AGRAVO DE INSTRUMENTO (202) Nº 5008384-02.2024.4.03.0000
RELATOR: Gab. 06 - DES. FED. CARLOS FRANCISCO
AGRAVANTE: FUNDACAO NACIONAL DO INDIO
AGRAVADO: MARUSHA CRISTINE RONDON STEFANELLO
Advogado do(a) AGRAVADO: RACHEL DE PAULA MAGRINI SANCHES - MS8673-A
OUTROS PARTICIPANTES:
AGRAVO DE INSTRUMENTO (202) Nº 5008384-02.2024.4.03.0000 RELATOR: Gab. 06 - DES. FED. CARLOS FRANCISCO AGRAVANTE: FUNDACAO NACIONAL DO INDIO AGRAVADO: MARUSHA CRISTINE RONDON STEFANELLO Advogado do(a) AGRAVADO: RACHEL DE PAULA MAGRINI SANCHES - MS8673-A OUTROS PARTICIPANTES: R E L A T Ó R I O O EXMO. SR. DESEMBARGADOR FEDERAL CARLOS FRANCISCO (Relator): Cuida-se de agravo de instrumento interposto pela FUNDAÇÃO NACIONAL DO ÍNDIO (FUNAI) contra decisão proferida pela 2ª Vara Federal de Ponta Porã/MS que, em sede de ação declaratória de nulidade do processo administrativo que ensejou a averbação n.º 2, datada em 05 de agosto de 2022, na matrícula do imóvel nº 63.943, do CRI de Ponta Porã/MS, assim decidiu: “(...) Destarte, DEFIRO o pedido de TUTELA ANTECIPADA para SUSPENDER os efeitos legais do processo administrativo nº 08620.002491/2022-51, até o julgamento final desta demanda. Oficie-se ao Registro de Imóveis de Ponta Porã/MS para que reative a matrícula nº 63.943 e cancele, até segunda ordem, a averbação na qual consta o imóvel como área indígena. (Cópia desta servirá como ofício nº 48/2024 para esta finalidade) (...)” Alega a agravante, em suma: “(...) que não houve cancelamento da matrícula do imóvel da autora, mas mera anotação da situação de sobreposição do imóvel com terras indígenas. A publicidade de tal situação de sobreposição encontrada em procedimento demarcatório em andamento é imperativo legal, visando justamente a que terceiros que eventualmente venham a ter qualquer tipo de interesse na área, tenham conhecimento disso, em atenção ao primado de boa-fé que deve reger as relações negociais. Não deixando dúvidas de que a publicidade de situações como a presente tem total amparo legal, vale observar que assim dispõe o art. 246 da Lei de Registros Público (Lei nº 6.015 de 31 de dezembro de 1973): "Art. 246. Além dos casos expressamente indicados no inciso II do caput do art. 167 desta Lei, serão averbadas na matrícula as sub-rogações e outras ocorrências que, por qualquer modo, alterem o registro ou repercutam nos direitos relativos ao imóvel. (Redação dada pela Lei nº 14.382, de 2022) (...) § 2º Tratando-se de terra indígena com demarcação homologada, a União promoverá o registro da área em seu nome. (Incluído pela Lei nº 10.267, de 2001) § 3º Constatada, durante o processo demarcatório, a existência de domínio privado nos limites da terra indígena, a União requererá ao Oficial de Registro a averbação, na respectiva matrícula, dessa circunstância. (Incluído pela Lei nº 10.267, de 2001) ..." . (...)” Pugna pela antecipação da tutela recursal e, ao final, pelo provimento do presente agravo de instrumento. O pedido de atribuição de efeito suspensivo ao recurso foi deferido. Foram apresentadas contrarrazões. Parecer do Ministério Público Federal pelo provimento do agravo de instrumento. É o relatório. Passo a decidir.
AGRAVO DE INSTRUMENTO (202) Nº 5008384-02.2024.4.03.0000 RELATOR: Gab. 06 - DES. FED. CARLOS FRANCISCO AGRAVANTE: FUNDACAO NACIONAL DO INDIO AGRAVADO: MARUSHA CRISTINE RONDON STEFANELLO Advogado do(a) AGRAVADO: RACHEL DE PAULA MAGRINI SANCHES - MS8673-A OUTROS PARTICIPANTES: V O T O O EXMO. SR. DESEMBARGADOR FEDERAL CARLOS FRANCISCO (Relator): Este o inteiro teor da fundamentação da decisão que deferiu a atribuição de efeito suspensivo neste agravo de instrumento: (...) Registro inicialmente que o presente recurso é cabível, nos termos do art. 1.015, I, do CPC, segundo o qual cabe agravo de instrumento contra decisão interlocutória que verse sobre tutela provisória. A seguir, cumpre registrar que o E. Ministro Edson Fachin, relator do RE nº 1.017.365, proferiu decisão em 6/5/2020, com base no art. 1.035, § 5º, do CPC, determinando a suspensão nacional dos processos judiciais, notadamente ações possessórias, anulatórias de processos administrativos de demarcação, bem como os recursos vinculados a essas ações, sem prejuízo dos direitos territoriais dos povos indígenas, modulando o termo final dessa determinação até a ocorrência do término da pandemia da COVID-19 ou do julgamento final da Repercussão Geral no Recurso Extraordinário 1.017.365 (Tema 1031), o que ocorrer por último, salvo ulterior decisão em sentido diverso. Esclareço, nessa linha, que até o momento não houve a conclusão do julgamento do RE acima referido, de modo que o julgamento dos processos e dos recursos permanece suspenso. Todavia, em que pese a suspensão acima noticiada, entendo que isso não impede a apreciação do presente agravo de instrumento, porque como bem ressaltou a decisão de suspensão proferida pelo E. Min. Edson Fachin, essa paralisação não pode implicar em prejuízo dos direitos territoriais dos povos indígenas, justamente a situação vivenciada nestes autos, como decorrência da liminar proferida em 1ª Instância. Anoto, contudo, que após o julgamento deste agravo de instrumento o feito de origem deverá permanecer suspenso, obedecendo à determinação emanada do C. STF. Pretende a agravante (FUNAI) a concessão de antecipação da tutela recursal (efeito suspensivo) de decisão que, em ação declaratória de nulidade de procedimento administrativo de demarcação de terras indígenas, proposta por MARUSHA CRISTINE RONDON STEFANELLO, deferiu o pedido de tutela antecipada para suspender os efeitos legais do processo administrativo nº 08620.002491/2022-51, até o julgamento final da demanda de origem. Determinou, ainda, que se oficiasse ao Registro de Imóveis de Ponta Porã/MS para que reative a matrícula nº 63.943 e cancele, até segunda ordem, a averbação na qual consta o imóvel como área indígena. Para a atribuição de efeito suspensivo ao agravo de instrumento é imprescindível a presença concomitante dos requisitos da relevância da fundamentação ("fumus boni iuris") e do perigo de lesão grave e de difícil ou incerta reparação ("periculum in mora"). É preciso, ainda, que o requerente apresente elementos probatórios mínimos capazes de evidenciar a presença desses dois requisitos no caso concreto. Nesse sentido, tenho que, ao menos em sede de uma análise superficial, própria deste momento processual, os requisitos acima encontram-se atendidos. Com efeito, assim dispõe o art. 246, § 3º, da Lei nº 6.015/1973 (Lei de Registros Públicos): Art. 246. Além dos casos expressamente indicados no item II do art. 167, serão averbadas na matrícula as sub-rogações e outras ocorrências que, por qualquer modo, alterem o registro. § 1º As averbações a que se referem os itens 4 e 5 do inciso II do art. 167 serão feitas a requerimento dos interessados, com firma reconhecida, instruído com documento dos interessados, com firma reconhecida, instruído com documento comprobatório fornecido pela autoridade competente. A alteração do nome só poderá ser averbada quando devidamente comprovada por certidão do Registro Civil. § 2º Tratando-se de terra indígena, com demarcação homologada, a União promoverá o registro da área em seu nome. § 3º Constatada, durante o processo demarcatório, a existência de domínio privado nos limites da terra indígena, a União requererá ao Oficial de Registro a averbação, na respectiva matrícula, dessa circunstância. § 4º As providências a que se referem os §§ 2º e 3º deste artigo deverão ser efetivadas pelo cartório, no prazo de 30 (trinta) dias, contado a partir do recebimento da solicitação de registro e averbação, sob pena de aplicação de multa diária no valor de R$ 1.000,00 (mil reais), sem prejuízo da responsabilidade civil e penal do Oficial de Registro. Dentre os princípios que regem os registros públicos destacam-se o da publicidade, o da segurança jurídica e o da presunção. Segundo o vetor da publicidade, o ato registral gera presunção absoluta de que todas as pessoas têm conhecimento de sua existência, garantindo a oponibilidade “erga omnes” dos atos inscritos. De acordo com a fé pública, os registros efetuados e as certidões expedidas pelo registrador são garantia da existência e autenticidade dos atos praticados na serventia. Há também a presunção (relativa) de validade e eficácia, de modo que os atos administrativos somente podem ser desconstituídos mediante prova em contrário. Portanto, se for constatada, durante o processo demarcatório, a existência de domínio privado nos limites da terra indígena, será requerida ao Oficial de Registro a averbação, na respectiva matrícula, dessa circunstância. E, aqui, é importante distinguir as situações, uma vez que a Lei fala em averbação, assim entendida como o ato jurídico registral que se presta a tornar conhecida uma alteração da situação fática ou jurídica em relação à coisa ou ao seu titular, tratando-se de medida complementar ao registro, de sorte a torná-lo um repositório confiável de informações acerca do imóvel. A averbação não se confunde, à toda evidência, com o cancelamento da matrícula, de sorte que não procede a alegação da autora da ação originária, no sentido de que houve cancelamento da matrícula do imóvel, pois o que houve, na verdade, foi a mera averbação da situação de sobreposição do imóvel com terras indígenas. De outro lado, é importante reafirmar que os atos administrativos são dotados de certos atributos: (a) presunção de legitimidade (conformidade com a lei, já que a atividade administrativa submete-se inteiramente à legalidade); (b) presunção de veracidade (dos fatos que embasam a atividade administrativa); (c) autoexecutoriedade (o ato administrativo será executado, quando necessário, ainda que sem o consentimento do destinatário e independentemente de autorização judicial prévia); (d) imperatividade (decorrente da inevitabilidade de sua execução, porquanto tem poder de coercibilidade sobre aqueles a que se destina). Os atributos mencionados possibilitam a execução imediata do ato administrativo, in casu, com a averbação da constatação da existência de domínio privado nos limites da terra indígena (sobreposição). Outrossim, se é certo que essa presunção de legitimidade e de veracidade é relativa ("juris tantum"), não menos certo é que cabe ao interessado produzir prova em contrário. Dessa forma, em relação à alegação de violação do contraditórios e da ampla defesa no transcurso do procedimento administrativo que ensejou a averbação impugnada, por suposta afronta ao art. 5º, do Decreto nº 1.775/1996, é preciso agir com cautela. Isso é assim, porque à primeira vista, tal procedimento teve início mediante requerimento da própria autora, que solicitou, em 17/03/2022, perante a FUNAI, uma Declaração de Reconhecimento de Limites de seu imóvel, oportunidade na qual fez instruir seu requerimento com diversos documentos destinados a comprovar suas alegações (ID 312176191). Tem-se, então, que, em princípio, ela já teve oportunidade de se manifestar na defesa de seus interesses. Além disso, parece de todo precipitado afastar a presunção de validade e de eficácia do registro público, assim como a presunção de veracidade e de legitimidade do ato administrativo de constatação da sobreposição da terra indígena mediante simples decisão liminar, tomada com base em cognição sumária lastreada unicamente nas alegações unilaterais da parte autora, sem que tenha havido sequer a oitiva da parte ré (FUNAI) nem do Ministério Público Federal, cuja participação é obrigatória na defesa dos direitos indígenas, nos termos do art. 129, V, da CF/1988. Acrescente-se, outrossim, que o procedimento demarcatório sequer foi concluído. Assim, tenho que, em princípio, eventual anulação do procedimento administrativo que ensejou a averbação da sobreposição da terra indígena dependerá de um juízo de cognição plena, baseado nas provas a serem produzidas após regular oitiva da ré o do MPF. Por fim, é de se notar que a liminar antecipatória de tutela concedida pelo MM Juízo “a quo” pode acabar incorrendo no chamado “periculum in mora” inverso, na medida em que pode vir a acarretar dano mais grave do que aquele que visa evitar. Basta, para tanto, pensar que a omissão na matrícula do imóvel acerca da sobreposição com terras indígenas pode induzir terceiros potencialmente interessados na aquisição da propriedade a erro, violando os princípios que regem o registro imobiliário, em especial o da presunção, o da publicidade e o da segurança jurídica, acima referidos. Ante o exposto, nos termos do art. 1.019, inc. I, do CPC, DEFIRO o pleito de atribuição de efeito suspensivo da decisão agravada, até ulterior deliberação desta Corte. (...) Aos fundamentos acima expendidos é relevante acrescentar que o registro deve espelhar a real situação jurídica do imóvel, tendo como finalidade tornar pública e transparente, para toda a sociedade (oponibilidade “erga omnes” do registro), a forma de detenção dos imóveis, garantindo, assim, o exercício do direito de propriedade. Nesse sentido, necessária a averbação da existência de demarcação de área indígena homologada e registrada em matrículas de domínio privado incidentes em seus limites, cabendo ao registrador de imóveis cumprir na íntegra o disposto no art. 246, §§ 3º e 4º, da Lei nº 6.015/73, o que se mostra importante para a prática de atos decorrentes do direito de propriedade sobre o imóvel rural, tais como desmembramento, parcelamento, remembramento e transferência. Além disso, cumpre rejeitar a alegação da parte agravada, no sentido de que a situação posta nestes autor não se amolda ao quanto decidido pelo E. STF no RE nº 1.017.365/SC, uma vez que a ação de origem (nº 5000065-72.2024.4.03.6005) versa sobre pedido de nulidade da averbação de que o imóvel da requerente, ora agravada, estava integralmente inserido na área indígena Jatayvari, sob o alegado fundamento de ofensa ao art. 5º do Decreto nº 1.775/1996, que trata do processo administrativo de demarcação de terras indígenas. A situação, portanto, se amolda à decisão proferida pelo e. Min. Edson Fachin no RE referido anteriormente. De outro lado, ao menos em sede de cognição sumária, não se vislumbra ofensa ao contraditório e à ampla defesa no transcurso do processo administrativo de demarcação, que originou a averbação questionada pela agravada, uma vez que "O art. 2º, § 8º, bem como o art. 9º do Decreto nº 1.775/1996 asseguram a todos atingidos pelo procedimento demarcatório o direito de se manifestar até 90 (noventa) dias após a publicação, em meio oficial, do resumo do relatório técnico, podendo contestar todas as alegações apresentadas no procedimento demarcatório" (STF, RMS 27255 AgR, Relator(a): Min. LUIZ FUX, Primeira Turma, julgado em 24/11/2015, ACÓRDÃO ELETRÔNICO DJe-249 DIVULG 10-12-2015 PUBLIC 11-12-2015), disposições essas aparentemente observadas no caso concreto, como se nota do ID 312177078 dos autos de origem, em especial em suas fls. 130/153 (resumo do relatório técnico e sua publicação oficial). Ante o exposto, DOU PROVIMENTO ao agravo de instrumento, confirmando a decisão anteriormente proferida. É como voto.
E M E N T A
AGRAVO DE INSTRUMENTO. PROCEDIMENTO ADMINISTRATIVO DE DEMARCAÇÃO DE TERRAS INDÍGENAS. REGISTRO IMOBILIÁRIO.
- Dentre os princípios que regem os registros públicos destacam-se o da publicidade, o da segurança jurídica e o da presunção. Segundo o vetor da publicidade, o ato registral gera presunção absoluta de que todas as pessoas têm conhecimento de sua existência, garantindo a oponibilidade “erga omnes” dos atos inscritos. De acordo com a fé pública, os registros efetuados e as certidões expedidas pelo registrador são garantia da existência e autenticidade dos atos praticados na serventia. Há também a presunção (relativa) de validade e eficácia, de modo que os atos administrativos somente podem ser desconstituídos mediante prova em contrário.
- Portanto, se for constatada, durante o processo demarcatório, a existência de domínio privado nos limites da terra indígena, será requerida ao Oficial de Registro a averbação, na respectiva matrícula, dessa circunstância. E, aqui, é importante distinguir as situações, uma vez que a Lei fala em averbação, assim entendida como o ato jurídico registral que se presta a tornar conhecida uma alteração da situação fática ou jurídica em relação à coisa ou ao seu titular, tratando-se de medida complementar ao registro, de sorte a torná-lo um repositório confiável de informações acerca do imóvel. A averbação não se confunde, à toda evidência, com o cancelamento da matrícula, de sorte que não procede a alegação da autora da ação originária, no sentido de que houve cancelamento da matrícula do imóvel, pois o que houve, na verdade, foi a mera averbação da situação de sobreposição do imóvel com terras indígenas.
- É importante reafirmar que os atos administrativos são dotados de certos atributos: (a) presunção de legitimidade (conformidade com a lei, já que a atividade administrativa submete-se inteiramente à legalidade); (b) presunção de veracidade (dos fatos que embasam a atividade administrativa); (c) autoexecutoriedade (o ato administrativo será executado, quando necessário, ainda que sem o consentimento do destinatário e independentemente de autorização judicial prévia); (d) imperatividade (decorrente da inevitabilidade de sua execução, porquanto tem poder de coercibilidade sobre aqueles a que se destina). Os atributos mencionados possibilitam a execução imediata do ato administrativo, in casu, com a averbação da constatação da existência de domínio privado nos limites da terra indígena (sobreposição). Outrossim, se é certo que essa presunção de legitimidade e de veracidade é relativa ("juris tantum"), não menos certo é que cabe ao interessado produzir prova em contrário.
- O registro espelha a situação jurídica do imóvel, tendo como finalidade tornar pública e transparente, para toda a sociedade (oponibilidade “erga omnes” do registro), a forma de detenção dos imóveis, garantindo, assim o direito de propriedade. Nesse sentido, necessária a averbação da existência de demarcação de área indígena homologada e registrada em matrículas de domínio privado incidentes em seus limites, cabendo ao registrador de imóveis cumprir na íntegra o disposto no art. 246, § 3º, da Lei nº 6.015/73, o que se mostra importante para a prática de atos decorrentes do direito de propriedade sobre o imóvel rural, tais como desmembramento, parcelamento, remembramento e transferência.
- Agravo de instrumento provido.