apelante tinha clara e inequívoca consciência da sua conduta ilícita, que possui elevado grau de reprovabilidade social e, por isso, era plenamente evitável. 3. Dosimetria da pena mantida. 4. Possibilidade de aplicação da causa de aumento de pena relativa à prática do crime durante o repouso noturno (CP, art. 155, § 1º) para o furto qualificado (CP, art. 155, § 4º). Precedentes do STJ. 5. Mantido o valor da pena de prestação pecuniária no patamar fixado pelo juízo a quo. Não há nos autos dados suficientes que permitam aferir a situação econômica do acusado e a sua impossibilidade de arcar com o pagamento. 6. Apelação não provida. (TRF-3 - ApCrim: 00061096720154036181 SP, Relator: DESEMBARGADOR FEDERAL NINO TOLDO, Data de Julgamento: 30/01/2020, DÉCIMA PRIMEIRA TURMA, Data de Publicação: e-DJF3 Judicial 1 DATA:05/02/2020)

 

Assim, a privação financeira, por si só, não se mostra hábil a excluir a tipicidade da conduta ou caracterizar inexigibilidade de conduta diversa, sendo imperiosa a comprovação de que o acusado estava em condição de invencível penúria ou alguma outra situação extrema que não pudesse ser superada de maneira lícita, o que não se verificou.

 

Destaca-se que a acusada relatou que utilizava o valor do benefício previdenciário indevidamente sacado para pagar despesas deixadas pela segurada falecida, contudo, sequer houve a demonstração de tal circunstância, não sendo colacionado aos autos qualquer elemento concreto de suas alegações.

 

Portanto, afastadas as alegações da defesa, resta mantida a condenação da ré ANA PAULA DA SILVA LEITE pelo crime do artigo 171, §3º, do Código Penal.

 

DA DOSIMETRIA DA PENA

 

Quanto à pena aplicada, restou decidido em sentença:

 

A condenada apresenta culpabilidade normal ou adequada ao tipo, não ostentando particularidades quanto ao grau de consciência da ilicitude e possibilidade de agir de modo diverso. Os documentos de ID 40008192, p. 47/50 permitem considerar que a ré possui bons antecedentes. Inexistem elementos seguros sobre a personalidade e conduta social da condenada, devendo esta circunstância judicial ser considerada neutra. Os motivos não refogem à espécie do crime e as circunstâncias não revelam dados relevantes que mereçam ser considerados (meios e modo de execução). As consequências do crime do crime não discrepam da normalidade, sendo adequadas ao tipo. Por fim, comportamento da vítima, instituto de assistência social, foi irrelevante para a ocorrência do delito. Neste quadro - inexistindo circunstâncias judiciais desfavoráveis (art. 59 do CP) - é mínimo o grau de reprovabilidade da conduta, recomendando a fixação da pena-base no limite abstrato mínimo de cominação, totalizando 1 (um) ano de reclusão. Embora reconheça a confissão espontânea da ré, não faço incidir a atenuante prevista no art. 65, III, “d” do CP: nesta fase de aplicação da pena veda-se sua redução abaixo do mínimo legal (Súmula 231 do STJ). Inexistindo agravantes ou outras atenuantes a serem consideradas (arts. 61 a 65 do CP), fixo a pena provisória no patamar anterior. A vítima possui natureza jurídica de instituto de assistência social, devendo incidir causa especial de aumento, no patamar de 1/3 (art. 171, § 3º, do CP), totalizando 1 (um) ano e 4 (quatro) meses de reclusão. Também como causa de aumento de pena, reconheço a ocorrência de crime continuado (art. 71 do CP), considerando que a ré auferiu indevidamente 39 (trinta e nove) parcelas do benefício previdenciário NB 21/125.366.263-8, no período compreendido entre 04.05.2007 e 05.07.2010, potencializando as consequências do delito. Portanto, considerando-se o elevado número de infrações praticadas como critério de dosagem, aumento a pena em 2/3, perfazendo 2 (dois) anos, 2 (dois) meses e 20 (vinte) dias de reclusão, a qual torno definitiva na ausência de outras causas. Atendendo-se ao sistema bifásico e à proporcionalidade com a pena privativa de liberdade, fixo a pena de multa nos seguintes termos: 1º) Em 10 (dez) dias-multa, tendo em vista a reprovabilidade e prevenção do crime; 2º) considerando-se que não há evidências de que a condenada possa suportar economicamente pena mais gravosa, o valor do dia-multa deverá corresponder a 1/30 (um trinta avos) do salário mínimo mensal vigente ao tempo do fato criminoso, nos termos do art. 49, § 1º c/c art. 60, caput, ambos do CP. O regime inicial de cumprimento será o aberto (art. 33, § 2º, “c” e § 3º do CP). Presentes os requisitos do art. 44, I, II, III e § 2º, do CP - e tendo em vista que a medida é socialmente recomendável e suficiente para a prevenção de crimes praticados sem violência ou grave ameaça - converto a pena privativa de liberdade em duas penas restritivas de direitos, a saber: i) prestação pecuniária a entidade pública ou privada com destinação social, no valor de 1 (um) salário mínimo, nos termos do art. 45, § 1º, do CP; e ii) prestação de serviços à comunidade ou a entidades públicas, nos termos do art. 46 do mesmo diploma legal. As penas restritivas de direitos deverão ser cumpridas na forma a ser definida pelo Juízo da Execução.

 

Em razões de Apelação, a defesa requer a redução de patamar de aumento em decorrência da continuidade delitiva para 1/3 e, em parecer, o órgão ministerial pleiteia o afastamento de ofício da continuidade delitiva, haja vista que, estando a própria apelante cadastrada como procuradora da beneficiária e sendo ela, ao longo da vida da titular, a normal recebedora do benefício, no caso concreto não é possível vislumbrar que a fraude tenha sido correspondente a cada parcela sacada pela acusada, que é o que jurisprudência define como requisito para a aplicação da regra da continuidade delitiva (...).

 

É certo que, conforme a atual jurisprudência dos tribunais superiores, em se tratando de estelionato perpetrado contra a Previdência Social, a natureza jurídica do delito será distinta a depender do agente que o praticou, ou seja, se o ilícito for cometido por segurado da previdência (beneficiário), será de natureza permanente, de modo que sua consumação se protrairá no tempo até quando cessar o recebimento indevido do benefício, enquanto que, se o delito for praticado por servidor do INSS ou por terceiro não beneficiário, por meio de fraude consistente na inserção de dados falsos, será instantâneo de efeitos permanentes, de modo que sua consumação ocorrerá na data do pagamento da primeira prestação do benefício (STJ, Sexta Turma, RHC 27.582/DF, Rel. Min. Maria Thereza de Assis Moura, julgado em 15.08.2013, DJe 26.08.2013).

 

No caso dos autos, o que se observou foi que a apelante permaneceu recebendo benefício que, embora fosse devido na origem, deveria ter cessado em virtude da morte da beneficiária (sua genitora), de modo que não se há de falar em crime único, mas sim em conduta reiterada (prática de fraudes mensais), com respectiva obtenção de vantagem ilícita entre os meses de abril de 2007 e junho de 2010.

 

Nestes termos, o entendimento jurisprudencial firmado é de que a cada saque indevido, a cada oportunidade em que o agente utiliza o cartão magnético de terceiro para receber o benefício de segurado falecido, comete nova fraude com lesão ao patrimônio da autarquia, caracterizando-se, assim, a continuidade delitiva. Em outras palavras, quando, para a continuidade dos recebimentos, existe a prática de uma conduta ou formalidade pelo agente, como é o caso, não se há de falar em crime instantâneo de efeitos permanentes, mas em continuidade delitiva.

 

Nesse sentido, colaciono os seguintes julgados:

 

PENAL. AGRAVO REGIMENTAL NO RECURSO ESPECIAL. ESTELIONATO PREVIDENCIÁRIO. SAQUES INDEVIDOS REALIZADOS POR TERCEIRO COM USO DE CARTÃO MAGNÉTICO DE SEGURADA FALECIDA. AGRAVO DEFENSIVO DESPROVIDO. RECURSO ESPECIAL DO MINISTÉRIO PÚBLICO PROVIDO. AGRAVO REGIMENTAL VOLTADO CONTRA AS DUAS DECISÕES. PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA. ENUNCIADOS N. 282, 284 E 356 DA SÚMULA DO STF E 7 DESTA CORTE. CRIME CONTINUADO. POSSIBILIDADE DA APLICAÇÃO DA CAUSA DE AUMENTO DA PENA. TEORIA OBJETIVO-SUBJETIVA. RECURSO IMPROVIDO. Da insurgência contra a decisão que não conheceu do agravo em recurso especial defensivo: 1. Nas razões do recurso especial, a parte não indicou os dispositivos legais supostamente ofendidos. A ausência de tal informação impediu a compreensão da controvérsia. Enunciado 284 da Súmula do Supremo Tribunal Federal. 2. A tese relativa ao princípio da insignificância nos crimes de estelionato previdenciário não foi devolvida à análise da última instância estadual. A ausência de prequestionamento atraiu a incidência dos enunciados 282 e 356 da Súmula do Supremo Tribunal Federal. 3. As instâncias estaduais não apontaram o valor do prejuízo patrimonial suportado pela Autarquia Federal. A análise da alegada irrisoriedade do prejuízo exigiria o reexame de fatos e provas nesta instância extraordinária, o que é vedado pelo enunciado 7 da Súmula desta Corte. Da insurgência contra a decisão que deu provimento ao recurso especial ministerial: 4. Segundo a orientação jurisprudencial do Superior Tribunal de Justiça, há possibilidade de reconhecimento da continuidade delitiva nas hipóteses de estelionato previdenciário, pois cada saque de benefício previdenciário realizado por terceiro, utilizando cartão magnético de segurado falecido, constitui novo delito. 5. O reconhecimento da continuidade delitiva deve observar os requisitos da Teoria Mista.  6. Agravo regimental a que se nega provimento. (STJ, AgRg no REsp 1745532/BA, Rel. Ministro ANTONIO SALDANHA PALHEIRO, SEXTA TURMA, julgado em 23/10/2018, DJe 09/11/2018)

 

PENAL E PROCESSO PENAL. APELAÇÃO CRIMINAL. ARTIGO 171, §3º, DO CÓDIGO PENAL. ESTELIONATO CONTRA A PREVIDÊNCIA SOCIAL. SAQUE FRAUDULENTO DE BENEFÍCIO PREVIDENCIÁRIO. MATERIALIDADE, AUTORIA E DOLO COMPROVADOS. DOSIMETRIA REFORMADA. REGIME INICIAL PRISIONAL. SUBSTITUIÇÃO DA PENA PRIVATIVA DE LIBERDADE EM RESTRITIVA DE DIREITO. POSSIBILIDADE. RECURSO PARCIALMENTE PROVIDO. 1. Imputa-se a SÔNIA REGINA FERRO a prática do delito previsto no artigo 171, §3º, do Código Penal, sob a acusação de que, mediante meio fraudulento, sacou indevidamente benefício previdenciário de terceiro, induzindo e mantendo em erro funcionários de agência dos Correios, em detrimento do Instituto Nacional do Seguro Social - INSS. 2. Não houve impugnação em sede recursal quanto à materialidade e autoria do delito atribuído à ré, assim tornaram-se incontroversas.  Nada obstante, observa-se que a materialidade delitiva está devidamente comprovada e a sentença condenatória examinou com precisão todos os pontos relevantes da lide, bem como o respectivo conjunto probatório. 3. Comprovadas a materialidade, a autoria e o dolo a impulsionar o agir do agente, e não havendo causas de exclusão da ilicitude da conduta ou da culpabilidade da apelante, impõe-se a manutenção da sentença que condenou SÔNIA REGINA FERRO como incurso nas sanções do art. 171, §3º, do Código Penal. 4. A excludente de culpabilidade consubstanciada na inexigibilidade de conduta diversa será aplicada na hipótese em que, praticado o fato típico e ilícito, não se puder exigir do agente que tivesse agido conforme o ordenamento jurídico, em decorrência de situação invencível na qual não resta alternativa ao agente senão cometer o crime. 5. Não se pode aceitar, exceto em casos excepcionalíssimos, que a dificuldade financeira, os problemas de saúde ou a baixa instrução sirvam de escusas para a prática de delitos, sob pena de chancelar o cometimento de ilícitos como meio de vida. Precedentes do TRF3. 6. O estelionato praticado mediante saques fraudulentos de benefícios previdenciários exige a renovação da fraude a cada parcela auferida do benefício. Assim, é imperioso o reconhecimento da continuidade delitiva, pois cada saque de benefício previdenciário realizado por terceiro, utilizando documentos falsificados e o cartão magnético de segurado, constitui novo delito (art. 71 do Código Penal). (...) 11. Configurada a continuidade delitiva, incide a regra de aumento previsto no art. 71 do Código Penal, cuja fração de aumento, segundo entendimento pacificado no e. STJ, deve obedecer a critérios objetivos em função da quantidade de delitos cometidos, ficando estabelecido o aumento de 1/6 pela prática de 2 infrações; 1/5 para 3 infrações; 1/4 para 4 infrações; 1/3 para 5 infrações; 1/2 para 6 infrações e 2/3 para 7 ou mais infrações. (AgRg no HC n. 790.606/SP, relator Ministro Messod Azulay Neto, Quinta Turma, julgado em 24/4/2023, DJe de 28/4/2023.) 12. Em face dos 3 (três) saques fraudulentos realizados pela parte ré nos períodos de 13, 17 e 18 de abril, aplica-se o aumento de 1/5 (um quinto). (...) 15. Apelação parcialmente provida. (TRF3. Ap.Crim. n.º 0008712-11.2018.4.03.6181. Relator Desembargador Federal Hélio Nogueira. 11ª Turma, julgado em 07.06.2024, publicado em 12.06.2024)

 

Destaque-se que o fato de a apelante ser cadastrada como procuradora da beneficiária e, portanto, recebedora do benefício da segurada falecida, não afasta a fraude cometida pelo levantamento de cada parcela indevidamente paga pela autarquia previdenciária, conforme podemos citar no julgado proferido pela Quarta Seção desta E.Corte:

 

PENAL. PROCESSUAL PENAL. EMBARGOS INFRINGENTES E DE NULIDADE. ESTELIONATO PREVIDENCIARIO. ART. 171, §3º, DO CÓDIGO PENAL. SAQUE POR MEIO DE CARTÃO MÁGNETICO DE SEGURADO FALECIDO. NETO QUE ERA PROCURADOR DO AVÔ. CESSAÇÃO DA PROCURAÇÃO NO MOMENTO DO FALECIMENTO. SAQUE INDEVIDO DE BENEFICIO PREVIDENCIARIO POR TERCEIRO. CONTINUIDADE DELITIVA. OCORRENCIA. RECURSO NÃO PROVIDO. 1. Em sede de embargos infringentes, o reexame do mérito da apelação criminal fica restrito ao ponto de divergência entre os julgadores. 2. No caso, verifica-se que o dissenso diz respeito unicamente a incidência, ou não, do instituto do art. 71 do Código Penal (continuidade delitiva) no presente caso, no qual o embargante não era o beneficiário do benefício previdenciário, mas sim o procurador do real beneficiário. 3. Nos termos da jurisprudência dominante, o crime de estelionato previdenciário tem natureza binária: quando praticado pelo próprio beneficiário do benefício indevido, o delito tem natureza permanente, de modo que os saques regulares do benefício, enquanto não descoberta a fraude, configuram reiterada ofensa ao mesmo bem jurídico tutelado pela norma. No entanto, se tratando de delito praticado por terceiros não beneficiários, o crime será instantâneo, de modo que se considera nova ação fraudulenta a cada parcela auferida, perfectibilizando cada saque um delito de estelionato autônomo. 4. O falecimento de Alcebíades Teixeira não somente cessou a obrigação previdenciária do Estado para com ele, como cessou a outorga da procuração que ele concedeu ao neto, de modo que os saques realizados quando o avô do acusado já havia falecido não podem ser tidos como saques realizados na função de procurador do segurado, e para vantagem dele, de modo a afastar a continuidade delitiva. 5. As condutas típicas reiteradas pelo ora embargante, por guardarem idênticas condições de tempo, lugar e maneira de execução, atraem a incidência da continuidade delitiva, nos termos do que dispõe o caput, do art. 71 do Código Penal. 6. Precedentes do Superior Tribunal de Justiça. 7. Embargos infringentes e de nulidades não providos. (TRF3. Embargos Infringentes e de Nulidade n.º 0001330-15.2015.403.6102, Relator Desembargador Federal Paulo Fontes, 4ª Seção, julgado em 20.05.2022, publicado em 24.05.2022)

 

Portanto, é o caso de manter o reconhecimento da prática do crime em continuidade delitiva.

 

Quanto à fração de pena a ser aumentada, é sabido que o Superior Tribunal de Justiça consolidou o entendimento de que deve ser considerado o seguinte parâmetro objetivo, conforme o número de infrações penais praticadas: a) 1/6 de aumento quando forem praticadas duas infrações; b) 1/5 para três; c) 1/4 para quatro; 1/3 para cinco; 1/2 para seis; 2/3 para sete ou mais ilícitos:

 

PENAL. HABEAS CORPUS SUBSTITUTIVO DE RECURSO PRÓPRIO. ROUBOS MAJORADOS. DOSIMETRIA. CONTINUIDADE DELITIVA. TRÊS CONDUTAS PRATICADAS. AUMENTO DE 1/5 CABÍVEL. FLAGRANTE ILEGALIDADE EVIDENCIADA. WRIT NÃO CONHECIDO. ORDEM CONCEDIDA DE OFÍCIO. (...) 3. A exasperação da pena do crime de maior pena, realizado em continuidade delitiva, será determinada, basicamente, pelo número de infrações penais cometidas, parâmetro este que especificará no caso concreto a fração de aumento, dentro do intervalo legal de 1/6 a 2/3. Nesse diapasão, esta Corte Superior de Justiça possui o entendimento consolidado de que, em se tratando de aumento de pena referente à continuidade delitiva, aplica-se a fração de aumento de 1/6 pela prática de 2 infrações; 1/5, para 3 infrações; 1/4 para 4 infrações; 1/3 para 5 infrações; 1/2 para 6 infrações e 2/3 para 7 ou mais infrações. (...) (STJ, Quinta Turma, HC 201701721003, Rel. Ribeiro Dantas, DJe de 11.10.2017)

 

Com o levantamento por valores por bem mais de 07 vezes (38 meses), o juízo a quo aplicou acertadamente a fração de 2/3 ao dosar a pena da ré, não se acolhendo a insurgência da defesa.

 

PENA DEFINITIVA

 

Mantida a condenação da ré ANA PAULA DA SILVA LEITE pela prática do crime do artigo 171, §3º, do Código Penal, em continuidade delitiva, a pena de 2 (dois) anos, 2 (dois) meses e 20 (vinte) dias de reclusão, em regime inicial ABERTO, e pagamento de 10 (dez) dias-multa (na forma eleita na r. sentença, à míngua de insurgência ministerial), cada qual no valor unitário de 1/30 do valor do salário-mínimo vigente na data dos fatos. Pena privativa de liberdade substituída por duas penas restritivas de direitos, consistentes na prestação de serviços à comunidade ou a entidades públicas e prestação pecuniária a entidade pública ou privada com destinação social, no valor de 1 (um) salário-mínimo.

 

DISPOSITIVO

 

Diante do exposto, voto por REJEITAR a matéria preliminar e, no mérito, NEGAR PROVIMENTO à Apelação da ré ANA PAULA DA SILVA LEITE, na forma da fundamentação.

 

É o voto.



E M E N T A

 

PENAL. PROCESSO PENAL. APELAÇÃO CRIMINAL. ESTELIONATO MAJORADO. ARTIGO 171, §3º, DO CÓDIGO PENAL. PRELIMINAR NULIDADE. OFERECIMENTO DE PROPOSTA DE SUSPENSÃO CONDICIONAL DO PROCESSO. INCABÍVEL. SAQUE DE BENEFÍCIO PREVIDENCIÁRIO DE SEGURADA FALECIDA. INAPLICABILIDADE DO PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA. ESTADO DE NECESSIDADE E INEXIGIBILIDADE DE CONDUTA DIVERSA NÃO COMPROVADO. RECEBIMENTO DO BENEFÍCIO NA QUALIDADE DE PROCURADORA DA SEGURADA FALECIDA. CARACTERIZADA A CONTINUIDADE DELITIVA. DELITOS PRATICADOS POR MAIS DE TRÊS ANOS. MANTIDO O AUMENTO DA PENA EM 2/3.

- Matéria preliminar. O critério balizador para a aplicação da suspensão condicional do processo (artigo 89 da Lei n .º 9.099/1995) está em se perquirir qual a pena mínima abstratamente aplicada pela legislação (igual ou inferior a um ano), independentemente da espécie de pena privativa de liberdade cominada no preceito secundário do tipo penal (se reclusão ou se detenção).  No caso concreto, contudo, o crime de estelionato foi praticado em face de Autarquia Federal (INSS), incidindo a causa de aumento de pena do §3º do artigo 171 do Código Penal (aumento da pena em 1/3), de forma que a pena mínima cominada extrapola o limite imposto pela norma citada (igual ou inferior a um ano). Preliminar rechaçada.

- Do princípio da insignificância. O crime previsto no art. 171, §3º, do Código Penal, macula bem jurídico pertencente à coletividade consistente no patrimônio público, bem como malfere os bens jurídicos da moralidade administrativa e da fé pública, sendo incabível a incidência do princípio da bagatela. No mais, no caso concreto, o valor do prejuízo causado à Previdência Social, calculado em R$ 32.208,55 (trinta e dois mil, duzentos e oito reais e cinquenta e cinco centavos), corrigidos até 24.08.2016, é superior ao patamar de R$ 20.000,00 adotado para a incidência do princípio da insignificância.

- Do alegado estado de necessidade e inexigibilidade de conduta diversa. O estado de necessidade pressupõe um perigo atual, ou seja, de ocorrência concomitante em relação à consumação do fato típico, o qual deixa de ser antijurídico tendo em vista a necessidade premente e imediata de salvar bem jurídico de maior relevância do que o sacrificado na execução do fato típico. A necessidade econômica não preenche este requisito. Para fazer jus à escusa do estado de necessidade, é imprescindível que o agente se encontre diante de uma "situação de perigo atual", que tenha gerado a "inevitabilidade da conduta lesiva". É certo que, em tese, a existência de graves dificuldades financeiras poderia levar à conclusão de que era inexigível conduta diversa nas circunstâncias em que o acusado se encontrava. Contudo, para que se justifique a exclusão da culpabilidade, tais dificuldades devem ser intensas, devem extrapolar a mera situação de penúria. A privação financeira, por si só, não se mostra hábil a excluir a tipicidade da conduta ou caracterizar inexigibilidade de conduta diversa, sendo imperiosa a comprovação de que a acusada estava em condição de invencível penúria ou alguma outra situação extrema que não pudesse ser superada de maneira lícita, o que não se verificou nos autos.

- Continuidade delitiva. O que se observou foi que a apelante permaneceu recebendo benefício que, embora fosse devido na origem, deveria ter cessado em virtude da morte da beneficiária (sua genitora), de modo que não se há de falar em crime único, mas sim em conduta reiterada (prática de fraudes mensais, com respectiva obtenção de vantagem ilícita entre os meses de abril de 2007 e junho de 2010).  O entendimento jurisprudencial firmado é de que a cada saque indevido, a cada oportunidade em que o agente utiliza o cartão magnético de terceiro para receber o benefício de segurado falecido, comete nova fraude com lesão ao patrimônio da autarquia, caracterizando-se, assim, a continuidade delitiva. O fato de a ré ser cadastrada como procuradora da beneficiária e, portanto, recebedora do benefício da segurada falecida, não afasta a fraude cometida pelo levantamento de cada parcela indevidamente paga pela autarquia previdenciária (TRF3. Embargos Infringentes e de Nulidade n.º 0001330-15.2015.403.6102, Relator Desembargador Federal Paulo Fontes, 4ª Seção, julgado em 20.05.2022, publicado em 24.05.2022).

- Fração de aumento. O Superior Tribunal de Justiça consolidou o entendimento de que deve ser considerado o seguinte parâmetro objetivo, conforme o número de infrações penais praticadas: a) 1/6 de aumento quando forem praticadas duas infrações; b) 1/5 para três; c) 1/4 para quatro; 1/3 para cinco; 1/2 para seis; 2/3 para sete ou mais ilícitos. Com o levantamento por valores por mais de 07 vezes (38 vezes), o juízo a quo aplicou acertadamente a fração de 2/3 ao dosar a pena da ré, não se acolhendo a insurgência da defesa.

- Matéria preliminar rejeitada e Apelação da ré a que se nega provimento.


  ACÓRDÃO

Vistos e relatados estes autos em que são partes as acima indicadas, REVISÃO RATIFICADA PELO JUÍZ FEDERAL CONV. NILSON LOPES, a Décima Primeira Turma, por unanimidade, decidiu REJEITAR a matéria preliminar e, no mérito, NEGAR PROVIMENTO à apelação da ré ANA PAULA DA SILVA LEITE, nos termos do relatório e voto que ficam fazendo parte integrante do presente julgado.

FAUSTO DE SANCTIS
DESEMBARGADOR FEDERAL