APELAÇÃO CÍVEL (198) Nº 0000155-56.2010.4.03.6006
RELATOR: Gab. 13 - DES. FED. MONICA NOBRE
APELANTE: JOSE NELSON BOTEGA
Advogado do(a) APELANTE: MARCOS DOS SANTOS - RJ121615-A
APELADO: INSTITUTO BRASILEIRO DO MEIO AMBIENTE E DOS RECURSOS NATURAIS RENOVAVEIS
OUTROS PARTICIPANTES:
APELAÇÃO CÍVEL (198) Nº 0000155-56.2010.4.03.6006 RELATOR: Gab. 13 - DES. FED. MONICA NOBRE APELANTE: JOSE NELSON BOTEGA Advogado do(a) APELANTE: MARCOS DOS SANTOS - MS12942-A APELADO: INSTITUTO BRASILEIRO DO MEIO AMBIENTE E DOS RECURSOS NATURAIS RENOVAVEIS Advogado do(a) APELADO: DORA MARIA HAIDAMUS MONTEIRO - MS2724 OUTROS PARTICIPANTES: R E L A T Ó R I O Trata-se de apelação interposta por JOSÉ NÉLSON BOTEGA, visando a reforma da r. sentença que, em sede de ação declaratória cumulada com ação anulatória de multa ambiental, julgou improcedente o pedido. Em seu recurso, JOSÉ NÉLSON BOTEGA reafirma os argumentos trazidos ao longo do processo. Afirma que a construção resulta de benfeitorias realizadas em uma edificação anterior, a qual já existia desde a década de 1950/1960, época em que não havia empecilho legal à construção nas margens de rios, visto que o Código Florestal de 1934 não delimitava a faixa de proteção nas margens de rios ou cursos d'água, sendo que somente com a edição da Lei nº 6.938/81 é que as florestas nativas passaram a constituir um bem jurídico ambiental. Além disso, somente com a edição da Lei nº 4.771/65 houve expressa previsão das áreas de preservação permanente, a qual não se aplica ao caso dos autos, pois a construção do imóvel já havia sido consolidada sob a égide da legislação anterior, devendo ser aplicado o princípio da irretroatividade previsto no art. 5°, XXX VI, da Constituição Federal. Com contrarrazões, subiram os autos a este Egrégio Tribunal Regional Federal. É o relatório.
APELAÇÃO CÍVEL (198) Nº 0000155-56.2010.4.03.6006 RELATOR: Gab. 13 - DES. FED. MONICA NOBRE APELANTE: JOSE NELSON BOTEGA Advogado do(a) APELANTE: MARCOS DOS SANTOS - MS12942-A APELADO: INSTITUTO BRASILEIRO DO MEIO AMBIENTE E DOS RECURSOS NATURAIS RENOVAVEIS Advogado do(a) APELADO: DORA MARIA HAIDAMUS MONTEIRO - MS2724 OUTROS PARTICIPANTES: V O T O No presente feito, JOSÉ NÉLSON BOTEGA ajuizou ação declaratória cumulada com ação anulatória de multa ambiental em face do INSTITUTO BRASILEIRO DE MEIO AMBIENTE E DOS RECURSOS NATURAIS – IBAMA. Alega que, contra si, foi lavrado o auto de infração nº 433812-D pelo IBAMA (por ter edificado construção civil em área de preservação permanente - margens do Rio Paraná - sem licença ambiental dos órgãos competentes), o qual aplicou-lhe uma multa de R$15.000,00 (quinze mil reais), bem como embargou o referido imóvel (construção). Sustenta, contudo, que a construção resulta de benfeitorias realizadas em uma edificação anterior, a qual já existia desde a década de 1950/1960, época em que não havia empecilho legal à construção nas margens de rios, visto que o Código Florestal de 1934 não delimitava a faixa de proteção nas margens de rios ou cursos d'água, sendo que somente com a edição da Lei n. 6.938/81 é que as florestas nativas passaram a constituir um bem jurídico ambiental. Além disso, somente com a edição da Lei nº 4.771/65 houve expressa previsão das áreas de preservação permanente, a qual não se aplica ao caso dos autos, pois a construção do imóvel já havia sido consolidada sob a égide da legislação anterior. Requer a inexigibilidade da infração, com a liberação do imóvel e a suspensão de seu nome no Cadin. Pois bem. O art. 225 da Constituição Federal consagrou o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado como direito fundamental, criando o dever de o agente degradador reparar os danos causados e estabeleceu o fundamento de responsabilização de agentes poluidores, pessoas físicas e jurídicas. Para assegurar a efetividade desse direito, a CF determina ao Poder Público, entre outras obrigações, que crie espaços territoriais e seus componentes a serem especialmente protegidos em todas as unidades da Federação. Essa disposição constitucional recepcionou a proteção anteriormente existente na esfera da legislação ordinária, destacando-se, em especial, a Lei nº 4.771/1965, que instituiu o antigo Código Florestal. Em 18 de julho de 1989 foi editada a Lei nº 7.803, que incluiu um parágrafo único ao art. 2º do Código Florestal então vigente, informando que os limites definidos como áreas de proteção permanente (que haviam sido ampliados pela Lei nº 7.511/86), também se aplicavam às áreas urbanas e deveriam ser observados nos planos diretores municipais. Referida legislação infraconstitucional foi revogada com a edição do novo Código Florestal (Lei nº 12.651, de 25 de maio de 2012). A nova lei florestal manteve basicamente a sistemática adotada pela Lei n° 4.771/65 e alterações posteriores, estabelecendo faixas protegidas nas margens de cursos d'água, lagos, reservatórios artificiais, nascentes, dentre outros. Reproduzo os artigos 3º, II, e 4º, II, ambos, da Lei nº 12.651/12: Art. 3o Para os efeitos desta Lei, entende-se por: (...) II - Área de Preservação Permanente - APP: área protegida, coberta ou não por vegetação nativa, com a função ambiental de preservar os recursos hídricos, a paisagem, a estabilidade geológica e a biodiversidade, facilitar o fluxo gênico de fauna e flora, proteger o solo e assegurar o bem-estar das populações humanas; (...) Art. 4o Considera-se Área de Preservação Permanente, em zonas rurais ou urbanas, para os efeitos desta Lei: I - as faixas marginais de qualquer curso d'água natural perene e intermitente, excluídos os efêmeros, desde a borda da calha do leito regular, em largura mínima de: a) 30 (trinta) metros, para os cursos d'água de menos de 10 (dez) metros de largura; b) 50 (cinquenta) metros, para os cursos d'água que tenham de 10 (dez) a 50 (cinquenta) metros de largura; c) 100 (cem) metros, para os cursos d'água que tenham de 50 (cinquenta) a 200 (duzentos) metros de largura; d) 200 (duzentos) metros, para os cursos d'água que tenham de 200 (duzentos) a 600 (seiscentos) metros de largura; e) 500 (quinhentos) metros, para os cursos d'água que tenham largura superior a 600 (seiscentos) metros; O mesmo diploma legal (Lei nº 12.651/2012) fixou o regime de proteção das Áreas de Preservação Permanente: "Art. 7º. A vegetação situada em Área de Preservação Permanente deverá ser mantida pelo proprietário da área, possuidor ou ocupante a qualquer título, pessoa física ou jurídica, de direito público ou privado. § 1º. Tendo ocorrido supressão de vegetação situada em Área de Preservação Permanente, o proprietário da área, possuidor ou ocupante a qualquer título é obrigado a promover a recomposição da vegetação, ressalvados os usos autorizados previstos nesta Lei. § 2º. A obrigação prevista no § 1o tem natureza real e é transmitida ao sucessor no caso de transferência de domínio ou posse do imóvel rural. § 3º. No caso de supressão não autorizada de vegetação realizada após 22 de julho de 2008, é vedada a concessão de novas autorizações de supressão de vegetação enquanto não cumpridas as obrigações previstas no § 1º. Art. 8º. A intervenção ou a supressão de vegetação nativa em Área de Preservação Permanente somente ocorrerá nas hipóteses de utilidade pública, de interesse social ou de baixo impacto ambiental previstas nesta Lei. § 1º. A supressão de vegetação nativa protetora de nascentes, dunas e restingas somente poderá ser autorizada em caso de utilidade pública. § 2º. A intervenção ou a supressão de vegetação nativa em Área de Preservação Permanente de que tratam os incisos VI e VII do caput do art. 4o poderá ser autorizada, excepcionalmente, em locais onde a função ecológica do manguezal esteja comprometida, para execução de obras habitacionais e de urbanização, inseridas em projetos de regularização fundiária de interesse social, em áreas urbanas consolidadas ocupadas por população de baixa renda. § 3º. É dispensada a autorização do órgão ambiental competente para a execução, em caráter de urgência, de atividades de segurança nacional e obras de interesse da defesa civil destinadas à prevenção e mitigação de acidentes em áreas urbanas. § 4º. Não haverá, em qualquer hipótese, direito à regularização de futuras intervenções ou supressões de vegetação nativa, além das previstas nesta Lei. Art. 9º. É permitido o acesso de pessoas e animais às Áreas de Preservação Permanente para obtenção de água e para realização de atividades de baixo impacto ambiental." Verifica-se, portanto, que as Áreas de Preservação Permanente são espaços de proteção impositiva e integral, que não admitem qualquer tipo de exploração. Em outros termos, são áreas destinadas, unicamente, à proteção do meio ambiente. A delimitação do uso de tais terrenos pelo legislador objetivou, portanto, evitar a ocorrência de desequilíbrio irreparável ao ecossistema, mediante proteção dos recursos hídricos, da biodiversidade, da fauna e da flora. Ressalto que, com relação à tutela ambiental, se aplica a responsabilidade objetiva, ou seja, não há espaço para a discussão de culpa, bastando a comprovação da atividade e o nexo causal com o resultado danoso, consoante determinação expressa do artigo 4º, inciso VII, c/c artigo 14, § 1º, ambos, da Lei nº 6.938/1981. Vale lembrar, ainda, quanto ao cometimento de danos ambientais e ao dever de repará-los, tem-se que as obrigações decorrentes de eventuais prejuízos ou interferências negativas ao meio ambiente são propter rem, possuindo caráter acessório à atividade ou propriedade em que ocorreu a poluição ou degradação. Está claro que o adquirente é responsável pelo passivo ambiental do imóvel adquirido. Caso contrário, a degradação ambiental dificilmente seria reparada, uma vez que bastaria cometer-se a infração e desfazer-se do bem lesado para que o dano ambiental estivesse consolidado e legitimado, sem qualquer ônus reparatório. Cabe reconhecer, na realidade, que o simples fato de o novo proprietário/possuidor se omitir no que tange à necessária regularização ambiental é mais do que suficiente para caracterizar o nexo causal. Ademais, sua ação ou omissão, além de não garantir a desejada reparação, permitirá a continuidade do dano ambiental iniciado por outrem. Daí ser inegável sua responsabilidade civil. Neste sentido, o atual Código Florestal (Lei nº 12.651/12) preceitua, em seu artigo 2º, § 2º, que "as obrigações previstas nesta Lei têm natureza real e são transmitidas ao sucessor, de qualquer natureza, no caso de transferência de domínio ou posse do imóvel rural". Destaca-se, também, que a Constituição Federal estabelece que "a propriedade atenderá a sua função social" (art. 5º, inciso XXIII) e que o Código Civil assinala que "o direito de propriedade deve ser exercido em consonância com as suas finalidades econômicas e sociais e de modo que sejam preservados, de conformidade com o estabelecido em lei especial, a flora, a fauna, as belezas naturais, o equilíbrio ecológico e o patrimônio histórico e artístico, bem como evitada a poluição do ar e das águas" (artigo 1.228, § 1º, da Lei 10.406/02). No caso dos autos, a controvérsia diz respeito em verificar se o apelante é possuidor de imóvel no denominado bairro Beira Rio, consistente em lote no qual houve edificações irregulares de forma clandestina, dentro de área de preservação permanente, sem licença ou aprovação dos órgãos estatais competentes, que interferem e impedem a regeneração natural da flora e fauna. Após análise do conjunto probatório, não há dúvidas da existência de edificações às margens do Rio Paraná, dentro da área de preservação permanente e, consequentemente, da ofensa ao meio ambiente. Nesse sentido, detalhou a r. sentença: "a distância da construção à margem do Rio Paraná é de 18,20 metros" (fl.138). Assim, a construção encontra-se dentro do perímetro estabelecido pelo art.20, "a", 5, da Lei n. 4.771/65 como área de preservação permanente "ex lege", disposição repetida, também, pela Resolução Conama n. 303/2002 em seu art. 30, 1, "e"”. Saliento, por oportuno, ainda que irregularidades apontadas pelo Ministério Público ficassem caracterizadas nos termos da antiga redação do Código Florestal (Lei 4.771/65, com as alterações da Lei 7.803/89), é certo que o advento do novo Código Florestal (Lei 12.651/12) não alterou substancialmente a matéria, continuando a prever como área mínima de consolidação de uma APP a distância de 200 (duzentos) metros, para os cursos d'água que tenham largura de 200 (duzentos) a 600 (seiscentos) metros de largura (como é o caso do Rio Paraná). Cumpre ressaltar que esta regra é aplicável tanto a imóveis localizados em área rural quanto urbana. Assim, irrelevante a discussão se a área em questão é rural ou urbana, já que a metragem a ser observada é a mesma para ambas as situações. Também não há que se falar em regularização fundiária, nos termos dos artigos 64 e 65, da Lei nº 12.651/12: "Art. 64. Na regularização fundiária de interesse social dos assentamentos inseridos em área urbana de ocupação consolidada e que ocupam Áreas de Preservação Permanente, a regularização ambiental será admitida por meio da aprovação do projeto de regularização fundiária, na forma da Lei no 11.977, de 7 de julho de 2009. (...) Art. 65. Na regularização fundiária de interesse específico dos assentamentos inseridos em área urbana consolidada e que ocupam Áreas de Preservação Permanente não identificadas como áreas de risco, a regularização ambiental será admitida por meio da aprovação do projeto de regularização fundiária, na forma da Lei no 11.977, de 7 de julho de 2009." Da simples leitura do dispositivo acima, nota-se que, para a ocorrência da regularização fundiária, a área precisa ser caracterizada como urbana consolidada, não estar inserida em área de risco e ter aprovado um projeto específico para esta regularização. Esclareço, neste aspecto, que a localidade em referência não detém os pressupostos necessários para ser caracterizada como área urbana consolidada, nos termos do art. 47, II, da Lei 11.977/2009. Importante destacar que, em que pese a constitucionalidade do art. 61-A, da Lei Federal nº 12.651/2012, este só se aplica a imóveis rurais devidamente inscritos no CAR e com uso agrossilvipastoril, de ecoturismo e de turismo rural consolidados, o que não é o caso dos autos. Portanto, sob qualquer ótica, resta patente que o apelante ocupa indevidamente área de preservação permanente, o que caracteriza dano ao meio ambiente em razão do óbice à regeneração natural ao local. E não sendo área passível de regularização fundiária ou ambiental, a faixa não edificável a ser considerada é aquela prevista no Código Florestal, ou seja, 200 (duzentos) metros para os cursos d'água que tenham largura de 200 (duzentos) a 600 (seiscentos) metros. Assim, a r. sentença deve mantida. Diante do exposto, nego provimento ao RECURSO DE APELAÇÃO.
O Desembargador Federal Wilson Zauhy:
Peço vênia à Relatora para divergir de seu voto, pelas razões que passo a expor:
Da legislação aplicável
No julgamento conjunto da ADC 42/DF e das ADI 4901/DF, ADI 4902/DF, ADI 4903/DF e ADI 4937/DF, o Supremo Tribunal Federal decidiu pela constitucionalidade do art. 61-A do Código Florestal, ocasião em que firmou a seguinte tese:
“(u) Arts. 61-A, 61-B, 61-C, 63 e 67 (Regime das áreas rurais consolidadas até 22.07.2008): O Poder Legislativo dispõe de legitimidade constitucional para a criação legal de regimes de transição entre marcos regulatórios, por imperativos de segurança jurídica (art. 5º, caput, da CRFB) e de política legislativa (artigos 21, XVII, e 48, VIII, da CRFB). Os artigos 61-A, 61-B, 61-C, 63 e 67 da Lei n. 12.651/2012 estabelecem critérios para a recomposição das Áreas de Preservação Permanente, de acordo com o tamanho do imóvel. O tamanho do imóvel é critério legítimo para definição da extensão da recomposição das Áreas de Preservação Permanente, mercê da legitimidade do legislador para estabelecer os elementos norteadores da política pública de proteção ambiental, especialmente à luz da necessidade de assegurar minimamente o conteúdo econômico da propriedade, em obediência aos artigos 5º, XXII, e 170, II, da Carta Magna, por meio da adaptação da área a ser recomposta conforme o tamanho do imóvel rural. Além disso, a própria lei prevê mecanismos para que os órgãos ambientais competentes realizem a adequação dos critérios de recomposição para a realidade de cada nicho ecológico; CONCLUSÃO: Declaração de constitucionalidade dos artigos 61-A, 61-B, 61-C, 63 e 67 do Código Florestal;” (destaquei).
Além disso, em diversas oportunidades, apreciando reclamações contra a autoridade desses julgados, o Supremo Tribunal Federal aplicou o entendimento de que casos como o presente devem ser apreciados à luz do atual Código Florestal, e não da legislação anterior vigente ao tempo da intervenção (regra “tempus regit actum”), como exemplifica o seguinte julgado do Superior Tribunal de Justiça:
“PROCESSUAL CIVIL. AGRAVO INTERNO NO RECURSO ESPECIAL. AÇÃO CIVIL PÚBLICA AMBIENTAL. PRETENSO RECONHECIMENTO DE INCONSTITUCIONALIDADE DE DISPOSITIVOS LEGAIS CONTIDOS NA LEI 12.651/2012. CUMPRIMENTO À DECISÃO DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL PROFERIDA NA RECLAMAÇÃO 43.703/SP. DECISÕES PROFERIDAS PELO PLENÁRIO DESTA CORTE NA ADC 42/DF E NAS ADIS 4.901/DF, 4.902/DF, 4.903/DF E 4.937/DF. RECONHECIMENTO DE SITUAÇÕES CONSOLIDADAS E A REGULARIZAÇÃO AMBIENTAL DE IMÓVEIS RURAIS A PARTIR DE SUAS NOVAS DISPOSIÇÕES, E NÃO A PARTIR DA LEGISLAÇÃO VIGENTE NA DATA DOS ILÍCITOS AMBIENTAIS. AGRAVO INTERNO DOS PARTICULARES A QUE SE DÁ PROVIMENTO, EM JUÍZO DE RETRATAÇÃO.
1. A Primeira Turma acompanhou voto de relatoria do Ministro Napoleão Nunes Maia Filho para negar provimento ao agravo regimental de iniciativa dos particulares, reconhecendo que, segundo ambas as turmas da Primeira Seção deste Tribunal Superior, a regra geral será a incidência da legislação florestal, de direito material, vigente à época dos fatos, na qual se determina a aplicação da Lei 4.771/1965 para as degradações ambientais ocorridas em sua vigência.
2. Após o referido julgado, o Supremo Tribunal Federal julgou procedente a reclamação proposta pelo ente público sucumbente, autuada sob o número 43.703/SP, afirmando que, em reiteradas reclamações, tem considerado que o raciocínio adotado pelo Superior Tribunal de Justiça, fundado nos princípios do tempus regit actum e da vedação de retrocesso ambiental, acarreta burla às decisões proferidas por seu Plenário na Ação Declaratória de Constitucionalidade 42/DF e nas Ações Diretas de Inconstitucionalidade 4.901/DF, 4.902/DF, 4.903/DF e 4.937/DF, e implica o esvaziamento do conteúdo normativo de dispositivo legal, com fundamento constitucional implícito, constante na Súmula Vinculante 10.
3. Logo, em cumprimento à decisão emanada na Reclamação 43.703/SP, declara-se que o voto ora combatido diverge do decidido pelo Supremo Tribunal Federal no julgamento das ADIs 4.902/DF, 4.903/DF e 4.937/DF e da ADC 42/DF quanto à legitimidade constitucional do Poder Legislativo para instituir "regimes de transição entre marcos regulatórios, por imperativos de segurança jurídica (art. 5º, caput, da CRFB) e de política legislativa (artigos 21, XVII, e 48, VIII, da CRFB)". Assim, a eficácia retroativa da Lei 12.651/2012 permitiu, por força geral dos arts. 61-A, 61-B, 61-C, 63 e 67, o reconhecimento de situações consolidadas e a regularização ambiental de imóveis rurais levando em conta suas novas disposições, e não à luz da legislação vigente na data dos ilícitos ambientais.
4. Agravo interno dos particulares a que se dá provimento, em juízo de retratação, para restabelecer os termos do acordão proferido nos autos do recurso de apelação pelo Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo” (destaquei).
(STJ, AgInt no REsp n. 1.668.484/SP, relator Ministro Manoel Erhardt (Desembargador Convocado do TRF5), Primeira Turma, julgado em 5/12/2022, DJe de 7/12/2022).
Desta forma, independentemente da data das intervenções na área de preservação permanente - APP em questão, a legislação a ser aplicada é o atual Código Florestal (Lei nº 12.651/2012) e suas posteriores alterações.
Do marco temporal e da garantia constitucional à moradia
Dentre os diversos dispositivos do Código Florestal aplicáveis, ao menos em tese, ao caso concreto, merece destaque o art. 61-A, que assim dispõe:
“Art. 61-A. Nas Áreas de Preservação Permanente, é autorizada, exclusivamente, a continuidade das atividades agrossilvipastoris, de ecoturismo e de turismo rural em áreas rurais consolidadas até 22 de julho de 2008. (Incluído pela Lei nº 12.727, de 2012). (Vide ADIN Nº 4.937) (Vide ADC Nº 42) (Vide ADIN Nº 4.902)
§ 1º Para os imóveis rurais com área de até 1 (um) módulo fiscal que possuam áreas consolidadas em Áreas de Preservação Permanente ao longo de cursos d’água naturais, será obrigatória a recomposição das respectivas faixas marginais em 5 (cinco) metros, contados da borda da calha do leito regular, independentemente da largura do curso d´água. (Incluído pela Lei nº 12.727, de 2012).
§ 2º Para os imóveis rurais com área superior a 1 (um) módulo fiscal e de até 2 (dois) módulos fiscais que possuam áreas consolidadas em Áreas de Preservação Permanente ao longo de cursos d’água naturais, será obrigatória a recomposição das respectivas faixas marginais em 8 (oito) metros, contados da borda da calha do leito regular, independentemente da largura do curso d´água. (Incluído pela Lei nº 12.727, de 2012).
§ 3º Para os imóveis rurais com área superior a 2 (dois) módulos fiscais e de até 4 (quatro) módulos fiscais que possuam áreas consolidadas em Áreas de Preservação Permanente ao longo de cursos d’água naturais, será obrigatória a recomposição das respectivas faixas marginais em 15 (quinze) metros, contados da borda da calha do leito regular, independentemente da largura do curso d’água. (Incluído pela Lei nº 12.727, de 2012).
§ 4º Para os imóveis rurais com área superior a 4 (quatro) módulos fiscais que possuam áreas consolidadas em Áreas de Preservação Permanente ao longo de cursos d’água naturais, será obrigatória a recomposição das respectivas faixas marginais: (Incluído pela Lei nº 12.727, de 2012).
I - (VETADO); e (Incluído pela Lei nº 12.727, de 2012).
II - nos demais casos, conforme determinação do PRA, observado o mínimo de 20 (vinte) e o máximo de 100 (cem) metros, contados da borda da calha do leito regular. (Incluído pela Lei nº 12.727, de 2012).
(...)
§ 12. Será admitida a manutenção de residências e da infraestrutura associada às atividades agrossilvipastoris, de ecoturismo e de turismo rural, inclusive o acesso a essas atividades, independentemente das determinações contidas no caput e nos §§ 1º a 7º, desde que não estejam em área que ofereça risco à vida ou à integridade física das pessoas. (Incluído pela Lei nº 12.727, de 2012).
(...)” (destaquei).
Tenho que referido dispositivo merece uma interpretação sistemática, à luz das demais disposições do próprio Código Florestal e, principalmente, da Constituição Federal de 1988.
Isto porque a mera interpretação literal do caput do art. 61-A poderia levar à conclusão de que apenas as “atividades agrossilvipastoris, de ecoturismo e de turismo rural em áreas rurais consolidadas até 22 de julho de 2008” é que poderiam ter continuidade.
Contudo, o § 12 deste artigo não deixa dúvidas de que as residências em áreas rurais consolidadas também podem ser mantidas, independentemente de estarem associadas a tais atividades.
Se assim não fosse, o legislador teria optado por outra redação, que deixaria claro que somente residências em imóveis vinculados àquelas atividades é que poderiam ser mantidas.
Nesse sentido, já decidiu a Quarta Turma deste Tribunal:
“PROCESSO CIVIL. DIREITO AMBIENTAL. PROTEÇÃO AO MEIO AMBIENTE. ÁREA DE PROTEÇÃO PERMANENTE. DELIMITAÇÃO. MUNICÍPIO DE ROSANA. EXCEPCIONALIDADE.
1. O Município de Rosana foi desmembrado do Município de Teodoro Sampaio e o Bairro Beira Rio surgiu na década de 1960, sendo certo que, anteriormente ao aludido desmembramento, era ocupado por ribeirinhos e pescadores, que tiravam seu sustento do Rio Paraná e, posteriormente, por pescadores amadores e pequenos comerciantes, que aproveitavam o movimento de cruzamento do rio Paraná em direção ao Estado de Mato Grosso do Sul que era feito por uma balsa. Isto até enchimento da represa da Hidrelétrica Sérgio Motta. Portanto, o bairro surgiu antes do próprio Município de Rosana, há mais de 50 anos, sendo que referido bairro foi inserido no perímetro urbano do Município de Rosana por meio da LC 020/2007.
2. Em cumprimento ao que determina o artigo 182 da Constituição Federal e a Lei Federal nº 10.257/2001 (Estatuto da Cidade), o Município de Rosana promulgou, ainda, a Lei Complementar nº 45/2015, instituindo o seu Plano Diretor Participativo. Diante do peculiar interesse do Município, e considerando a certificação legal de que o bairro onde se localiza o imóvel dos réus está dentro do perímetro urbano da cidade, estabeleceu-se um zoneamento municipal e o território de Rosana foi ordenado a partir de macrozonas, dentre as quais ressalta o art. 29, II, a Macrozona de Interesse Turístico e Ambiental (MZITA). Restou disposto, ainda, no parágrafo único do artigo 31 do referido regramento que são diretrizes específicas da MZITA, "Estimular e promover a regularização ambiental das ocupações situadas em APPs e nas ilhas do Rio Paraná, observando a Lei Federal nº 12.651/2012, em especial as disposições contidas no Capítulo XIII, Seção II que trata das áreas consolidadas em APP."
3. Assim, dentro do regramento do novo Código Florestal, e com fundamento em seu interesse local, é direito e dever do Município de Rosana, ordenar seu território e proceder, como, aliás, expressamente autoriza referida norma, a regularização dessas ocupações antrópicas ao longo do rio Paraná. Pouco importa se o Ministério Público concorda ou não com a inserção do bairro Beira Rio como perímetro urbano (zona urbana). O problema é do Município e não da União Federal. Nenhum Poder Judiciário poderá dizer que a lei municipal é inconstitucional, eis que sua edição e promulgação encontra fundamento constitucional e também no Estatuto das Cidades. Destaque-se que os dispositivos legais mencionados, por mais que alguns entendam que não devem ser assim aplicados, foram declarados constitucionais pelo Colendo STF, e cuida das Áreas Consolidadas em Áreas de Preservação Permanente.
4. Quanto às denominadas áreas urbanas e urbanas consolidadas, o próprio Código Florestal remete ao Estatuto das Cidades, e nesse sentido foi que o Município de Rosana dispôs no § 2º do artigo 80 do Plano Diretor que: "§ 2º- Para fins de regularização ambiental prevista no caput, ao longo dos rios ou de qualquer curso d'água, deverá ser mantida Área de Preservação Permanente (APP) com largura mínima de 5 (cinco) metros de cada lado." (destaquei)
5. A compatibilização do novo Código Florestal com os interesses do Município, igualmente protegidos, devem levar em consideração a dignidade da pessoa humana, e a Lei nº 12.651/2012 faz uma diferenciação entre a área rural consolidada e área urbana ou urbana consolidada, para fixar limites diferenciados para observância de APP, sendo absurda e divorciada totalmente da realidade exigir-se em área urbana ou urbana consolidada APP de 500 (quinhentos) metros, pena de se inviabilizar totalmente o pequenino Município de Rosana, que conta com um população de pouco mais de 19.600 habitantes, pelo último censo, cerca de 26,5 habitantes por km2 e um PIB de R$ 778.538,00, comparativamente com a cidade de Presidente Prudente, que lhe é próxima e conta com um PIB de R$ 24,8 bilhões.
6. Evidente que o magistrado há de julgar os feitos que lhe são submetidos com a ponderação e razoabilidade nas decisões. Aliás, é assim que determina o art. 20 da Lei nº 13.655/2018 que instituiu a Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro, determinando que a decisão judicial considere as consequências práticas de sua decisão.
7. Na espécie, a legislação ambiental prevê expressamente a possibilidade de regularização da área, sem ampliação ou modificação do status quo, devendo os ribeirinhos se submeter ao PRA, nos termos do art. 4º do Código Florestal. Aliás, bem por isso o Plano Diretor do Município já prevê o PRA (Plano de Recuperação Ambiental). Os imóveis, quer rurais, quer urbanos, devem, na hipótese alinhavada, se submeter à Regularização Ambiental, em especial se considerarmos que nenhum deles tem área superior a 1(hum) hectare. É nesse sentido, aliás, o § 12 do art. 61-A do Código Florestal, cuja constitucionalidade veio de ser reconhecida pelo C. STF, e que, expressamente, admite a manutenção das residências. Assim não fosse, o artigo em análise não teria afirmado "e da infra estrutura associada". Teria o legislador escrito residências "e infraestrutura associadas", o que não ocorreu.
8. Destaque que a ocupação antrópica que o Código admite, não é qualquer ocupação. Há de ser aquela preexistente a 22 de julho de 2008, como é o caso dos autos. Acrescenta-se, por oportuno, que a dignidade da pessoa humana e os direitos que lhe foram garantidos pelo texto constitucional, explicitados no "caput" do art. 6º, arrolam, ao lado da educação e da saúde, dentre outros, o trabalho, a moradia e o lazer. Aliás, leciona o Prof. Celso Antonio Fiorillo que: "... a nova legislação instrumental ratifica no plano infraconstitucional que lesões ou ameaça aos bens ambientais/direito ambiental (patrimônio genético, meio ambiente cultural, meio ambiente digital, meio ambiente artificial, saúde ambiental, meio ambiente do trabalho e meio ambiente natural) serão apreciadas pelo Poder Judiciário, conforme os princípios fundamentais indicados nos arts. 1º a 3º da Carta Magna, bem como em face das garantias e direitos individuais fundamentais indicados no art. 5º e seguintes da Constituição Federal." (Direito Processual Ambiental Brasileiro-Saraiva, 2018, p. 25)
9. Por fim, cabe deixar consignado que o C. STF, nas inúmeras reclamações recebidas contra a autoridade dos julgamentos proferidos nas ADI's 4901, 4902, 4903, 4937 e ADC 42, apreciadas em 28/02/2018, tem suspendido os efeitos dos julgamentos proferidos com fundamento nas disposições do Código Florestal (Lei nº 4.771/1965), inclusive desta E. Corte (v. Rcl 51472 MC/SP - Relator Min. DIAS TOFFOLI - j. 18/02/2022 - Publicação DJe-s/n DIVULG 21/02/2022 PUBLIC 22/02/2022). Registre-se que, como consequência do julgamento do mérito da Reclamação, a Vice Presidência deste E. Tribunal proferiu a decisão, determinando o retorno dos autos à E. 6ª Turma para rejulgamento da Apelação nº 0004931-67.22013.403.6112, com observância das disposições do Código Florestal (Lei nº 12.651/2012) ao caso concreto (Área de Preservação Permanente localizada no Rio Paraná, Município de Rosana/SP), afastando-se a incidência do princípio tempus regit actum, expressamente adotado pelo e. Relator neste julgamento.
10. De rigor o provimento, parcial, do apelo dos réus, para limitar as obrigações impostas na r. sentença – demolição e remoção de entulho - às edificações inseridas nas faixas marginais previstas no art. 61-A da Lei 12.651/2012, impondo-se a recuperação ambiental nos limites estabelecidos, seguindo-se as diretrizes estabelecidas no Plano Diretor, bem assim para reduzir o valor da indenização para R$ 1.000,00.
11. Apelação provida, em parte” (destaquei).
(TRF da 3ª Região, Apelação Cível nº 0007948-14.2013.4.03.6112/SP, Rel. Desembargador Federal Marcelo Saraiva, Rel. p/ Acórdão Desembargadora Federal Marli Ferreira, Quarta Turma, julgamento em 16/11/2023, DJEN: 16/02/2024).
E não poderia ser diferente, já que o direito à moradia tem assento constitucional (art. 6º da Constituição Federal).
Não seria compatível com a Constituição uma interpretação que autorizasse apenas a manutenção de imóveis vinculados a determinadas atividades econômicas e negasse tal possibilidade às residências, sob pena de se menosprezar o direito à moradia, colocando-o como menos importante do que aquelas atividades.
Tal entendimento levaria a situações paradoxais em que a decisão sobre a manutenção ou demolição das intervenções em APP dependeria do exercício, ou não, dessas atividades, independentemente do uso do imóvel como moradia, tudo isso sem previsão legal, como visto até aqui.
Registre-se que, ao utilizar o termo “residências”, o legislador não exigiu que fossem elas residências permanentes, não cabendo ao intérprete incluir esse requisito não previsto em lei, sob pena de se restringir indevidamente uma garantia constitucional.
Além disso, cabe consignar que o uso que se dá a um determinado imóvel é algo mutável ao longo do tempo, já que nada impede que o lugar que hoje é usado como “casa de veraneio” venha a se tornar a residência permanente de seu proprietário, possuidor ou mesmo detentor.
Daí porque, embora não desconheça julgados do STJ nos quais se decidiu que o art. 61-A do Código Florestal não seria aplicável a “casas de veraneio”, sem eficácia vinculante, não me filio a esse entendimento.
Diversamente, penso que a possibilidade de o imóvel servir de moradia, intermitente ou permanente, atrai a incidência do § 12 do art. 61-A do Código Florestal.
Da possibilidade de regularização fundiária
Assim está disciplinada a matéria pelo Código Florestal, com as alterações da Lei nº 14.285/2021:
“Art. 4º Considera-se Área de Preservação Permanente, em zonas rurais ou urbanas, para os efeitos desta Lei:
(...)
§ 10. Em áreas urbanas consolidadas, ouvidos os conselhos estaduais, municipais ou distrital de meio ambiente, lei municipal ou distrital poderá definir faixas marginais distintas daquelas estabelecidas no inciso I do caput deste artigo, com regras que estabeleçam: (Incluído pela Lei nº 14.285, de 2021)
I – a não ocupação de áreas com risco de desastres; (Incluído pela Lei nº 14.285, de 2021)
II – a observância das diretrizes do plano de recursos hídricos, do plano de bacia, do plano de drenagem ou do plano de saneamento básico, se houver; e (Incluído pela Lei nº 14.285, de 2021)
III – a previsão de que as atividades ou os empreendimentos a serem instalados nas áreas de preservação permanente urbanas devem observar os casos de utilidade pública, de interesse social ou de baixo impacto ambiental fixados nesta Lei. (Incluído pela Lei nº 14.285, de 2021).
(...)” (destaquei).
Como se vê, há expressa previsão legal de que os municípios estipulem faixas de área de preservação permanente para áreas urbanas consolidadas distintas das previstas no Código Florestal, observadas certas condicionantes.
A Lei nº 14.285/2021 é posterior ao julgamento conjunto da ADC 42/DF e das ADI 4901/DF, ADI 4902/DF, ADI 4903/DF e ADI 4937/DF e não consta que o Supremo Tribunal Federal tenha decidido pela sua invalidade, estando em plena vigência, portanto.
Desta forma, se acaso o imóvel estiver inserido em áreas urbanas consolidadas, será necessário examinar se o município estipulou faixas de áreas de preservação permanente diversas das previstas no Código Florestal.
Conclusão
De tudo o quanto visto até aqui, conclui-se que o art. 61-A do Código Florestal é aplicável às residências localizadas em áreas rurais consolidadas até 22 de julho de 2008, independentemente de estarem associadas a atividades agrossilvipastoris, de ecoturismo e de turismo rural.
Conclui-se, ainda, que, em se tratando de imóvel localizado em áreas urbanas consolidadas, lei municipal pode definir faixas marginais de área de preservação permanente distintas das previstas no art. 4º do Código Florestal, conforme o § 10 deste artigo, incluído pela Lei nº 14.285/2021, o que deve ser analisado caso a caso.
Do caso concreto
Discute-se nestes autos a extensão da faixa de APP relativa a imóvel inserido na região de “Porto Caiuá”, município de Naviraí/MS.
Consigno que esta Quarta Turma já decidiu, por maioria, que a localidade de Porto Caiuá não poderia ser considerada área urbana consolidada, como exemplifica o seguinte precedente:
“APELAÇÕES E REEXAME NECESSÁRIO. AMBIENTAL. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. INTERVENÇÃO EM ÁREA DE PRESERVAÇÃO PERMANENTE. RIO PARANÁ. APP DE 500 METROS. DANO AMBIENTAL CONFIGURADO. RESPONSABILIDADE OBJETIVA. RISCO INTEGRAL. DEVER DE RESTAURAÇÃO CONFIGURADO. INDENIZAÇÃO. CONDENAÇÃO AO PAGAMENTO. FIXAÇÃO DO QUANTUM POR ARBITRAMENTO.
(...)
- A localidade de Porto Caiuá não pode ser considerada área urbana consolidada porquanto não conta com densidade demográfica superior a cinco mil habitantes por km², o que afasta a aplicação da Lei Municipal de Naviraí nº 1.603/2011, que criou o Distrito do Porto Caiuá, para justificar a manutenção do imóvel.
(...)” (destaquei).
(TRF da 3ª Região, Apelação Cível nº 0000389-38.2010.4.03.6006/MS, Rel. Desembargador Federal Marcelo Saraiva, Rel. p/ Acórdão Desembargador Federal André Nabarrete, Quarta Turma, julgamento em 17/04/2024, intimação via sistema em 18/04/2024).
Com isto, é aplicável ao caso o § 12 do art. 61-A do Código Florestal, que autoriza a manutenção do imóvel em questão - que é uma residência, ainda que não permanente -, desde que não esteja em área que ofereça risco à vida ou à integridade física das pessoas.
Isto porque não há dúvidas de que o imóvel em questão é anterior ao marco temporal (22/07/2008).
Quanto a isso, veja-se que da própria inicial constou que fora lavrado auto de infração ambiental em desfavor do réu em 2005 (ID 102709515 - pág. 05).
Além disso, constou do laudo pericial lavrado em 19/05/2011 que o imóvel teria sido construído há cerca de 15 (quinze) anos (ID 102709515 - pág. 148/156).
Quanto a um possível risco à vida ou à integridade física das pessoas, nada foi informado no laudo pericial, não sendo possível presumir a existência desse risco.
Mesmo que ocorram inundações em algum momento, é certo que não representam risco à vida ou integridade física das pessoas, porque do contrário o distrito em questão não estaria instalado ali há tantas décadas.
Desta forma, a manutenção do imóvel encontra amparo no § 12 do art. 61-A do Código Florestal.
Da sucumbência na demanda
Inverto os ônus sucumbenciais para condenar a ré ao pagamento de custas processuais em reembolso e de honorários advocatícios, estes fixados em R$ 400,00 (quatrocentos reais), mesmo valor arbitrado em sentença.
Dispositivo
Ante o exposto, voto por dar provimento à apelação para anular o auto de infração discutido nestes autos e a multa ambiental nele fundada, condenando a ré ao pagamento de custas processuais em reembolso e de honorários advocatícios, estes fixados em R$ 400,00 (quatrocentos reais).
É como voto.
E M E N T A
CONSTITUCIONAL. AÇÃO DECLARATÓRIA CUMULADA COM AÇÃO ANULATÓRIA DE MULTA AMBIENTAL. DANO AMBIENTAL CONFIGURADO. OCUPAÇÃO E EDIFICAÇÃO EM ÁREA DE PRESERVAÇÃO PERMANENTE. RESPONSABILIDADE OBJETIVA E PROPTER REM DO POSSUIDOR. FUNÇÃO SÓCIOAMBIENTAL DA PROPRIEDADE. IMPOSSIBILIDADE DA REGULARIZAÇÃO FUNDIÁRIA. INAPLICABILIDADE DO ARTIGO 61-A DA LEI FEDERAL Nº 12.651/2012. ÁREA DE PROTEÇÃO EQUIVALENTE A 200 METROS.
- JOSÉ NÉLSON BOTEGA ajuizou ação declaratória cumulada com ação anulatória de multa ambiental em face do INSTITUTO BRASILEIRO DE MEIO AMBIENTE E DOS RECURSOS NATURAIS – IBAMA. Alega que, contra si, foi lavrado o auto de infração nº 433812-D pelo IBAMA (por ter edificado construção civil em área de preservação permanente - margens do Rio Paraná - sem licença ambiental dos órgãos competentes), o qual aplicou-lhe uma multa de R$15.000,00 (quinze mil reais), bem como embargou o referido imóvel (construção).
- O art. 225 da Constituição Federal consagrou o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado como direito fundamental, criando o dever de o agente degradador reparar os danos causados e estabeleceu o fundamento de responsabilização de agentes poluidores, pessoas físicas e jurídicas. Para assegurar a efetividade desse direito, a CF determina ao Poder Público, entre outras obrigações, que crie espaços territoriais e seus componentes a serem especialmente protegidos em todas as unidades da Federação.
- Essa disposição constitucional recepcionou a proteção anteriormente existente na esfera da legislação ordinária, destacando-se, em especial, a Lei nº 4.771/1965, que instituiu o antigo Código Florestal. Em 18 de julho de 1989 foi editada a Lei nº 7.803, que incluiu um parágrafo único ao art. 2º do Código Florestal então vigente, informando que os limites definidos como áreas de proteção permanente (que haviam sido ampliados pela Lei nº 7.511/86), também se aplicavam às áreas urbanas e deveriam ser observados nos planos diretores municipais.
- Referida legislação infraconstitucional foi revogada com a edição do novo Código Florestal (Lei nº 12.651, de 25 de maio de 2012). A nova lei florestal manteve basicamente a sistemática adotada pela Lei n° 4.771/65 e alterações posteriores, estabelecendo faixas protegidas nas margens de cursos d'água, lagos, reservatórios artificiais, nascentes, dentre outros (artigos 3º, II, e 4º, II, ambos, da Lei nº 12.651/12).
- Verifica-se, portanto, que as Áreas de Preservação Permanente são espaços de proteção impositiva e integral, que não admitem qualquer tipo de exploração. Em outros termos, são áreas destinadas, unicamente, à proteção do meio ambiente. A delimitação do uso de tais terrenos pelo legislador objetivou, portanto, evitar a ocorrência de desequilíbrio irreparável ao ecossistema, mediante proteção dos recursos hídricos, da biodiversidade, da fauna e da flora.
- Ressalto que, com relação à tutela ambiental, se aplica a responsabilidade objetiva, ou seja, não há espaço para a discussão de culpa, bastando a comprovação da atividade e o nexo causal com o resultado danoso, consoante determinação expressa do artigo 4º, inciso VII, c/c artigo 14, § 1º, ambos, da Lei nº 6.938/1981.
- Vale lembrar, ainda, quanto ao cometimento de danos ambientais e ao dever de repará-los, tem-se que as obrigações decorrentes de eventuais prejuízos ou interferências negativas ao meio ambiente são propter rem, possuindo caráter acessório à atividade ou propriedade em que ocorreu a poluição ou degradação. Está claro que o adquirente é responsável pelo passivo ambiental do imóvel adquirido. Caso contrário, a degradação ambiental dificilmente seria reparada, uma vez que bastaria cometer-se a infração e desfazer-se do bem lesado para que o dano ambiental estivesse consolidado e legitimado, sem qualquer ônus reparatório.
- Cabe reconhecer, na realidade, que o simples fato de o novo proprietário/possuidor se omitir no que tange à necessária regularização ambiental é mais do que suficiente para caracterizar o nexo causal. Ademais, sua ação ou omissão, além de não garantir a desejada reparação, permitirá a continuidade do dano ambiental iniciado por outrem. Daí ser inegável sua responsabilidade civil. Neste sentido, o atual Código Florestal (Lei nº 12.651/12) preceitua, em seu artigo 2º, § 2º, que "as obrigações previstas nesta Lei têm natureza real e são transmitidas ao sucessor, de qualquer natureza, no caso de transferência de domínio ou posse do imóvel rural".
- Destaca-se, também, que a Constituição Federal estabelece que "a propriedade atenderá a sua função social" (art. 5º, inciso XXIII) e que o Código Civil assinala que "o direito de propriedade deve ser exercido em consonância com as suas finalidades econômicas e sociais e de modo que sejam preservados, de conformidade com o estabelecido em lei especial, a flora, a fauna, as belezas naturais, o equilíbrio ecológico e o patrimônio histórico e artístico, bem como evitada a poluição do ar e das águas" (artigo 1.228, § 1º, da Lei 10.406/02).
- No caso dos autos, a controvérsia diz respeito em verificar se o apelante é possuidor de imóvel no denominado bairro Beira Rio, consistente em lote no qual houve edificações irregulares de forma clandestina, dentro de área de preservação permanente, sem licença ou aprovação dos órgãos estatais competentes, que interferem e impedem a regeneração natural da flora e fauna.
- Após análise do conjunto probatório, não há dúvidas da existência de edificações às margens do Rio Paraná, dentro da área de preservação permanente e, consequentemente, da ofensa ao meio ambiente. Nesse sentido, detalhou a r. sentença: “a distância da construção à margem do Rio Paraná é de 18,20 metros" (fl.138). Assim, a construção encontra-se dentro do perímetro estabelecido pelo art.20, "a", 5, da Lei n. 4.771/65 como área de preservação permanente "ex lege", disposição repetida, também, pela Resolução Conama n. 303/2002 em seu art. 30, 1, "e"”.
- Saliento, por oportuno, ainda que irregularidades apontadas pelo Ministério Público ficassem caracterizadas nos termos da antiga redação do Código Florestal (Lei 4.771/65, com as alterações da Lei 7.803/89), é certo que o advento do novo Código Florestal (Lei 12.651/12) não alterou substancialmente a matéria, continuando a prever como área mínima de consolidação de uma APP a distância de 200 (duzentos) metros, para os cursos d'água que tenham largura de 200 (duzentos) a 600 (seiscentos) metros de largura (como é o caso do Rio Paraná).
- Cumpre ressaltar que esta regra é aplicável tanto a imóveis localizados em área rural quanto urbana. Assim, irrelevante a discussão se a área em questão é rural ou urbana, já que a metragem a ser observada é a mesma para ambas as situações.
- Também não há que se falar em regularização fundiária, nos termos dos artigos 64 e 65, da Lei nº 12.651/12. Para a ocorrência da regularização fundiária, a área precisa ser caracterizada como urbana consolidada, não estar inserida em área de risco e ter aprovado um projeto específico para esta regularização. Esclareço, neste aspecto, que a localidade em referência não detém os pressupostos necessários para ser caracterizada como área urbana consolidada, nos termos do art. 47, II, da Lei 11.977/2009.
- Importante destacar que, em que pese a constitucionalidade do art. 61-A, da Lei Federal nº 12.651/2012, este só se aplica a imóveis rurais devidamente inscritos no CAR e com uso agrossilvipastoril, de ecoturismo e de turismo rural consolidados, o que não é o caso dos autos.
- Portanto, sob qualquer ótica, resta patente que o apelante ocupa indevidamente área de preservação permanente, o que caracteriza dano ao meio ambiente em razão do óbice à regeneração natural ao local. E não sendo área passível de regularização fundiária ou ambiental, a faixa não edificável a ser considerada é aquela prevista no Código Florestal, ou seja, 200 (duzentos) metros para os cursos d'água que tenham largura de 200 (duzentos) a 600 (seiscentos) metros.
- Recurso não provido.