SUSPENSÃO DE LIMINAR E DE SENTENÇA (11555) Nº 5011834-50.2024.4.03.0000
RELATOR: Gab. Presidência
REQUERENTE: ESTADO DE SAO PAULO
REQUERIDO: SUBSEÇÃO JUDICIÁRIA DE SÃO PAULO/SP - 8ª VARA FEDERAL CÍVEL
OUTROS PARTICIPANTES:
SUSPENSÃO DE LIMINAR E DE SENTENÇA (11555) Nº 5011834-50.2024.4.03.0000 RELATOR: Gab. Presidência REQUERENTE: ESTADO DE SAO PAULO REQUERIDO: SUBSEÇÃO JUDICIÁRIA DE SÃO PAULO/SP - 8ª VARA FEDERAL CÍVEL OUTROS PARTICIPANTES: R E L A T Ó R I O Trata-se de agravos internos interpostos pelo Ministério Público Federal e pela Defensoria Pública da União à decisão da Presidência que deferiu suspensão da liminar que foi parcialmente concedida na ação civil pública 5009616-82.2024.4.03.6100 – ajuizada pelo parquet federal e Defensoria Pública do Estado de São Paulo em face da União e do Estado de São Paulo - “para determinar que no prazo de 120 (cento e vinte) dias, o ESTADO DE SÃO PAULO apresente plano de implementação de Comitê e Mecanismo Estadual de Prevenção e Combate à Tortura (MEPCT/SP), com a estrutura, os recursos orçamentários e o número de cargos necessários ao adequado funcionamento do órgão e à realização de visitas periódicas (no mínimo, anuais) a todos os locais de privação de liberdade existentes no território paulista, precedido de consulta prévia aos órgãos do Sistema Nacional de Prevenção e Combate à Tortura e instituições da sociedade civil, sob pena de multa de R$ 100.000,00 (cem mil reais), em caso de descumprimento de cada etapa prevista no cronograma; [...] no prazo de 10 (dez) dias úteis, o ESTADO DE SÃO PAULO apresente um cronograma com as etapas de cumprimento desta decisão, especialmente informando as datas, horário e local das reuniões com os órgãos da União e com os autores da presente ação”. Alegou o Ministério Público Federal que: (1) embora figure no polo passivo da ação civil pública, a União concordou com a pretensão autoral para implementação da estrutura estadual de combate à tortura; (2) em cumprimento ao compromisso internacional assumido no Protocolo Facultativo à Convenção contra a Tortura e Outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes, do qual o Brasil é signatário (Decreto 6.085/2007), foi editada a Lei 12.847/2013, criando o Sistema Nacional de Prevenção e Combate à Tortura e prevendo a possibilidade de sua integração por “comitês e mecanismos estaduais e distritais de combate à tortura” (artigo 2°, § 2°, I); (3) considerando a forma de organização do sistema penitenciário nacional, cuja maioria dos estabelecimentos penais encontra-se sob administração dos Estados, inexiste discricionariedade na criação de Comitês e Mecanismos Estaduais de Prevenção e Combate à Tortura, mas poder-dever da Administração, pois sem a efetiva participação dos Estados da Federação, o cumprimento da Convenção Internacional restará prejudicado, impedindo a efetividade do Sistema Nacional criado e inviabilizando o fortalecimento da prevenção e combate à tortura; (4) o artigo 29 do Protocolo Facultativo à Convenção contra a Tortura e Outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes dispõe que as normas ali constantes “deverão abranger todas as partes dos Estados federais sem quaisquer limitações ou exceções”, o que demonstra estarem abrangidos os Estados da Federação; e (5) não houve, assim, interferência nas atribuições do Poder Executivo Estadual pela liminar deferida na origem, que se limitou a determinar o cumprimento do Protocolo Facultativo, dando efetividade às garantias constitucionais previstas no artigo 5°, XLIII, XLVII e XLIX, da CF, não havendo lesão grave à economia pública ou grave dano à ordem pública, por não haver imposição à Administração Estadual de imediata implantação e funcionamento do Comitê e Mecanismo Estadual de Prevenção e Combate à Tortura, mas somente apresentação de plano de implementação, com previsão, apenas, da estrutura e recursos orçamentários necessários, sem especificar quais órgãos devem ser criados ou recursos mínimos a serem destinados, nem servidores a serem remanejados, não gerando, pois, despesa pública, nem incidindo nas hipóteses da Lei 8.437/1992. Alegou, por sua vez, a Defensoria Pública da União que: (1) teve deferido seu ingresso nos autos de origem na condição de custos vulnerabilis, em razão do objeto da ação guardar estreita relação com suas funções institucionais (“exercício de sua Procuratura Constitucional dos Necessitados”), notadamente promoção e defesa de direitos humanos, em nada se confundindo com a atuação do amicus curiae; (2) a estrutura do sistema penitenciário do Brasil, com a maioria dos estabelecimentos sob administração estadual, revela a necessidade da criação de comitês e mecanismos de prevenção e combate à tortura no âmbito dos Estados da Federação, pelo que não se cogita de discricionariedade, estando a medida prevista internacionalmente, assim como na legislação nacional (artigo 2º, § 2º, da Lei 12.847/2013), para efetivo e integral cumprimento da convenção internacional pelo país; (3) a decisão liminar visou apenas a dar efetividade a garantias constitucionais, limitando-se a determinar a apresentação de plano em prazo razoável, sem impor criação de órgãos ou destinação de recursos, sem desrespeitar as atribuições do Governo Estadual, não incorrendo, portanto, em risco de lesão grave à economia ou à ordem pública; (4) há interesse da União, que envidou esforços para implantação de planos, comitês e mecanismos estaduais de combate à tortura, sendo que apenas São Paulo e outros três estados quedaram-se inertes; e (5) a instalação do Comitê e Mecanismo Estadual de Prevenção e Combate à Tortura pode pressionar o executivo (federal e estadual) a seguir normas de direitos humanos internacionais ou promover novos atos para que "se obtenha a consistência necessária com o Direito Internacional dos Direitos Humanos". Houve pedido para admissão no feito como amicus curiae pela AMPARAR - Associação de Amigos e Familiares de Presos/as e Internos/as da Fundação Casa; Conectas Direitos Humanos; Grupo Tortura Nunca Mais; Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCRIM); Instituto de Defesa do Direito de Defesa - Márcio Thomaz Bastos (IDDD); Instituto Resgata Cidadão; Instituto Terra, Trabalho e Cidadania (ITTC); Pastoral Carcerária Nacional – CNBB; e Rede de Proteção e Resistência contra o Genocídio (ID’s. 293955858 e 293955855). É o relatório.
SUSPENSÃO DE LIMINAR E DE SENTENÇA (11555) Nº 5011834-50.2024.4.03.0000 RELATOR: Gab. Presidência REQUERENTE: ESTADO DE SAO PAULO REQUERIDO: SUBSEÇÃO JUDICIÁRIA DE SÃO PAULO/SP - 8ª VARA FEDERAL CÍVEL OUTROS PARTICIPANTES: V O T O Senhores Desembargadores, preliminarmente, cumpre registrar que em 23/04/2024 foi deferido o ingresso da Defensoria Pública da União no feito originário, como terceira interessada (ID 322781058 da ação de origem), de modo que, já integrando a relação processual de origem, conhece-se do recurso da DPU. Ainda, antes do mérito, não se admite a intervenção amicus curiae em pedido de suspensão de decisão judicial, sob pena de desvirtuamento de sua finalidade e disciplina normativa, conforme jurisprudência consolidada do Supremo Tribunal Federal e do Superior Tribunal de Justiça. A função do amicus curiae consiste em subsidiar e qualificar o debate em questões controvertidas, admitindo-se ingresso a partir de análise do binômio necessidade-representatividade e de avaliação dos benefícios potencialmente aferíveis de participação no caso concreto para a formação de convencimento do magistrado ou colegiado. No caso, entretanto, a análise do pedido de suspensão não adentra o debate meritório, de modo que o convencimento judicial para decidir prescinde de subsídio especializado “acerca da definição de interpretação de lei federal e de aplicação dos tratados internacionais ratificados pelo Brasil” (ID. 293955858, f. 8), sob pena de substituição indevida do juízo cognitivo ordinário do processo de origem. Com efeito, sequer há fase instrutória ou amplo contraditório no rito do incidente processual de suspensão de liminar ou de sentença (STJ, Pet na SLS 3387, Min. MARIA THEREZA DE ASSIS MOURA, 08/04/2024), tampouco incursão no mérito da controvérsia, limitando-se a respectiva análise à aferição de flagrante ilegitimidade concomitante ao risco de grave lesão à ordem, à saúde, à segurança e à economia públicas no cumprimento da decisão impugnada. A propósito: STA 831 AgR-terceiro, Rel. Min. ROSA WEBER, DJe de 31/10/2023: “AGRAVO INTERNO EM SUSPENSÃO DE TUTELA ANTECIPADA. PEDIDO DE INGRESSO COMO ASSISTENTE. INVIABILIDADE DA INTERVENÇÃO DE TERCEIROS OU DA PARTICIPAÇÃO DE AMICUS CURIAE EM SEDE SUSPENSIVA. PRECEDENTES. SITUAÇÃO EXCEPCIONAL NÃO CONFIGURADA. SUSPENSÃO QUE NÃO SE PRESTA À FORMAÇÃO DE PRECEDENTES SOBRE O MÉRITO DA CONTROVÉRSIA NEM À CORREÇÃO DAS DECISÕES DOS TRIBUNAIS LOCAIS. AGRAVO NÃO PROVIDO. 1. É da jurisprudência deste Supremo Tribunal Federal a inviabilidade da intervenção de terceiros, tal como a assistência, na estreita via da suspensão, é dizer, assentado o “descabimento de assistência em suspensão de segurança, que é apenas uma medida de contracautela, sob pena de desvirtuamento do arcabouço normativo que disciplina e norteia o instituto da suspensão (Leis 4.348/64, 8.437/92 e 9.494/97)” (SS 3273-AgR-segundo, Rel. Min. Ellen Gracie, DJe 20.6.2008), aplicada tal compreensão inclusive em incidentes suspensivos em procedimentos diversos do mandado de segurança (SL 1054-AgR-ED-AgR, Rel. Min. Dias Toffoli, Pleno, DJe 17.4.2020, v.g.). 2. Ainda que se trate, na origem, de procedimento comum — de cognição plena e exauriente —, e não de mandado de segurança, o instrumento processual da contracautela mantém o seu caráter sumário e excepcional, incompatível com a produção incidental de provas e com o exame aprofundado de fatos, devendo tais aspectos do litígio ser apreciados no âmbito das vias processuais ordinárias. 3. O pleito da agravante não se enquadra, tecnicamente, nas hipóteses legais de assistência, seja simples, seja litisconsorcial (arts. 119 a 124 do Código de Processo Civil), pois não integra a relação jurídica debatida na origem nem tem relação jurídica dependente ou conexa. Mais se aproxima da participação do amicus curiae, pretendendo contribuir com a discussão de questões de direito. 4. Igualmente restritiva a compreensão firmada por este Supremo Tribunal Federal quanto ao ingresso de amicus curiae em suspensões. Apenas excepcionalmente já admitida a participação (SL 1303-MC, Rel. Min. Luiz Fux, DJe 24.3.2020; e SL 1186, Rel. Min. Dias Toffoli, DJe 05.2.2019), excepcionalidade não configurada na espécie. Inexistente particularidade a tornar relevante a contribuição da entidade de classe com o debate de questões de mérito em abstrato. 5. O escopo precípuo da via suspensiva é evitar grave lesão aos valores tutelados pelo microssistema normativo das contracautelas, e não a formação de precedentes sobre o mérito da controvérsia, tampouco a correção das decisões proferidas pelos Tribunais locais. 6. Agravo não provido.” No mesmo sentido, os seguintes pronunciamentos monocráticos da Corte Superior, entre outros: SLS 3247, Rel. Min. MARIA THEREZA DE ASSIS MOURA, DJe de 22/03/2023; PET na SLS 3152, Rel. Ministro HUMBERTO MARTINS, DJe de 09/08/2022. Cabe destacar, ainda, que “a admissão de amicus curiae no feito é uma prerrogativa do órgão julgador, na pessoa do relator, razão pela qual não há que se falar em direito subjetivo ao ingresso” (AgInt nos EDcl na PET no REsp 1.657.156/RJ, Rel. Min. BENEDITO GONÇALVES, DJe de 18/4/2018). Neste contexto é que se indefere o pleito da AMPARAR - Associação de Amigos e Familiares de Presos/as e Internos/as da Fundação Casa; Conectas Direitos Humanos; Grupo Tortura Nunca Mais; Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCRIM); Instituto de Defesa do Direito de Defesa - Márcio Thomaz Bastos (IDDD); Instituto Resgata Cidadão; Instituto Terra, Trabalho e Cidadania (ITTC); Pastoral Carcerária Nacional – CNBB; e Rede de Proteção e Resistência contra o Genocídio (ID’s. 293955858 e 293955855). No mérito, não assiste razão aos agravantes. Conforme já consignado na decisão ora recorrida, a suspensão de execução de decisão judicial proferida contra o Poder Público é medida excepcional, que extrapola a recorribilidade ordinária, exigindo requisitos específicos a partir da comprovação do manifesto interesse público e flagrante ilegitimidade da decisão, associada à demonstração da concorrência de grave lesão à ordem, à saúde, à segurança ou à economia pública, nos termos do artigo 4º da Lei 8.437/1992. O pedido suspensivo tem caráter autônomo e, portanto, não é prejudicado pela interposição ou não do recurso, nem por eventual decisão de indeferimento da tutela requerida. A excepcionalidade da medida, por gerar a competência do presidente do tribunal para sua apreciação, ainda que a decisão judicial tenha sido impugnada pela via recursal própria, e por envolver juízos específicos, não é autorizada apenas por se tratar de pretensão deduzida pelo Poder Público nem se houver mera ilegalidade contrastada por fundamento jurídico relevante, e for somente arguido provável risco de ineficácia da medida suspensiva ou irreversibilidade da situação jurídica derivada da decisão impugnada. A avaliação de fundamento jurídico relevante ou probabilidade do direito e da urgência para suspender a decisão agravada envolve cognição ordinária sujeita, segundo regras do devido processo legal, à competência do órgão recursal próprio, relator e turma no âmbito do tribunal e, portanto, não se trata, nesta especialíssima sede processual, de promover substituição do juízo cognitivo proferido na origem com incursão, ainda que perfunctória no mérito, ou em temas afetos estritamente à probabilidade do direito ou relevância da fundamentação jurídica do pedido. A excepcional competência do presidente do tribunal exige notabilizadas qualificações jurídicas tanto da pretensão como da situação gerada pela decisão impugnada se mantida eficaz: manifesto interesse público e flagrante ilegitimidade, capaz de gerar grave lesão não a qualquer bem jurídico, mas à ordem, à saúde, à segurança ou à economia pública. É firme a jurisprudência em destacar a excepcionalidade da competência suspensiva de decisão judicial pelo presidente do tribunal ao qual couber o exame do recurso próprio: SL 1.496 AgR, Rel. Min. LUIZ FUX, julgado em 21/06/2022: "AGRAVO INTERNO NA SUSPENSÃO DE LIMINAR. DECISÃO DE ORIGEM QUE INDEFERE TUTELA PROVISÓRIA RECURSAL EM APELAÇÃO EM EMBARGOS DE TERCEIRO. POTENCIAL CONSTRIÇÃO DE VERBAS MUNICIPAIS PARA A SATISFAÇÃO DE DÉBITOS DE EMPRESA ESTATAL. ALEGADO RISCO À ORDEM E À ECONOMIA PÚBLICA. DESCABIMENTO. AÇÃO DE ORIGEM PROPOSTA PELA MUNICIPALIDADE. LITERALIDADE DO CAPUT DO ART. 4º DA LEI 8.437/1992. NECESSIDADE DE DILAÇÃO FÁTICO-PROBATÓRIA, INCABÍVEL NA VIA ESTREITA DAS SUSPENSÕES. AGRAVO A QUE SE NEGA PROVIMENTO. 1. O incidente de contracautela é meio processual autônomo de impugnação de decisões judiciais, franqueado ao Ministério Público ou à pessoa jurídica de direito público interessada exclusivamente quando se verifique risco de grave lesão à ordem, à saúde, segurança e à economia públicas no cumprimento da decisão impugnada (art. 4º, caput, da Lei 8.437/1992; art. 15 da Lei 12.016/2009 e art. 297 do RISTF). 2. Nos termos da literalidade do art. 4º, caput, da Lei 8.437/1992, o incidente de contracautela só tem cabimento com vistas à sustação da execução de liminar deferida em “ações movidas contra o Poder Público ou seus agentes”, do que deflui a legitimidade ativa exclusiva do ente público réu, além do Ministério Público. A admissão do incidente de contracautela em ações promovidas por ente público, com vistas à obtenção de tutela provisória não obtida nas instâncias ordinárias, equivaleria à utilização do instituto da suspensão como sucedâneo recursal, o que não se admite à luz da jurisprudência pacificada deste Supremo Tribunal Federal. 3. In casu, a ação de origem foi proposta pelo Município autor, do que deflui o não cabimento do pedido de suspensão por ele ajuizado - salientando a natureza de ação de conhecimento dos embargos de terceiro. 4. Ademais, a verificação acerca da titularidade das verbas eventualmente constritas e da forma de desenvolvimento da atividade econômica da empresa CINEBASE demandaria dilação fático-probatória, providência incabível na espécie. Precedentes. 5. Agravo interno a que se nega provimento." AgInt na SLS 3.090, Rel. Min. MARIA THEREZA DE ASSIS MOURA, DJe 27/03/2023: "AGRAVO INTERNO NA SUSPENSÃO DE LIMINAR. PROCESSUAL CIVIL. REPARTIÇÃO DE RECEITAS TRIBUTÁRIAS. VALOR AGREGADO FISCAL - VAF. INCLUSÃO (OU NÃO) DO IPI NA BASE DE CÁLCULO. MATÉRIA OBJETO DE AÇÃO ORDINÁRIA (OBRIGAÇÃO DE FAZER). TUTELA ANTECIPADA DEFERIDA SUSPENSA EM SEDE DE AGRAVO DE INSTRUMENTO. GRAVE LESÃO À ORDEM OU À ECONOMIA PÚBLICAS. AUSÊNCIA DE DEMONSTRAÇÃO. INEXISTÊNCIA DE FUNDAMENTAÇÃO ABSURDA OU CONTRÁRIA A ANTERIOR DECISÃO DO STJ. SUSPENSÃO DA SEGURANÇA DENEGADA. AGRAVO REGIMENTAL PROVIDO. 1. O instituto da suspensão de liminar ou sentença proferida contra o Poder Público é medida excepcional, cujos pilares se assentam no (manifesto) interesse público, flagrante ilegitimidade de parte e prevenção de grave lesão à ordem, à saúde, à segurança e à economia públicas. 2. Já decidiu o STJ: "A suspensão de liminar ou segurança deve ser vista e utilizada como via absolutamente excepcional, de rígida vinculação aos núcleos legais duros autorizativos previstos na legislação ('ordem', 'saúde', 'segurança', 'economia' públicas), que devem ser interpretados de maneira estrita, sendo vedada dilatação ou afrouxamento das hipóteses de cabimento ou de legitimação, p. ex. , para ampliar o rol dos legitimados ativos legalmente estabelecidos (o 'Ministério Público' e a 'pessoa jurídica de direito público interessada') ou, no mérito, para se distanciar dos valores ético-jurídicos legitimadores da medida" (AgInt na SS n. 2.951/CE, Rel. Min. Herman Benjamin). 3. Ainda que seja indicada breve incursão no mérito da demanda a fim de buscar sinais da plausibilidade do direito com vistas a evitar a manutenção de situações ilegítimas, ou seja, um juízo de delibação mínimo acerca da controvérsia principal, o incidente da suspensão de segurança, por não ser sucedâneo recursal, é inadequado para a apreciação do mérito da controvérsia. 4. Não se divisa a presença dos requisitos legais - grave lesão à ordem ou à economia públicas - na decisão que, ao atribuir efeito suspensivo a agravo de instrumento, sustou os efeitos de tutela antecipada que determinou a consideração do IPI na base de cálculo do Valor Agregado Fiscal - VAT, na medida em que, só por si, não representa decréscimo nas receitas do município. O município já não contava com essa potencial receita antes do ajuizamento da ação. 5. Já decidiu a Corte Especial do STJ: "O pedido de contracautela visa a suspender a eficácia de decisão cautelar que promove alteração na situação jurídica em que se encontrava o Poder Público anteriormente ao ajuizamento de processo judicial. Por isso, pressupõe-se que a Fazenda Pública figure no polo passivo da causa originária principal. Nas hipótese em que a Administração é demandante (autora), é ela quem almeja a modificação do status quo ante. Tal quadro não permite o manejo de requerimento suspensivo" (AgInt na SLS n. 2.358/MA, Rel. Min. Laurita Vaz). 6. Não configurados os pressupostos ao deferimento da suspensão de liminar ou sentença, sua negativa se impõe. 7. Agravo interno provido". No caso, cuida-se, na origem, da ACP 5009616-82.2024.4.03.6100, proposta pelo Ministério Público Federal e Defensoria Pública do Estado de São Paulo em face da União e Estado de São Paulo, objetivando compelir os requeridos a implementar, em cooperação e dentro de suas competências, o Comitê e o Mecanismo Estadual de Prevenção e Combate à Tortura. Foi inicialmente deferida em parte liminar “para determinar que: no prazo de 120 (cento e vinte) dias, o ESTADO DE SÃO PAULO apresente plano de implementação de Comitê e Mecanismo Estadual de Prevenção e Combate à Tortura (MEPCT/SP), com a estrutura, os recursos orçamentários e o número de cargos necessários ao adequado funcionamento do órgão e à realização de visitas periódicas (no mínimo, anuais) a todos os locais de privação de liberdade existentes no território paulista, precedido de consulta prévia aos órgãos do Sistema Nacional de Prevenção e Combate à Tortura e instituições da sociedade civil, sob pena de multa de R$ 100.000,00 (cem mil reais), em caso de descumprimento de cada etapa prevista no cronograma; [...] no prazo de 10 (dez) dias úteis, o ESTADO DE SÃO PAULO apresente um cronograma com as etapas de cumprimento desta decisão, especialmente informando as datas, horário e local das reuniões com os órgãos da União e com os autores da presente ação”. Tal liminar, entretanto, restou suspensa pela decisão ora recorrida, sob o fundamento, em síntese, de que não restou configurada a ilegalidade na não-instituição de Comitê ou Mecanismo de Prevenção à Tortura no âmbito do Estado de São Paulo. Com efeito, restou contextualizado que o Protocolo Facultativo à Convenção contra a Tortura e Outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes, promulgado pelo Decreto 6.085/2007, estabelece “um sistema de visitas regulares efetuadas por órgãos nacionais e internacionais independentes a lugares onde pessoas são privadas de sua liberdade, com a intenção de prevenir a tortura e outros tratamentos ou penas cruéis, desumanos ou degradantes” (artigo 1°). Tal documento previu que os Estados-Parte signatários devem “designar ou manter em nível doméstico um ou mais órgãos de visita encarregados da prevenção da tortura e outros tratamentos ou penas cruéis, desumanos ou degradantes (doravante denominados mecanismos preventivos nacionais)” (artigo 3°). Assim, com a edição da Lei 12.847/2013, instituiu-se, no âmbito nacional, o “Sistema Nacional de Prevenção e Combate à Tortura” (SNPCT), com finalidade de “fortalecer a prevenção e o combate à tortura, por meio de articulação e atuação cooperativa de seus integrantes, dentre outras formas, permitindo as trocas de informações e o intercâmbio de boas práticas”, integrado por “órgãos e entidades públicas e privadas com atribuições legais ou estatutárias de realizar o monitoramento, a supervisão e o controle de estabelecimentos e unidades onde se encontrem pessoas privadas de liberdade, ou de promover a defesa dos direitos e interesses dessas pessoas”. De acordo ainda com a Lei 12.847/2013, o SNPCT é composto por órgãos centralizadores em âmbito nacional, quais sejam, pelo “Comitê Nacional de Prevenção e Combate à Tortura - CNPCT, pelo Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura - MNPCT, pelo Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária - CNPCP e pelo órgão do Ministério da Justiça responsável pelo sistema penitenciário nacional”. A partir deste cenário, apontou a decisão agravada que a hermenêutica sistemática dos artigos 2º, § 2º, da Lei 12.847/2013 e 17 do Protocolo Facultativo à Convenção contra a Tortura e Outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes não deixa dúvida quanto à mera possibilidade (faculdade) de criação de unidades descentralizadas de mecanismos de prevenção de tortura pelos Estados da Federação, e de que tal criação configura decisão política do ente federado, e não obrigação decorrente de adesão ao Protocolo Facultativo: “Art. 2º O SNPCT será integrado por órgãos e entidades públicas e privadas com atribuições legais ou estatutárias de realizar o monitoramento, a supervisão e o controle de estabelecimentos e unidades onde se encontrem pessoas privadas de liberdade, ou de promover a defesa dos direitos e interesses dessas pessoas. § 1º O SNPCT será composto pelo Comitê Nacional de Prevenção e Combate à Tortura - CNPCT, pelo Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura - MNPCT, pelo Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária - CNPCP e pelo órgão do Ministério da Justiça responsável pelo sistema penitenciário nacional. § 2º O SNPCT poderá ser integrado, ainda, pelos seguintes órgãos e entidades, dentre outros: I - comitês e mecanismos estaduais e distrital de prevenção e combate à tortura; [...]” “Parte IV Mecanismos preventivos nacionais Artigo 17 Cada Estado-Parte deverá manter, designar ou estabelecer, dentro de um ano da entrada em vigor do presente Protocolo ou de sua ratificação ou adesão, um ou mais mecanismos preventivos nacionais independentes para a prevenção da tortura em nível doméstico. Mecanismos estabelecidos através de unidades descentralizadas poderão ser designados como mecanismos preventivos nacionais para os fins do presente Protocolo se estiverem em conformidade com suas disposições.” Cabe acrescentar, por sua vez, que o artigo 6° da Lei 12.847/2013, ao listar as atribuições do Comitê Nacional de Prevenção e Combate à Tortura - CNPCT, ressalta seu papel de “apoiar a criação de comitês ou comissões semelhantes na esfera estadual e distrital para o monitoramento e a avaliação das ações locais” (inciso VII). Vale dizer, tivesse o Protocolo Facultativo, ou a Lei 12.847/2013, determinado obrigação de instituir, de forma vinculada, comitês e mecanismos de combate à tortura no âmbito estadual, seria desnecessária qualquer menção a eventual apoio à criação de órgão estadual pelo CNPCT, bastando simplesmente deixar a cargo da fiscalização dos órgãos competentes o cumprimento das normas cogentes da lei e da convenção internacional. Há ainda menção, no artigo 8°, § 7°, da Lei 12.847/2013, à hipótese de inexistência de Mecanismo Estadual de Prevenção e Combate à Tortura – MEPCT, não como estado de ilegalidade/omissão, mas como circunstância determinante para atuação subsidiária do MNPCT: “Art. 8º Fica criado o Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura-MNPCT, órgão integrante da estrutura da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República, responsável pela prevenção e combate à tortura e a outros tratamentos ou penas cruéis, desumanos ou degradantes, nos termos do Artigo 3 do Protocolo Facultativo à Convenção das Nações Unidas contra a Tortura e Outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes, promulgado pelo Decreto nº 6.085, de 19 de abril de 2007. [...] § 7º A inexistência, a recusa ou a impossibilidade de o Mecanismo Estadual acompanhar a visita periódica no dia e hora marcados não impede a atuação do MNPCT”. Ademais, como destacado na decisão agravada, não socorre aos recorrentes a invocação do artigo 29 do Protocolo Facultativo, sob o argumento de que, por estabelecer que “as disposições do presente Protocolo deverão abranger todas as partes dos Estados federais sem quaisquer limitações ou exceções”, estaria a determinar obrigação de instituir comitês e mecanismos estaduais de prevenção e combate à tortura, pois constata-se, na verdade, que o dispositivo apenas outorga qualidade de lei nacional (e não apenas de lei federal) ao diploma, ao prever eficácia também a Estados e Municípios, sendo aplicável em tal âmbito, v. g., na hipótese de instituição de comitês e mecanismos descentralizados, quando do exercício da discricionariedade prevista no Protocolo Facultativo e na Lei 12.847/2013. Consignou-se, também, que a criação de órgãos da Administração Pública - com utilização de critérios políticos e discricionários -, necessária para a instituição de comitês e mecanismos em âmbito estadual, exige a edição de lei específica, com observância do devido processo legislativo, de modo que, ainda que eventualmente se concluísse por indevida omissão legislativa por parte do poder público, a utilização da via da ação civil pública revelaria-se inadequada, dada a existência de remédios constitucionais específicos para tanto previstos no ordenamento jurídico (RESP 1.155.590, Rel. Min. MARCO BUZZI, DJe de 07/12/2018). Porém, corroborando conclusão pela inexistência de ilegitimidade e indevida omissão do Estado de São Paulo no caso, verifica-se que houve, inclusive, iniciativa e tramitação de projeto de lei na Assembleia Legislativa Estadual para instituir o Comitê e Mecanismo de Prevenção e Combate à Tortura no Estado de São Paulo (Projeto de Lei 1.257/2014), o qual, embora aprovado pelo Poder Legislativo, foi integralmente vetado pelo Governador do Estado, estando tal veto pendente de análise desde março/2019, revelando que se pretende, em verdade, questionar o veto na via da ação originária. Outrossim, não se sustenta a alegação de que a liminar deferida “limitou-se a determinar que o Estado apresente plano de implementação de Comitê e Mecanismo Estadual de Prevenção e Combate à Tortura, de modo que não houve determinação de criação de órgãos, remanejamento de servidores, nem geração de despesas públicas”, pois constou expressamente da decisão suspensa a determinação para que “se apresente plano de implementação de Comitê e Mecanismo Estadual de Prevenção e Combate à Tortura (MEPCT/SP), com a estrutura, os recursos orçamentários e o número de cargos necessários ao adequado funcionamento do órgão à realização de visitas periódicas (no mínimo, anuais), a todos os locais de privação de liberdade existentes no território paulista” (grifamos), restando, assim, evidente que, para o cumprimento da decisão, sob pena de “astreintes”, inclusive, seriam necessárias despesas públicas e reorganização da estrutura administrativa. Isso sem mencionar que a decisão judicial precária do Juízo a quo atenta contra a esfera da autonomia de ente federativo (artigo 18, CF) e afeta a independência entre os Poderes Legislativo, Executivo e Judiciário, por adentrar no mérito administrativo e nas escolhas de natureza política da Administração Pública. Configurada, pois, neste contexto, a flagrante ilegitimidade da decisão liminar concomitante ao risco de lesão grave à ordem e economia pública, afigura-se de rigor a manutenção da contracautela deferida nos termos do artigo 4º da Lei 8.437/1992. Ante o exposto, nego provimento aos agravos internos. É o voto.
SUSPENSÃO DE LIMINAR E DE SENTENÇA (11555) Nº 5011834-50.2024.4.03.0000
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REQUERIDO: SUBSEÇÃO JUDICIÁRIA DE SÃO PAULO/SP - 8ª VARA FEDERAL CÍVEL
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V O T O - V I S T A
Agravos internos interpostos pelo Ministério Público Federal e pela Defensoria Pública da União contra a decisão da Presidência desta corte que deferiu a suspensão da liminar parcialmente concedida na Ação Civil Pública nº 5009616-82.2024.4.03.6100, ajuizada contra a União e o Estado de São Paulo: “para determinar que no prazo de 120 (cento e vinte) dias, o ESTADO DE SÃO PAULO apresente plano de implementação de Comitê e Mecanismo Estadual de Prevenção e Combate à Tortura (MEPCT/SP), com a estrutura, os recursos orçamentários e o número de cargos necessários ao adequado funcionamento do órgão e à realização de visitas periódicas (no mínimo, anuais) a todos os locais de privação de liberdade existentes no território paulista, precedido de consulta prévia aos órgãos do Sistema Nacional de Prevenção e Combate à Tortura e instituições da sociedade civil, sob pena de multa de R$ 100.000,00 (cem mil reais), em caso de descumprimento de cada etapa prevista no cronograma; [...] no prazo de 10 (dez) dias úteis, o ESTADO DE SÃO PAULO apresente um cronograma com as etapas de cumprimento desta decisão, especialmente informando as datas, horário e local das reuniões com os órgãos da União e com os autores da presente ação”.
A eminente relatoria votou no sentido de desprover os agravos internos para manter a decisão que suspendeu a liminar. Divirjo e passo a expor as razões do voto.
Inicialmente, concordo com o relator quanto ao conhecimento do recurso da Defensoria Pública da União e quanto ao indeferimento de admissão de amicus curiae no âmbito deste incidente.
No mais, verifica-se que a ação civil pública originária foi proposta com o objetivo de compelir a União e o Estado de São Paulo a implementar, dentro de suas competências, o Mecanismo Estadual de Prevenção e Combate à Tortura - MEPCT, previsto na Lei nº 12.847/2013.
A prevenção e o combate à tortura são diretamente relacionados à proteção da dignidade humana, garantida não só no texto constitucional de 1988, mas também em tratados internacionais de direitos humanos internalizados pelo Brasil, tais como: a Convenção contra a Tortura e outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes, da Assembleia Geral das Nações Unidas promulgada pelo Decreto nº 40, de 15 de fevereiro de 1991; a Convenção Interamericana para Prevenir e Punir a Tortura, promulgada pelo Decreto nº 98.386, de 9 de dezembro de 1989; o Estatuto de Roma do Tribunal Penal Internacional, promulgado pelo Decreto nº 4.388, de 25 de setembro de 2002; e o Protocolo Facultativo à Convenção contra a Tortura e outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes (OPCAT), promulgado pelo Decreto nº 6.085, de 19 de abril de 2007. Em cumprimento a este último foi promulgada a Lei nº 12.847, de 02.08.2013, que instituiu o Sistema Nacional de Prevenção e Combate à Tortura, bem como criou o Comitê Nacional de Prevenção e Combate à Tortura (CNPCT) e o Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura (MNPCT). A aludida convenção trata da necessidade de criação de órgãos independentes, que realizem visitas regulares a locais destinados ao acolhimento de pessoas privadas de liberdade, com o objetivo de exercer vigilância preventiva relativa à tortura e outros tratamentos cruéis, desumanos ou degradantes.
Trata-se de tema de fundamental importância, na medida em que há no Estado Brasileiro patente violação massiva de direitos fundamentais no sistema prisional brasileiro, como reconheceu o Supremo Tribunal Federal no julgamento da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 347. Também no julgamento da ADPF 607/DF, ajuizada contra o Decreto nº 9.831/2019, que alterou o Decreto nº 8.154/2013 para remanejar os 11 (onze) cargos de perito do Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura (MNPCT) para o Ministério da Economia e determinar que a participação no Mecanismo seja considerada “prestação de serviço público relevante, não remunerada”, o Supremo Tribunal Federal afirmou que:
A realidade das instituições de privação de liberdade demonstra que o Brasil se encontra distante de cumprir o mandamento constitucional de vedação à tortura, conforme já assentou este Supremo Tribunal Federal ao reconhecer um estado de coisas inconstitucional no sistema carcerário nacional. Melhor sorte não assiste às instituições de privação de liberdade de natureza não penal, a exemplo dos hospitais psiquiátricos, frequentemente marcados pela desassistência e pela violação de direitos fundamentais.
Como se vê, o assunto é urgente e demanda a efetiva implementação de políticas públicas para o cumprimento dos compromissos assumidos pelo Brasil ao se tornar signatário dos tratados internacionais enumerados anteriormente, bem como para a observância das próprias garantias constitucionais. Nesse contexto, a Lei nº 12.847/2013, regulamentada pelo Decreto nº 8.154/2013, ao estabelecer que os entes federativos poderão compor o Sistema Nacional, com a implementação do Mecanismo Estadual de Prevenção e Combate à Tortura, não faculta a sua criação, mas estabelece verdadeiro poder-dever da administração, na medida em que o Estado Brasileiro, ao se tornar signatário da OPCAT, assumiu verdadeira obrigação de implementá-la integralmente. Necessita, para tanto, da participação dos Estados, notadamente em razão da forma como o sistema penitenciário nacional está organizado, em que a maioria dos estabelecimentos penais e congêneres está sob administração estadual. É o que constou na decisão liminar suspensa:
Ao arrolar diversos órgãos que poderão compor o SNPCT não encontra a Administração Pública discricionariedade para sua criação. Primeiro porque o sistema precisa ser composto de órgãos e entidades públicas e privadas com atribuições legais ou estatutárias de realizar o monitoramento, a supervisão e o controle de estabelecimentos e unidades onde se encontrem pessoas privadas de liberdade, ou de promover a defesa dos direitos e interesses dessas pessoas (artigo 2º da Lei n. 12.847/2013). Segundo porque deve considerar estruturar o sistema a partir da necessidade de se dar efetividade ao SNPCT, que tem o objetivo de fortalecer a prevenção e o combate à tortura, por meio de articulação e atuação cooperativa de seus integrantes, dentre outras formas, permitindo as trocas de informações e o intercâmbio de boas práticas (artigo 1º)” e, mais adiante: se para completude da Convenção a criação de mecanismos estaduais se configura indispensável, não há escolha do administrador público, seja este do plano federal e estadual.
Comungo do entendimento adotado na referida decisão liminar, no sentido de que não é facultativo para a administração estadual à criação do Comitê e do Mecanismo de Prevenção e Combate à Tortura para tutelar os direitos das pessoas privadas de liberdade e, assim, dar efetividade às garantias constitucionais previstas no artigo 5º, incisos III, XLIII, XLVII, e XLIX, da Constituição Federal. No mesmo sentido, o Supremo Tribunal Federal se manifestou na já mencionada ADPF 607/DF:
A vedação à tortura e a tratamentos desumanos ou degradantes decorre diretamente da Constituição de 1988, o que importa em uma obrigação imposta às autoridades dos três Poderes e de todas as esferas de governo para que cessem, façam cessar e punam tais expedientes. No ponto, cabe afirmar que a tortura tem posição antitética em relação ao princípio da dignidade humana, fundamento da República Federativa do Brasil. (...) A criação do MNPCT é resultado de compromissos internacionais assumidos pelo Brasil, cujo cumprimento demanda que o país não apenas instale, mas conceda condições financeiras, administrativas e logísticas para que o órgão exerça a função de inspecionar unidades de privação de liberdade e expedir recomendações ao Poder Público visando evitar e punir a prática da tortura.
Mais adiante, o ministro relator afirma:
A dignidade da pessoa humana figura no ordenamento jurídico como um princípio que fundamenta e agrega os demais direitos e garantias fundamentais e, como tal, orienta a limitação do poder estatal, para evitar arbítrios, e obriga a ação positiva do Estado, de forma a garantir a sua observância. Nesse sentido, é certo que sem dignidade humana não há Estado democrático de Direito, cuja legitimidade depende do respeito e da promoção a esse relevante preceito. (...) Considerando que do princípio da dignidade da pessoa humana decorre necessariamente a proteção à integridade física e psíquica do indivíduo, extrai-se do ordenamento constitucional um dever de abstenção por parte do Estado, ante a proibição de que o Poder Público recorra à tortura, independentemente da finalidade almejada, e, ao mesmo tempo, uma conduta positiva das autoridades competentes, a fim de coibir e punir a prática, bem como de implementar políticas públicas para sua prevenção. (grifos no original)
Nota-se, pois, que a omissão dos poderes competentes, há mais de uma década, não pode ser validada pelo Poder Judiciário. Não é por outro motivo que o Supremo Tribunal Federal, no julgamento da medida cautelar na ADPF nº 347/DF (DJe de 19/2/16), reconheceu que o sistema carcerário brasileiro caracteriza um estado de coisas inconstitucional, referindo-se à situação de violação generalizada de direitos fundamentais, observada nos estabelecimentos de privação de liberdade no Brasil. Na ocasião, o Ministro Marco Aurélio asseverou que:
No sistema prisional brasileiro, ocorre violação generalizada de direitos fundamentais dos presos no tocante à dignidade, higidez física e integridade psíquica. A superlotação carcerária e a precariedade das instalações das delegacias e presídios, mais do que inobservância, pelo Estado, da ordem jurídica correspondente, configuram tratamento degradante, ultrajante e indigno a pessoas que se encontram sob custódia. As penas privativas de liberdade aplicadas em nossos presídios convertem-se em penas cruéis e desumanas. Os presos tornam-se 'lixo digno do pior tratamento possível', sendo-lhes negado todo e qualquer direito à existência minimamente segura e salubre.
Concluiu-se, no emblemático julgamento da ADPF 347, que: a violação sistemática de direitos fundamentais dos presos remete à responsabilidade dos três Poderes e de todas as esferas de governo, indicando haver problemas tanto na formulação e na implementação de políticas públicas, quanto na interpretação e na aplicação da lei penal. Assim, reputou como legítima a intervenção judicial no caso, diante da patente omissão estatal quanto à vulneração de direitos fundamentais das pessoas privadas de liberdade (ADPF 607/DF – grifo nosso).
No caso dos autos, verifica-se que o Ministério Público Federal e as Defensorias do Estado de São Paulo e da União buscam a suplantação da omissão das demais esferas do poder público, pois, apesar de o legislativo estadual ter aprovado o Projeto de Lei 1.257/2014 para instituir o Comitê e Mecanismo de Prevenção e Combate à Tortura no Estado de São Paulo, houve veto integral por parte do governador à época e o assunto não mais retornou às pautas da assembleia legislativa paulista.
À vista da morosidade na implementação das medidas necessárias para o enfrentamento e a prevenção das práticas de tortura nos estabelecimentos prisionais, cabível a atuação do Poder Judiciário sem qualquer arranhão à autonomia do ente federativo. É o que tem decidido o Supremo Tribunal Federal:
Ementa: Direito Constitucional e Administrativo. Agravo interno em recurso extraordinário. Ação civil Pública. Determinação pelo Poder Judiciário. Violação à separação de Poderes. Inocorrência.
1. Hipótese em que foi determinada ao Estado do Rio de Janeiro a disponibilização aos detentos dos estabelecimentos prisionais do Estado de período mínimo para banho de sol, bem como de local apropriado à prática de exercícios, esporte e lazer.
2. O acórdão recorrido está alinhado à jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, que afirma a possibilidade, em casos emergenciais, de determinação da implementação de políticas públicas pelo Poder Judiciário, ante a inércia ou a morosidade da Administração, como medida assecuratória de direitos fundamentais. Precedentes.
3. Inaplicável o art. 85, § 11, do CPC/2015, uma vez que não é cabível, na hipótese, condenação em honorários advocatícios (arts. 17 e 18, Lei nº 7.347/1985).
4. Agravo interno a que se nega provimento.
(STF - RE: 1379365 RJ, Relator: Min. LUÍS ROBERTO BARROSO, Data de Julgamento: 02/10/2023, Primeira Turma, Data de Publicação: PROCESSO ELETRÔNICO DJe-s/n DIVULG 19-10-2023 PUBLIC 20-10-2023)(grifo nosso)
A legislação de regência prevê a suspensão de liminar como incidente processual por meio do qual a pessoa jurídica de direito público ou o Ministério Público buscam a proteção do interesse público contra um provimento jurisdicional que cause grave lesão à ordem, à saúde, à segurança e à economia pública. (art. 4º, caput, da Lei 8.437/1992). A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal é firme no sentido de que a concessão de medida de contracautela ostenta caráter de absoluta excepcionalidade e só se justifica nos casos em que efetivamente demonstrado pela parte interessada risco de “grave lesão à ordem, à saúde, à segurança e à economia públicas”. Confira-se: STP 914 AgR, Relª. Minª. Rosa Weber (Presidente), j. em 03.05.2023; SL 1.547 AgR, Rel. Min. Luiz Fux (Presidente), j. em 29.08.2022; SL 836 AgR, Rel. Min. Ricardo Lewandowski (Presidente), j. em 22.10.2015.
No caso dos autos, não restam preenchidos os requisitos do artigo 4º da Lei 8.437/92. A liminar deferida apenas determinou que o Estado apresente plano de implementação de Comitê e Mecanismo Estadual de Prevenção e Combate à Tortura, ou seja, não houve ordem para criação de órgãos, remanejamento de servidores, nem geração de despesas públicas, de forma que não há impactos imediatos. Não se verifica, portanto, lesão grave à economia ou dano à ordem pública que justifiquem a suspensão. Há, apenas, provimento que busca seja feito cronograma, observados os limites burocráticos da máquina pública, a fim de que o Estado possa se preparar e planejar para criar os órgãos previstos na Lei nº 12.847/2013, e indique os seus prazos para tanto. Registre-se, mais uma vez, que o prazo dado é para que haja a confecção do plano e cumprimento do cronograma proposto pelo próprio Estado, não para execução em data específica. A reforçar a adequação da medida adotada, note-se a conclusão da ADPF 347, na qual o STF também deu prazo de seis meses para que o governo federal elaborasse um plano de intervenção, com diretrizes para reduzir a superlotação dos presídios, o número de presos provisórios e a permanência em regime mais severo ou por tempo superior ao da pena.
Ante o exposto, dou provimento aos agravos internos interpostos para reformar a decisão da Presidência (Id. 290706525) a fim de restabelecer a liminar deferida na ação civil pública originária.
É como voto.
ANDRÉ NABARRETE
DESEMBARGADOR FEDERAL
DECLARAÇÃO DE VOTO CONVERGENTE DO DES. FEDERAL JOHONSOM di SALVO
VICE-PRESIDENTE
O caso envolve a ACP 5009616-82.2024.4.03.6100, proposta pelo Ministério Público Federal e Defensoria Pública do Estado de São Paulo em face da União e Estado de São Paulo, objetivando compelir os requeridos a implementar, em cooperação e dentro de suas competências, o Comitê e o Mecanismo Estadual de Prevenção e Combate à Tortura.
A liminar proferida – que praticamente exauria o próprio objeto da ação de piso, em contraste com a jurisprudência que restringe liminares “satisfativas” (STJ: AgInt no MS n. 29.215/DF, relator Ministro Francisco Falcão, Primeira Seção, julgado em 16/5/2023, DJe de 19/5/2023.) – foi corretamente suspensa pela d. Presidência desta Casa, reconhecendo a ausência de ilegalidade na não-instituição de Comitê ou Mecanismo de Prevenção à Tortura no âmbito do Estado de São Paulo.
Não existe ilegalidade no cenário em que o Poder Público, autorizado pela lei de regência, pode desenvolver sua capacidade administrativa discricionária, que só pode ser sindicada pelo judiciário muito excepcionalmente. Não fosse assim, o juiz se substituiria ao executivo, nulificando o princípio constitucional da separação de poderes, justamente o que foi feito na decisão de piso, onde o ativismo judicial – que deve sempre ser aplicado cum granum salis – substituiu as atitudes do Governo do Estado de São Paulo.
Ademais, a ordem judicial acarretaria o dispêndio de recursos públicos evidentemente não previstos em lei orçamentária, gerando prejuízo às finanças estatais sem qualquer consideração para com a “responsabilidade fiscal” dos agentes administrativos que o judiciário, em tese, deveria prestigiar.
Por fim, como bem ressaltado na decisão ora apreciada, a Assembléia Legislativa deste Estado votou o Projeto de Lei 1.257/2014, o qual, embora aprovado pelo Poder Legislativo local, foi integralmente vetado pelo Governador do Estado de então, sr. João Dória, estando tal veto pendente de análise desde março/2019, de modo que a ação de piso na verdade pretende se sobrepor à ação do legislativo em seu direito constitucional de apreciar vetos oriundos do Poder Executivo.
E M E N T A
DIREITO PROCESSUAL CIVIL E ADMINISTRATIVO. AGRAVO INTERNO. SUSPENSÃO DE LIMINAR E DE SENTENÇA. INGRESSO DE AMICUS CURIAE. IMPOSSIBILIDADE. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. SISTEMA NACIONAL DE PREVENÇÃO E COMBATE À TORTURA. PROTOCOLO FACULTATIVO À CONVENÇÃO CONTRA TORTURA E OUTROS TRATAMENTOS OU PENAS CRUÉIS, DESUMANAS OU DEGRADANTES. DECRETO 6.085/2007. LEI 12.847/2013. COMITÊS E MECANISMOS ESTADUAIS E DISTRITAIS DE PREVENÇÃO E COMBATE À TORTURA (MECPCT). DISCRICIONARIEDADE. PREJUÍZO À AUTONOMIA DE ENTE FEDERATIVO E INDEPENDÊNCIA ENTRE OS PODERES. GRAVE LESÃO À ORDEM OU ECONÔMICA PÚBLICA CONFIGURADA.
1. Não se admite a intervenção amicus curiae em pedido de suspensão de decisão judicial, sob pena de desvirtuamento de sua finalidade e disciplina normativa, conforme jurisprudência consolidada do Supremo Tribunal Federal e do Superior Tribunal de Justiça. A função do amicus curiae consiste em subsidiar e qualificar o debate em questões controvertidas, admitindo-se ingresso a partir de análise do binômio necessidade-representatividade e de avaliação dos benefícios potencialmente aferíveis de participação no caso concreto para a formação de convencimento do magistrado ou colegiado. No caso, entretanto, a análise do pedido de suspensão não adentra o debate meritório, de modo que o convencimento judicial para decidir prescinde de subsídio especializado “acerca da definição de interpretação de lei federal e de aplicação dos tratados internacionais ratificados pelo Brasil”, sob pena de substituição indevida do juízo cognitivo ordinário do processo de origem. Com efeito, sequer há fase instrutória ou amplo contraditório no rito do incidente processual de suspensão de liminar ou de sentença (STJ, Pet na SLS 3387, Min. MARIA THEREZA DE ASSIS MOURA, 08/04/2024), tampouco incursão no mérito da controvérsia, limitando-se a respectiva análise à aferição de flagrante ilegitimidade concomitante ao risco de grave lesão à ordem, à saúde, à segurança e à economia públicas no cumprimento da decisão impugnada. Cabe destacar, ainda, que “a admissão de amicus curiae no feito é uma prerrogativa do órgão julgador, na pessoa do relator, razão pela qual não há que se falar em direito subjetivo ao ingresso” (AgInt nos EDcl na PET no REsp 1.657.156/RJ, Rel. Min. BENEDITO GONÇALVES, DJe de 18/4/2018). Neste contexto é que se indefere o pleito da AMPARAR - Associação de Amigos e Familiares de Presos/as e Internos/as da Fundação Casa; Conectas Direitos Humanos; Grupo Tortura Nunca Mais; Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCRIM); Instituto de Defesa do Direito de Defesa - Márcio Thomaz Bastos (IDDD); Instituto Resgata Cidadão; Instituto Terra, Trabalho e Cidadania (ITTC); Pastoral Carcerária Nacional – CNBB; e Rede de Proteção e Resistência contra o Genocídio.
2. A suspensão de execução de decisão judicial proferida contra o Poder Público é medida excepcional, que extrapola a recorribilidade ordinária, exigindo requisitos específicos a partir da comprovação do manifesto interesse público e flagrante ilegitimidade da decisão, associada à demonstração da concorrência de grave lesão à ordem, à saúde, à segurança ou à economia pública, nos termos do artigo 4º da Lei 8.437/1992. O pedido suspensivo tem caráter autônomo e, portanto, não é prejudicado pela interposição ou não do recurso, nem por eventual decisão de indeferimento da tutela requerida. A excepcionalidade da medida, por gerar a competência do presidente do tribunal para sua apreciação, ainda que a decisão judicial tenha sido impugnada pela via recursal própria, e por envolver juízos específicos, não é autorizada apenas por se tratar de pretensão deduzida pelo Poder Público nem se houver mera ilegalidade contrastada por fundamento jurídico relevante, e for somente arguido provável risco de ineficácia da medida suspensiva ou irreversibilidade da situação jurídica derivada da decisão impugnada. A avaliação de fundamento jurídico relevante ou probabilidade do direito e da urgência para suspender a decisão agravada envolve cognição ordinária sujeita, segundo regras do devido processo legal, à competência do órgão recursal próprio, relator e turma no âmbito do tribunal e, portanto, não se trata, nesta especialíssima sede processual, de promover substituição do juízo cognitivo proferido na origem com incursão, ainda que perfunctória no mérito, ou em temas afetos estritamente à probabilidade do direito ou relevância da fundamentação jurídica do pedido. A excepcional competência do presidente do tribunal exige notabilizadas qualificações jurídicas tanto da pretensão como da situação gerada pela decisão impugnada se mantida eficaz: manifesto interesse público e flagrante ilegitimidade, capaz de gerar grave lesão não a qualquer bem jurídico, mas à ordem, à saúde, à segurança ou à economia pública.
3. No caso, cuida-se, na origem, da ACP 5009616-82.2024.4.03.6100, proposta pelo Ministério Público Federal e Defensoria Pública do Estado de São Paulo em face da União e Estado de São Paulo, objetivando compelir os requeridos a implementar, em cooperação e dentro de suas competências, o Comitê e o Mecanismo Estadual de Prevenção e Combate à Tortura. Foi inicialmente deferida em parte liminar “para determinar que: no prazo de 120 (cento e vinte) dias, o ESTADO DE SÃO PAULO apresente plano de implementação de Comitê e Mecanismo Estadual de Prevenção e Combate à Tortura (MEPCT/SP), com a estrutura, os recursos orçamentários e o número de cargos necessários ao adequado funcionamento do órgão e à realização de visitas periódicas (no mínimo, anuais) a todos os locais de privação de liberdade existentes no território paulista, precedido de consulta prévia aos órgãos do Sistema Nacional de Prevenção e Combate à Tortura e instituições da sociedade civil, sob pena de multa de R$ 100.000,00 (cem mil reais), em caso de descumprimento de cada etapa prevista no cronograma; [...] no prazo de 10 (dez) dias úteis, o ESTADO DE SÃO PAULO apresente um cronograma com as etapas de cumprimento desta decisão, especialmente informando as datas, horário e local das reuniões com os órgãos da União e com os autores da presente ação”.
4. Tal liminar, entretanto, restou suspensa pela decisão ora recorrida, sob o fundamento, em síntese, de que não restou configurada a ilegalidade na não-instituição de Comitê ou Mecanismo de Prevenção à Tortura no âmbito do Estado de São Paulo.
5. Com efeito, restou contextualizado que o Protocolo Facultativo à Convenção contra a Tortura e Outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes, promulgado pelo Decreto 6.085/2007, estabelece “um sistema de visitas regulares efetuadas por órgãos nacionais e internacionais independentes a lugares onde pessoas são privadas de sua liberdade, com a intenção de prevenir a tortura e outros tratamentos ou penas cruéis, desumanos ou degradantes” (artigo 1°). Tal documento previu que os Estados-Parte signatários devem “designar ou manter em nível doméstico um ou mais órgãos de visita encarregados da prevenção da tortura e outros tratamentos ou penas cruéis, desumanos ou degradantes (doravante denominados mecanismos preventivos nacionais)” (artigo 3°). Assim, com a edição da Lei 12.847/2013, instituiu-se, no âmbito nacional, o “Sistema Nacional de Prevenção e Combate à Tortura” (SNPCT), com finalidade de “fortalecer a prevenção e o combate à tortura, por meio de articulação e atuação cooperativa de seus integrantes, dentre outras formas, permitindo as trocas de informações e o intercâmbio de boas práticas”, integrado por “órgãos e entidades públicas e privadas com atribuições legais ou estatutárias de realizar o monitoramento, a supervisão e o controle de estabelecimentos e unidades onde se encontrem pessoas privadas de liberdade, ou de promover a defesa dos direitos e interesses dessas pessoas”. De acordo ainda com a Lei 12.847/2013, o SNPCT é composto por órgãos centralizadores em âmbito nacional, quais sejam, pelo “Comitê Nacional de Prevenção e Combate à Tortura - CNPCT, pelo Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura - MNPCT, pelo Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária - CNPCP e pelo órgão do Ministério da Justiça responsável pelo sistema penitenciário nacional”.
6. A partir deste cenário, apontou a decisão agravada que a hermenêutica sistemática dos artigos 2º, § 2º, da Lei 12.847/2013 e 17 do Protocolo Facultativo à Convenção contra a Tortura e Outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes não deixa dúvida quanto à mera possibilidade (faculdade) de criação de unidades descentralizadas de mecanismos de prevenção de tortura pelos Estados da Federação, e de que tal criação configura decisão política do ente federado, e não obrigação decorrente de adesão ao Protocolo Facultativo.
7. Cabe acrescentar, por sua vez, que o artigo 6° da Lei 12.847/2013, ao listar as atribuições do Comitê Nacional de Prevenção e Combate à Tortura - CNPCT, ressalta seu papel de “apoiar a criação de comitês ou comissões semelhantes na esfera estadual e distrital para o monitoramento e a avaliação das ações locais” (inciso VII). Vale dizer, tivesse o Protocolo Facultativo, ou a Lei 12.847/2013, determinado obrigação de instituir, de forma vinculada, comitês e mecanismos de combate à tortura no âmbito estadual, seria desnecessária qualquer menção a eventual apoio à criação de órgão estadual pelo CNPCT, bastando simplesmente deixar a cargo da fiscalização dos órgãos competentes o cumprimento das normas cogentes da lei e da convenção internacional. Há ainda menção, no artigo 8°, § 7°, da Lei 12.847/2013, à hipótese de inexistência de Mecanismo Estadual de Prevenção e Combate à Tortura – MEPCT, não como estado de ilegalidade/omissão, mas como circunstância determinante para atuação subsidiária do MNPCT.
8. Ademais, como destacado na decisão agravada, não socorre aos recorrentes a invocação do artigo 29 do Protocolo Facultativo, sob o argumento de que, por estabelecer que “as disposições do presente Protocolo deverão abranger todas as partes dos Estados federais sem quaisquer limitações ou exceções”, estaria a determinar obrigação de instituir comitês e mecanismos estaduais de prevenção e combate à tortura, pois constata-se, na verdade, que o dispositivo apenas outorga qualidade de lei nacional (e não apenas de lei federal) ao diploma, ao prever eficácia também a Estados e Municípios, sendo aplicável em tal âmbito, v. g., na hipótese de instituição de comitês e mecanismos descentralizados, quando do exercício da discricionariedade prevista no Protocolo Facultativo e na Lei 12.847/2013.
9. Consignou-se, também, que a criação de órgãos da Administração Pública - com utilização de critérios políticos e discricionários -, necessária para a instituição de comitês e mecanismos em âmbito estadual, exige a edição de lei específica, com observância do devido processo legislativo, de modo que, ainda que eventualmente se concluísse por indevida omissão legislativa por parte do poder público, a utilização da via da ação civil pública revelaria-se inadequada, dada a existência de remédios constitucionais específicos para tanto previstos no ordenamento jurídico (RESP 1.155.590, Rel. Min. MARCO BUZZI, DJe de 07/12/2018). Porém, corroborando conclusão pela inexistência de ilegitimidade e indevida omissão do Estado de São Paulo no caso, verifica-se que houve, inclusive, iniciativa e tramitação de projeto de lei na Assembleia Legislativa Estadual para instituir o Comitê e Mecanismo de Prevenção e Combate à Tortura no Estado de São Paulo (Projeto de Lei 1.257/2014), o qual, embora aprovado pelo Poder Legislativo, foi integralmente vetado pelo Governador do Estado, estando tal veto pendente de análise desde março/2019, revelando que se pretende, em verdade, questionar o veto na via da ação originária.
10. Outrossim, não se sustenta a alegação de que a liminar deferida “limitou-se a determinar que o Estado apresente plano de implementação de Comitê e Mecanismo Estadual de Prevenção e Combate à Tortura, de modo que não houve determinação de criação de órgãos, remanejamento de servidores, nem geração de despesas públicas”, pois constou expressamente da decisão suspensa a determinação para que “se apresente plano de implementação de Comitê e Mecanismo Estadual de Prevenção e Combate à Tortura (MEPCT/SP), com a estrutura, os recursos orçamentários e o número de cargos necessários ao adequado funcionamento do órgão à realização de visitas periódicas (no mínimo, anuais), a todos os locais de privação de liberdade existentes no território paulista” (grifamos), restando, assim, evidente que, para o cumprimento da decisão, sob pena de “astreintes”, inclusive, seriam necessárias despesas públicas e reorganização da estrutura administrativa. Isso sem mencionar que a decisão judicial precária do Juízo a quo atenta contra a esfera da autonomia de ente federativo (artigo 18, CF) e afeta a independência entre os Poderes Legislativo, Executivo e Judiciário, por adentrar no mérito administrativo e nas escolhas de natureza política da Administração Pública.
11. Configurada, pois, neste contexto, a flagrante ilegitimidade da decisão liminar concomitante ao risco de lesão grave à ordem e economia pública, afigura-se de rigor a manutenção da contracautela deferida nos termos do artigo 4º da Lei 8.437/1992.
12. Agravos internos desprovidos.