APELAÇÃO / REMESSA NECESSÁRIA (1728) Nº 0001195-08.2008.4.03.6115
RELATOR: Gab. 11 - DES. FED. ANDRÉ NABARRETE
APELANTE: COMPANHIA AMBIENTAL DO ESTADO DE SAO PAULO, ESTADO DE SAO PAULO, INSTITUTO BRASILEIRO DO MEIO AMBIENTE E DOS RECURSOS NATURAIS RENOVAVEIS, SIND DA INDUSTRIA DA FABRICACAO DO ALCOOL EST S PAULO, SINDICATO DA INDUSTRIA DO ACUCAR NO ESTADO DE SAO PAULO, UNICA - UNIAO DA AGROINDUSTRIA CANAVIEIRA DO ESTADO DE SAOPAULO
Advogado do(a) APELANTE: ANDRE LUIS TUCCI - SP210457
Advogado do(a) APELANTE: DANIELA DUTRA SOARES - SP202531-A
Advogado do(a) APELANTE: RAQUEL CRISTINA MARQUES TOBIAS - SP185529-A
Advogado do(a) APELANTE: CRISTIANO SCORVO CONCEICAO - SP194984-A
APELADO: MINISTERIO PUBLICO FEDERAL - PR/SP, MINISTERIO PUBLICO DA UNIAO, ESTADO DE SAO PAULO
Advogado do(a) APELADO: RAQUEL CRISTINA MARQUES TOBIAS - SP185529-A
OUTROS PARTICIPANTES:
ASSISTENTE: ASSOMOGI - ASSOCIACAO DOS PRODUTORES RURAIS DO VALE DO MOGI
TERCEIRO INTERESSADO: ASSOCIACAO DOS FORNECEDORES DE CANA DE ARARAQUARA
ADVOGADO do(a) ASSISTENTE: ANTONIO CANDIDO DE AZEVEDO SODRE FILHO - SP15467
ADVOGADO do(a) TERCEIRO INTERESSADO: SERGIO RICARDO CAMPOS LEITE - SP164785-A
APELAÇÃO / REMESSA NECESSÁRIA (1728) Nº 0001195-08.2008.4.03.6115 RELATOR: Gab. 11 - DES. FED. ANDRÉ NABARRETE APELANTE: COMPANHIA AMBIENTAL DO ESTADO DE SAO PAULO, ESTADO DE SAO PAULO, INSTITUTO BRASILEIRO DO MEIO AMBIENTE E DOS RECURSOS NATURAIS RENOVAVEIS, SIND DA INDUSTRIA DA FABRICACAO DO ALCOOL EST S PAULO, SINDICATO DA INDUSTRIA DO ACUCAR NO ESTADO DE SAO PAULO, UNICA - UNIAO DA AGROINDUSTRIA CANAVIEIRA DO ESTADO DE SAOPAULO Advogado do(a) APELANTE: ANDRE LUIS TUCCI - SP210457 APELADO: MINISTERIO PUBLICO FEDERAL - PR/SP, MINISTERIO PUBLICO DA UNIAO, ESTADO DE SAO PAULO Advogado do(a) APELADO: RAQUEL CRISTINA MARQUES TOBIAS - SP185529-A OUTROS PARTICIPANTES: ASSISTENTE: ASSOMOGI - ASSOCIACAO DOS PRODUTORES RURAIS DO VALE DO MOGI mcc R E L A T Ó R I O Remessa oficial e apelações da Companhia Ambiental do Estado de São de Paulo - CETESB, da Fazenda do Estado de São Paulo, do Instituto Brasileiro de Meio Ambiente e Recursos Naturais Renováveis – IBAMA e dos SINDICATOS DA INDÚSTRIA DA FABRICAÇÃO DO ÁLCOOL DO ESTADO DE SÃO PAULO - SIFAESP, SINDICATO DA INDÚSTRIA DO AÇÚCAR NO ESTADO DE SÃO PAULO - SÍAESP e UNIÃO DA AGROINDÚSTRIA CANAVIEIRA DO ESTADO DE SÃO PAULO- UNICA contra sentença que julgou procedente em parte ação civil pública ajuizada pelo Ministério Público Federal e Ministério Público do Trabalho para obter a suspensão da queima da palha da cana-de-açúcar na Subseção Judiciária em São Carlos. Eis a parte dispositiva do decisum: Ante o exposto, com fundamento no art. 269, 1, do CPC, julgo parcialmente procedentes os pedidos formulados pelos autores para: a) determinar à CETESB e ao Estado de São Paulo, por meio de sua Secretaria do Estado do Meio Ambiente, mais precisamente da Coordenadoria de Licenciamento Ambiental e de Proteção de Recursos Naturais, que se abstenham de conceder novas autorizações e licenças ambientais para a queima controlada da palha de cana-de-açúcar na área compreendida nesta Subseção de São Carlos/SP, sem a realização de licenciamento ambiental, precedido do devido estudo de impacto ambiental; b) declarar nulas todas as licenças e autorizações já expedidas, sem a realização de licenciamento ambiental, precedido do devido estudo de impacto ambiental, nas áreas atingidas por esta 15 Subseção Judiciária de São Carlos; c) declarar a atribuição subsidiária do IBAMA para efetuar o licenciamento ambiental para as atividades que tenham como objeto a queima da palha de cana-de-açúcar na área compreendida por esta 15a Subseção Judiciária de São Carlos, observado o disposto nos artigos 13 a 16 da Lei Complementar n 140/2011; d) declarar obrigatória a prévia exigência de EIA/RIMA como condição para o licenciamento, devendo o EIA/RIMA ser abrangente e considerar as consequências para a saúde humana, para os remanescentes florestais, para a flora e fauna, bem como a vedação da queima em áreas mecanizáveis; e) condenar os réus Estado de São Paulo e CETESB ao pagamento de danos morais, os quais deverão ser revertidos ao Fundo Federal de Direitos Difusos, arbitrados em R$ 500.000,00 (quinhentos mil reais). Em caso de descumprimento de qualquer das obrigações estipuladas nos itens a, c e d, fixo desde já multa diária no valor de R$ 10.000,00 (dez mil reais), a qual deverá ser revertida ao Fundo de Defesa dos Direitos Difusos. A quantia arbitrada a título de danos morais deverá ser corrigida monetariamente a partir da data desta sentença e acrescida de juros de mora de a data da citação dos réus. Incabível a condenação dos requeridos ao pagamento de honorários advocatícios, nos termos do art. 18 da Lei n° 7.347/85, sistematicamente interpretado, pois não reconheço má-fé por parte deles, já que não se vislumbra a prática de atos que denotem deslealdade processual. (...) Não são devidas custas, em razão do disposto no inciso III do art. 40 da Lei n" 9.289/96. A sentença está sujeita a reexame necessário (CPC, art. 475, 1) Os mencionados sindicatos opuseram embargos de declaração, os quais foram rejeitados (id 102347653 – fls. 84/85). A CETESP apelou (id 102347653 – págs. 87/136) e argumentou: a) a Lei nº 6.939/81 atribuiu aos órgãos integrantes do SISNAMA a competência para o licenciamento ambiental. Na esteira das atribuições outorgadas aos Estados, a apelante foi criada pela Lei Estadual 997/76 e, a partir de 07.08.2009, por força da Lei Estadual 13.542/09, teve sua função ampliada e passou a ser o único ente com tal função, em substituição aos departamentos então existentes, de modo que sua atividade respeita a legalidade e não é dado ao administrador descumprir a lei; b) a competência constitucional para o licenciamento é comum (artigo 23, inciso VI) e, assim, consoante a Resolução CONAMA 237/97, coube aos órgãos ambientais estaduais a fiscalização das atividades desenvolvidas em mais de um município ou unidades de conservação de domínio estadual. A doutrina consagrou a subsidiariedade como princípio central para a distribuição da competência material, de modo que, de regra, é executada pela unidade política inferior e somente em caso de ineficiência ou omissão completada pelo nível superior. Nessa linha, a atividade do IBAMA é supletiva (artigos 15 e 16 da LC 140/2011) e, no caso dos autos, não se justifica, porquanto o licenciamento por esse órgão somente é cabível quando o impacto ambiental ultrapassar o interesse do Estado federado (artigo 10 da Lei nº 6938/81) e, no caso em apreço, abrange apenas São Carlos e os municípios limítrofes; c) o artigo 27 da Lei nº 4771/65 veda o uso do fogo em florestas e outras formas de vegetação, porém o seu parágrafo único o autoriza, conforme as particularidades locais ou regionais, respeitada permissão do poder público, nos termos do seu regulamento, o Decreto 2661/98, de modo que a queima da palha da cana-de-açúcar não pode ser tida por ilegal. O Estado de São Paulo editou a Lei nº 11.241/02, que previu a eliminação gradativa dessa prática, em consonância com a Política Nacional de Meio Ambiente e com o artigo 225 da CF; e) a exigência de apresentação de EIA/RIMA, no momento da solicitação de autorização para a queima, é absolutamente inadequada, haja vista que os impactos relacionados às áreas agrícolas de um empreendimento sucroalcooleiro são contemplados nos estudos apresentados por ocasião do licenciamento ambiental do próprio empreendimento, bem como porque existe todo um sistema planejado para as especificidades dessa atividade, associado a uma política governamental efetiva de redução gradativa dessa prática; f) descabida a fixação de danos morais, porquanto a atividade é praticada mediante criterioso controle, de maneira que não se caracteriza o nexo de causalidade entre a conduta da administração e o dano, além de penalizar a coletividade e o erário. Pede, a final, a concessão do efeito suspensivo e a improcedência da ação. No recurso id 102347653 e 102347654 o Estado de São Paulo sustenta que: a) deve ser concedido efeito suspensivo ao recurso, nos termos dos artigos 14 da Lei nº 7347/85 e 558 do CPC/73; b) incompetência absoluta do juízo a quo, porque a atribuição é do STF, dada a existência de conflito federativo entre a União e Estado-membro (art. 102, I “f”, CF), porquanto o MPF/MPT pretendem tolher a competência material do Estado de São Paulo para a concessão de licenças ambientais, segundo os procedimentos definidos na legislação estadual. Ainda que assim não se entenda, a competência é do foro da Capital, a teor do artigo 93, inciso II, do CDC, que estabelece expressamente que, para a hipótese de dano regional, a competência é do foro da capital do Estado, hipótese de atribuição absoluta; c) a sentença é extra e ultra petita, na medida em que a inicial não contempla pedido para que o Estado de São Paulo realize licenciamento por meio de EIA/RIMA para conceder autorizações de queima de palha da cana, conforme determinou, além de impor sua vedação em áreas mecanizáveis, que igualmente extrapola a pretensão; d) a paralisação abrupta do sistema de colheita produzirá lesão a valores econômicos e sociais que superam o impacto ao meio ambiente e acarreta dano irreparável para a colheita de 2013 e as seguintes; e) a medida coloca em risco de morte os cortadores de cana, pois um cigarro mal apagado pode causar um incêndio de grandes e trágicas proporções na cana não despalhada por meio do fogo controlado. Ademais, a limpeza das folhas secas evita que os trabalhadores se lesionem e favorece sua produtividade; f) a produtividade do trabalho com a colheita da cana crua manual cai muito (em média de 6-7 toneladas por dia por empregado para 1,5-3,0 toneladas por dia por empregado), o que inviabiliza a adoção dessa prática, ou seja, a colheita da cana crua só é rentável se colhida mecanicamente. Assim, a proibição requerida eleva o preço do produto, o que prejudica a economia regional; g) o projeto ambiental estratégico etanol verde prevê a antecipação do prazo para eliminação da queima da palha de cana-de-açúcar de 2021 para 2014 nas áreas mecanizáveis e de 2031 para 2017 nas não mecanizáveis; h) "com a obrigatoriedade de utilização EIA/RIMA para liberação da queima da cana-de-açúcar dificulta-se e atrasa a colheita e desta forma obriga-se a mecanizar a área colhida, tornando tal ato inviável economicamente”; i) a economia pública será desfalcada em decorrência da diminuição da arrecadação do ICMS incidente sobre o álcool e o açúcar, bem como os cortadores de cana perderão seus empregos, com agravamento dos problemas sociais; j) "o parágrafo único do artigo 27 da Lei Federal 4.771/98, então aplicável à época do aforamento da demanda, correspondente ao atual art. 38 da Lei Federal 12.651/2012 Novo Código Florestal - é claro ao dizer que, conforme as peculiaridades locais ou regionais, o uso de fogo poderá ser autorizado em ato do Poder Público". Assim, nos termos do Decreto 2.661/98, a prática é lícita, mas controlada; k) a Lei Estadual n. 10.547/00 foi revogada pela de n. 11.241/2002, que previu condições para a queima que se harmonizam com a legislação federal; l) nos termos da Lei n. 6.938/81, regulamentada pela Resolução CONAMA n. 237, o licenciamento ambiental segue o critério da predominância do interesse do ente federal, estadual ou municipal, em cumprimento ao artigo n. 23, inciso VI, da CF, de forma que o órgão licenciador será definido com base na amplitude dos impactos ambientais diretos. No caso da cana, cabe às secretarias estaduais, conforme o próprio IBAMA reconhece, e, no caso paulista, há inclusive controle informatizado; m) o EIA/RIMA é desnecessário e impraticável. A Carta Magna somente exige estudo de impacto ambiental quando houver significativa degradação (art. 225, parágrafo 1, inciso IV) e possibilita a criação de outros meios de defesa do ambiente (art. 170, inciso VI, e 225, parágrafo 1, incisos IV e V) se não se verificar essa situação. Assim, o Estado de São Paulo, na forma da Resolução CONAMA n. 237/97, definiu um procedimento específico nas Leis n. 10.547/00 e 11.241/02, com vista à peculiaridade da atividade canavieira; n) o STJ e esta corte regional têm suspendido as liminares e antecipações de tutela que proíbem a queima; o) os direitos devem ser harmonizados, de modo que não haja sobreposição, conforme estabeleceu o legislador constitucional nos artigos 225, caput, 170, parágrafos e incisos, 7, incisos XXI e XXVI (direito dos trabalhadores), 200, inciso VIII, (proteção do trabalho), 23, incisos VI, VII, VIII e parágrafos (competência comum), 24, incisos V, VI e VIII (competência concorrente). As leis paulistas estão amparadas por essas regras e estabelecem a gradativa eliminação das queimadas, de forma que não houve omissão do poder público; p) é descabida a condenação ao pagamento de dano moral coletivo, porquanto é lícita e permitida a atividade de queima controlada da palha, não que se falar em abalo psíquico de uma estrutura coletiva, até porque é despersonalizada. No caso dos autos haveria um dano social, não moral coletivo, como foi pleiteado. Ademais, o Estado tem agido de boa-fé e pautado pela confiança nas normas produzidas pela União Federal, cenário que não condiz com a imposição da mencionada pena. Por fim, não há razão para que o pagamento seja vertido para um fundo federal, se o dano foi reconhecido regional; q) a multa cominatória aplicada é desnecessária, abusiva e atenta contra o princípio da independência e harmonia dos poderes, além do interesse da própria sociedade, que terá de arcar com o pagamento. Ademais, eventual descumprimento jamais seria doloso, mas decorrente da exiguidade do prazo. Pede, em conclusão, verbis: a) seja reconhecida a incompetência absoluta do Juízo 'a quo", com a consequente nulidade dos atos decisórios, remetendo-se o processo ao Juízo competente (STF, dado o conflito federativo, ou foro da capital do Estado, em vista do impacto/dano regional), ou, subsidiariamente, seja reconhecido o vício de incongruência externa (não adstrição ao pedido), com a correlata decretação da nulidade da sentença; ou b) alternativamente ao item anterior, seja reformada a r. Sentença, de modo que sejam julgados integralmente improcedentes os pedidos veiculados pela petição inicial; c) subsidiariamente aos itens anteriores, na remota hipótese de manutenção da r. Sentença, que seja expressamente estabelecida a eficácia ‘pro futuro’ da decisão final, de modo que esta somente passe a produzir efeitos depois do decurso de ao menos 5 a 8 anos após o trânsito em julgado, a fim de que seja resguardada a produção em pleno andamento (cujo ciclo somente se renova a cada período de cinco a oito anos, em média). Apelação do IBAMA (id 102347654), na qual defende que: a) o decisum declarou a atribuição subsidiária do IBAMA para efetuar o licenciamento ambiental para as atividades que tenham como objeto a queima da palha de cana-de-açúcar na área compreendida pela Subseção Judiciária em São Carlos, mas descabe sua atuação supletiva, dado que a CETESB não necessita de apoio técnico, a teor do artigo 15 da LC nº 140/2011; b) o EIA/RIMA é prescindível para as atividades de queima de palha da cana, consoante a discricionariedade atribuída ao órgão licenciador pelo artigo 3º, parágrafo único, da Res. CONAMA 237/1997 e não cabe ao Judiciário imiscuir-se na questão. O SINDICATO DA INDÚSTRIA DA FABRICAÇÃO DO ÁLCOOL DO ESTADO DESÃO PAULO - SIFAESP, SINDICATO DA INDÚSTRIA DO AÇÚCAR NO ESTADO DE SÃO PAULO - SÍAESP e a UNIÃO DA AGROINDÚSTRIA CANAVIEIRA DO ESTADO DE SÃO PAULO- UNICA, na qualidade de assistentes do corréu ESTADO DE SÃO PAULO, também interpuseram apelação, na qual sustentam: a) devem ser suspensos os efeitos da sentença; b) nulidade da sentença, nos termos do artigo 460 do CPC/73, por ter condenado o Estado de São Paulo a conceder licença para queima somente com base em EIA/RIMA, o que não foi requerido na inicial, cujo ajuizamento ocorreu em 2008. Somente a partir da edição da LC 140/2011 é que o Parquet passou a fazer pedidos nas ações posteriormente ajuizadas nesse sentido; c) a Justiça Federal é incompetente para julgar fatos ocorridos após o advento do novo Código Florestal, Lei nº 12.651/2012, cujo artigo 38, inciso I, reiterou e explicitou a atribuição do órgão estadual para autorizar a utilização do fogo, de modo que o IBAMA é parte ilegítima e a competência estadual; d) existência de fato novo, a ensejar a aplicação do artigo 462 do CPC/73, dado que, em caso análogo na Ação Civil Pública n.° 0000141-77.2012.4.03.6111, em trâmite perante a 1.a Vara Federal da Subseção Judiciária em Marília, o MPF, calcado em parecer de sua área técnica, considerou que as autorizações para a queima controlada são válidas e requereu a extinção do feito por perda superveniente do interesse; e) a Lei 11.241/2002 já considerou a existência dos impactos e das medidas mitigadoras até a final extinção do método, de forma que as autorizações concedidas com base nela são legítimas; f) o juízo negou a aplicação da Lei Estadual n.° 11.241/2002 ao caso concreto com o argumento de que não contemplara o EIA/RIMA como necessário à autorização da queima da palha da cana-de-açúcar, o que tornaria ilegais as autorizações concedidas, conclusão que, necessariamente, implica declarar sua inconstitucionalidade, o que é inviável em sede da presente demanda; g) a licença é o ato final de um procedimento de licenciamento, que avalia o impacto ambiental de atividades ou obras, com fundamento na Lei nº 6.938/81. Diferentemente, autorização é ato administrativo vinculado à lei, aplicável à utilização do fogo na colheita por se caracterizar como uma prática de agricultura, nos termos da Lei nº 11.241/2002; h) as agroindústrias produtoras de açúcar e álcool do Estado de São Paulo submetem-se ao licenciamento para sua atividade, conforme a Resolução nº 121/2010 da Secretaria de Meio Ambiente paulista, além de respeitarem o zoneamento ambiental previsto na Res. Conjunta SMA/SAA nº 4/2008 e Res. SMA 88, o que demonstra não haver omissão estadual; i) o decisum ignorou as normas aplicáveis: Código Florestal (Lei nº 12.651/2012, art. 38, I), Decreto nº 2.661/88 (arts. 2º e 16º), Leis paulistas nºs 10.547/2000 e 11.241/2002. O parágrafo segundo do artigo 38 do Código Florestal vigente explicita que o uso do fogo é cabível desde que autorizado, porquanto exclui as populações tradicionais e indígenas da proibição; j) a competência estadual para legislar sobre meio ambiente tem supedâneo nos artigos 23, inciso VI, (comum) e 24, inciso VI, da CF (concorrente), de forma que as Leis paulistas nºs 10.547/2000 e 11.241/2002 são constitucionais e foram feitas com cuidado e responsabilidade. Cabe, pois, à CETESB autorizar a prática da queima controlada; k) a Lei nº 11.241/2002 resultou do Projeto de Lei nº 380/2001 e houve previsão de gradativa e completa eliminação do uso do fogo como método despalhador; l) o juízo ignorou que a prática já foi eliminada em 80% da área mecanizável e deve desaparecer até 2014; m) a concessão da autorização ora questionada demanda diversas etapas, pagamento de custo de análise e atendimento a exigências, além do monitoramento da umidade relativa do ar; n) a CETESB monitora e fiscaliza a queima por satélite; o) foram criadas medidas de proteção da fauna (Decreto nº 47.700/2003), de modo a impedir a propagação do fogo e proporcionar rotas de fuga para os animais; p) o protocolo agroambiental de 2007 antecipou o cronograma de eliminação da queima de 2021 para 2014 nas áreas mecanizáveis e de 2031 para 2017 nas não mecanizáveis e os dados demonstram que é uma realidade; q) em 22.04.2013, foi realizada audiência pública no STF presidida pelo Min. Luiz Fux, ocasião em que foi traçado um perfil abrangente da questão e restou claro o compromisso e os esforços para a extinção dessa prática. Contrarrazões do Ministério Público Federal (id 102347269, fls. 21/27) e do MPT (id 102347269 – fl. 32). Nesta corte, a Procuradoria Regional da República apresentou parecer (id 1023447269, fls. 36/60). Manifestou-se no sentido de que seja indeferido o efeito suspensivo aos apelos, rejeitadas as preliminares e, no mérito, desprovido, porquanto a: “atividade da queima da palha de cana atinge de modo significativo o meio ambiente e a saúde humana, sendo que os impactos negativos da referida atividade só podem ser claramente reconhecidos por meio da realização prévia de estudos a respeito da questão. Não pode a atividade econômica ser privilegiada em detrimento do direito difuso ao bem-estar geral da população, em nível regional e até nacional.” Às fls. 63/74 do id 102347269, o SINDICATO DA INDÚSTRIA DA FABRICAÇÃO DO ÁLCOOL DO ESTADO DESÃO PAULO - SIFAESP, SINDICATO DA INDÚSTRIA DO AÇÚCAR NO ESTADO DE SÃOPAULO - SIAESP O UNIÃO DA AGROINDÚSTRIA CANAV1EIRA DO ESTADO DE SÃO PAULO- ÚNICA requereram a desistência do recurso que interpuseram e a exclusão dos autos na qualidade de assistentes do Estado de São Paulo. Outrossim, à fl. 89 do referido id a ASSOMOGI – ASSOCIAÇÃO DOS PRODUTORES DE CANA DO VALE DO MOGI E REGIÃO também desistiu de sua intervenção. Às fls. 92/95, o Ministério Público Federal se manifestou no sentido de que fosse homologada a desistência do recurso, porém indeferida a exclusão dos assistentes, porque: “ainda que não seja parte, a partir do momento em que pleiteia seu ingresso na demanda, e o tem deferido, submete-se a algumas consequências, como a sujeição aos mesmos ônus processuais que o assistido (art. 52, caput, CPC) e submissão à justiça da decisão (art. 55 do CPC), não podendo simplesmente requerer sua exclusão do feito.” O Estado de São Paulo deu-se por ciente dos pedidos dos assistentes (id 102347269). O Ministério Público do Trabalho ratificou a manifestação do MPF, no sentido da homologação da desistência do apelo e do indeferimento da exclusão dos assistentes (id 102347269, fls. 110/111). A ASSOMOGI reiterou o pedido de desistência de sua atuação como assistente simples (fls. 118/119, id 102347269), bem como os sindicatos mencionados (fls. 121/122, id 102347269). À vista de que no recurso da Fazenda do Estado de São Paulo houve menção ao projeto ambiental estratégico etanol verde, que previa a eliminação da queima da palha da cana-de-açúcar de 2021 para 2014 nas áreas mecanizáveis e de 2031 para 2017 nas não mecanizáveis, determinei que as partes se manifestassem sobre a sua situação e o interesse processual. Em resposta, sobrevieram manifestações da ASSOMOGI (fl. 157, id 102347269), dos sindicatos (fls. 159/163, id 102347269), do Estado de São Paulo (fl. 165, id 102347269), CETESB (fls. 169/174) e do Ministério Público Federal (fls. 176/179, id 102347269), que requereu o regular andamento do feito, à falta de cumprimento dos prazos aludidos e de que o referido protocolo é mera manifestação de intenção, não cogente, que foi reiterada pelo Ministério Público do Trabalho (fl. 186, id 102347269). É o relatório.
Advogado do(a) APELANTE: DANIELA DUTRA SOARES - SP202531-A
Advogado do(a) APELANTE: RAQUEL CRISTINA MARQUES TOBIAS - SP185529-A
Advogado do(a) APELANTE: CRISTIANO SCORVO CONCEICAO - SP194984-A
TERCEIRO INTERESSADO: ASSOCIACAO DOS FORNECEDORES DE CANA DE ARARAQUARA
ADVOGADO do(a) ASSISTENTE: ANTONIO CANDIDO DE AZEVEDO SODRE FILHO - SP15467
ADVOGADO do(a) TERCEIRO INTERESSADO: SERGIO RICARDO CAMPOS LEITE - SP164785-A
APELAÇÃO / REMESSA NECESSÁRIA (1728) Nº 0001195-08.2008.4.03.6115 RELATOR: Gab. 11 - DES. FED. ANDRÉ NABARRETE APELANTE: COMPANHIA AMBIENTAL DO ESTADO DE SAO PAULO, ESTADO DE SAO PAULO, INSTITUTO BRASILEIRO DO MEIO AMBIENTE E DOS RECURSOS NATURAIS RENOVAVEIS, SIND DA INDUSTRIA DA FABRICACAO DO ALCOOL EST S PAULO, SINDICATO DA INDUSTRIA DO ACUCAR NO ESTADO DE SAO PAULO, UNICA - UNIAO DA AGROINDUSTRIA CANAVIEIRA DO ESTADO DE SAOPAULO Advogado do(a) APELANTE: ANDRE LUIS TUCCI - SP210457 APELADO: MINISTERIO PUBLICO FEDERAL - PR/SP, MINISTERIO PUBLICO DA UNIAO, ESTADO DE SAO PAULO Advogado do(a) APELADO: RAQUEL CRISTINA MARQUES TOBIAS - SP185529-A OUTROS PARTICIPANTES: ASSISTENTE: ASSOMOGI - ASSOCIACAO DOS PRODUTORES RURAIS DO VALE DO MOGI ADVOGADO do(a) ASSISTENTE: ANTONIO CANDIDO DE AZEVEDO SODRE FILHO - SP15467 V O T O I. FATOS, PEDIDO E PROCESSAMENTO Ação civil pública ajuizada pelo Ministério Público Federal e pelo Ministério Público do Trabalho em 2008 contra o Estado de São Paulo, a CETESB – Companhia Ambiental do Estado de São Paulo e o IBAMA na Subseção Judiciária em São Carlos. Expôs o crescimento da cultura canavieira na região em virtude da crise do petróleo e destacou vários estudos sobre as consequências danosas para a saúde da população, ao meio ambiente, à fauna, flora e à atmosfera em virtude da utilização do fogo para a despalha da cana. Em decorrência, instaurou o inquérito civil público nº 1.34.023.000205/2007-78, no qual apurou que o IBAMA não realiza autorização ou licenciamento para essa prática na área e que é a CETESB a responsável pelas autorizações concedidas. Sustentou a ilegalidade da não exigência de estudo de impacto ambiental, porquanto a atividade degrada o meio ambiente, de modo que, a partir do artigo 225 da CF, a leitura do parágrafo único do artigo 27 do Código Florestal (Lei nº4.771/65) deve ser feita de modo consonante. Assim, ao instituir e autorizar a chamada queima controlada, o Decreto nº 2.661/98 é inconstitucional por não exigir EIA/RIMA, instrumento obrigatório, conforme, inclusive, exige a Lei de Política Ambiental (nº 6.938/81) e a Resolução nº 237/97 do CONAMA. Igualmente, aduziu a invalidade das Leis paulistas nºs 10.547/00 e 11.241/02, que postergaram a extinção da prática questionada para 2031, e que o estudo deve ser feito pelo IBAMA. Ao final, pediu: b) o julgamento de procedência dos pedidos, de modo a determinar: 1 -À CETESB e ao ESTADO DE SÃO PAULO, através de sua Secretaria de Estado do Meio Ambiente, mais precisamente à Coordenadoria de Licenciamento Ambiental e de Proteção de Recursos Naturais, que se abstenham de conceder novas autorizações e licenças ambientais, tendo como objeto autorização para a queima controlada da palha de cana-de-açúcar na área compreendida por esta Subseção; 2 - que sejam declaradas nulas todas as licenças e autorizações já expedidas pelas partes acima mencionadas tendo como objeto autorização para a queima controlada da palha de cana-de-açúcar da área compreendida por esta Subseção, em razão da ausência de estudo de impacto ambiental prévio, de licenciamento com base nas normas válidas e/ou em razão da usurpação da atribuição federal na questão; 3 - Ao IBAMA - Instituto Brasileiro de Meio Ambiente e Recursos Naturais Renováveis, que reconheça a sua atribuição exclusiva para efetuar o licenciamento ambiental quando a atividade em análise tiver como objeto licença ambiental para a queima da palha de cana-de-açúcar da área compreendida por esta Subseção, seguindo-se os trâmites da legislação nacional pertinente, mormente a Lei n.° 6.938/81 e a Resolução n.° 237/97, do CONAMA; 4 - Caso não seja acatado o pedido anterior, ou seja, não se reconheça a atribuição exclusiva do IBAMA, que se determine à referida autarquia federal, de forma alternativa, a assunção imediata da atividade de licenciamento da queima da palha de cana-de-açúcar no exercício de sua competência supletiva, haja vista a omissão contumaz da CETESB e do ESTADO DE SÃO PAULO no cumprimento da Lei n.° 6.938/81 e da Resolução n.° 237/97, do CONAMA, melhor dizendo, na exigência do licenciamento devido e de prévio estudo de impacto ambiental; 5 - Caso haja pedido de licenciamento da referida atividade, que o IBAMA sempre exija EIA/RIMA como condição para o licenciamento. Esse EIA/RIMA deverá ser abrangente, levando-se em consideração as consequências para a saúde humana, para a saúde do trabalhador, para áreas de preservação permanente, para os remanescentes florestais, para a flora e fauna, bem como as mudanças na atmosfera relacionadas ao efeito estufa e ao consequente aquecimento global; 6 - Ao IBAMA, que realize o cadastramento de todas a propriedades rurais ocupadas com a cultura canavieira, verificando se estão sendo cumpridas as prescrições deferidas pelo Juízo. Para tanto, poderá ser facultado a ele a realização de convênio com a Polícia Ambiental da região; 7 - Em caso de descumprimento da medida judicial em qualquer de suas circunstâncias, requer desde já a imposição de multa diária em valores a serem determinados segundo o prudente arbítrio judicial, mas não inferiores a R$ 10.000,00 (dez mil reais); 8 - Sejam os réus condenados a pagarem danos morais em consequência dos danos ambientais potenciais e efetivos oriundos da autorização ilegal da queima da palha de cana-de-açúcar, a serem arbitrados de maneira prudente por Vossa Excelência e que esses valores sejam revertidos ao Fundo Federal de Direitos Difusos. Determinou-se que os réus se manifestassem sobre o pedido em 72 horas (art. 2º da Lei nº 8.437/92) e, concomitantemente, fossem citados. O Sindicato da Indústria da Fabricação do Álcool do Estado de São Paulo – SIFAESP, o Sindicato do Açúcar no Estado de São Paulo – SIAESP e a União da Agroindústria Canavieira do Estado de São Paulo – ÚNICA e Associação dos Produtores de Cana do Vale do Mogi e Região – ASSOMOGI requereram o ingresso na qualidade de assistentes litisconsorciais do Estado de São Paulo (id 1023449395, fls. 168/188). O pleito foi deferido em parte, a fim de admitir que ingressassem como assistentes simples (id 102347697, fl. 88/89). Por meio da decisão id 102349396 (fls. 34/53) foi deferida a antecipação da tutela para suspender todas as licenças para a queima concedidas e que a CETESB e o Estado de São Paulo se abstivessem de novas concessões naquela Subseção, além de determinar ao IBAMA a efetiva fiscalização, sob pena de multa diária de dez mil reais. Foram interpostos agravos de instrumento pelo IBAMA, Estado de São Paulo, Associação dos Produtores de Cana do Vale do Mogi e Região – ASSOMOGI, do Sindicato da Indústria da Fabricação do Álcool do Estado de São Paulo – SIFAESP e outros, além de pedido de suspensão de tutela antecipada ao Presidente desta corte, que foi deferido em parte. Todos esses recursos já foram definitivamente julgados. Após as contestações, as partes não manifestaram interesse em produzir provas, de modo que foi proferida a sentença cujo dispositivo foi anteriormente reproduzido. II. DO PEDIDO DE DESISTÊNCIA DO RECURSO E EXCLUSÃO DA LIDE O SINDICATO DA INDÚSTRIA DA FABRICAÇÃO DO ÁLCOOL DO ESTADO DESÃO PAULO - SIFAESP, SINDICATO DA INDÚSTRIA DO AÇÚCAR NO ESTADO DE SÃOPAULO - SIAESP O UNIÃO DA AGROINDÚSTRIA CANAV1EIRA DO ESTADO DE SÃO PAULO- ÚNICA requereram a desistência do recurso que interpuseram e a exclusão dos autos na qualidade de assistentes do Estado de São Paulo. Outrossim, à fl. 89 do referido id a ASSOMOGI – ASSOCIAÇÃO DOS PRODUTORES DE CANA DO VALE DO MOGI E REGIÃO também desistiu de sua intervenção. Primeiramente, homologo a desistência do apelo requerida pelos referidos sindicatos, nos termos do artigo 501/73, vigente à época (artigo 998 do CPC vigente). Por outro lado, indefiro a requerida exclusão do feito pleiteada pelos sindicatos e pela ASSOMOGI. Foram todos admitidos como assistentes simples. Assim, não obstante não sejam propriamente partes, submetem-se aos ônus processuais (artigo 52, caput, CPC/73) e não podem discutir posteriormente a justiça da decisão (artigo 55, CPC/73), bem como à vista da discordância do autor (id 102347269, fls. 92/95). Descabida, a esta altura, portanto, a exclusão. III. EFEITO SUSPENSIVO AOS RECURSOS Prejudicados os pedidos de concessão de efeito suspensivo aos apelos, à vista do julgamento dos recursos. IV. PRELIMINARES IV. 1. Incompetência A Fazenda do Estado de São Paulo invocou incompetência absoluta do juízo a quo, porque a atribuição seria do STF, dada a existência de conflito federativo entre a União e Estado-membro (art. 102, I “f”, CF), porquanto o MPF e o MPT pretendem tolher a competência material do Estado de São Paulo para a concessão de licenças ambientais, segundo os procedimentos definidos na legislação estadual. Aduziu que, ainda que assim não se entenda, a competência é do foro da Capital, a teor do artigo 93, inciso II, do CDC, que estabelece expressamente que para a hipótese de dano regional a atribuição é do foro da Capital do Estado. A presente ação civil pública defende que os órgãos estaduais responsáveis não estão agindo satisfatoriamente na implementação e fiscalização de medidas de proteção ao meio ambiente quanto à queima da palha de cana-de-açúcar, à luz da legislação existente e considerada a competência comum para a proteção ambiental assegurada no ad. 23, VI, da Constituição. Não foi evidenciada nos autos a existência de conflito entre o IBAMA e o Estado de São Paulo. Ao contrário, ambos sustentam a legalidade das autorizações e pugnam pela improcedência dos pedidos. Ademais, cabe destacar que o ora apelante apenas reiterou questão que, por ocasião do julgamento do Pedido de Suspensão de Tutela nº 0039440-03.2008.4.03.0000 que interpôs incidentalmente neste feito, o Desembargador Federal Fábio Prieto suscitou na sessão do dia 26/07/2010. Todavia, naquela sessão, o colegiado não a acolheu, conforme inclusive foi reafirmado no julgamento dos embargos de declaração que opôs (j. em 18/08/2011). Por fim, tampouco prospera a alegação de incompetência por aplicação subsidiária do artigo 93, inciso II, do CDC. O artigo 2º da Lei nº 7347/85 estabelece o ajuizamento no foro em que ocorrer o dano, no caso a Subseção Judiciária em São Carlos, e o artigo 16 da Lei nº 7347/85 é claro ao dispor que a sentença civil fará coisa julgada erga omnes, nos limites da competência territorial do órgão prolator. IV.2. Nulidade da Sentença O Estado de São Paulo alega que a sentença é extra e ultra petita, na medida em que a inicial não contempla pleito para que o Estado de São Paulo realize licenciamento por meio de EIA/RIMA para conceder autorizações de queima de palha da cana, conforme determinou, além de impor sua vedação em áreas mecanizáveis, que igualmente extrapola a pretensão. Não se configuram os alegados vícios, porque o magistrado não desbordou do pedido inicial. A pretensão que norteia toda a presente ação é de reconhecimento de que o prévio estudo de impacto ambiental para o deferimento de queima de palha de cana-de-acúcar é condição indispensável para a prática. Portanto, a anulação das autorizações concedidas em desacordo e a declaração de obrigatoriedade da exigência de EIA/RIMA são absolutamente harmônicas e condizentes. Igualmente, a menção à vedação em áreas mecanizáveis apenas reproduz e explicita o limite legal em que a prática da queima é aceitável, considerado que a regra (artigo 38 do Código Florestal) é sua expressa proibição, salvo nos locais que, por suas peculiaridades, seja eventualmente justificada (inciso I). V. MÉRITO Discute-se a prática da queima da palha da cana-de-açúcar, seus efeitos nocivos à saúde, fauna, flora, o agravamento do efeito estufa, a inoperância e a complacência do poder público em lidar com a questão e a necessidade do estudo de impacto ambiental prévio, à luz do ornamento jurídico pátrio. V.1. Queimadas: origem e consequências Oficialmente, foi Martim Affonso de Souza que em 1532 trouxe a primeira muda de cana ao Brasil e iniciou seu cultivo na Capitania de São Vicente. Lá, ele próprio construiu o primeiro engenho de açúcar. Mas foi no Nordeste, principalmente nas Capitanias de Pernambuco e da Bahia, que essas unidades industriais rudimentares se multiplicaram. Nosso país chegou a dominar o comércio mundial do produto, que, no entanto, ao longo do tempo, passou por ciclos de contração. Atualmente, apesar das dificuldades e da globalização, a indústria açucareira brasileira continua em expansão. Sua produção no final do milênio chegou a 300.000.000 de toneladas de cana moída/ano em pouco mais de 300 unidades produtoras, 17 milhões de toneladas de açúcar e 13 bilhões de litros de álcool. Nesse cenário, o Estado de São Paulo se destaca: O Estado de São Paulo, principal produtor de cana-de-açúcar no Brasil, é responsável por 60% da produção. Em levantamento feito por Olivette et al. (2010), constatou-se que a área cultivada com cana-de-açúcar alcançou 5,497 milhões de hectares, ou 26,8% do total ocupado no estado. (Queimada na colheita de cana-de-açúcar: impactos ambientais, sociais e econômicos / Carlos Cesar Ronquim. – Campinas: Embrapa Monitoramento por Satélite, 2010 45 p.: il. Embrapa Monitoramento por Satélite. Documentos, 77. ISSN 0103-78110) No Brasil, desde seus primórdios, o cultivo da cana-de-açúcar associou-se ao uso do fogo, não apenas para a despalha na colheita, mas para a própria abertura das lavouras. O historiador Sérgio Buarque de Holanda já abordou o problema no livro Raízes do Brasil: "Mostra-se neste trabalho como o recurso às queimadas deve parecer aos colonos estabelecidos em mata virgem de uma tão potente necessidade que não lhes ocorre, sequer, a lembrança de outros métodos de desbravamento. Parece-lhes que a produtividade do solo desbravado e destocado sem auxílio do fogo não é tão grande que compense o trabalho gasto em seu arroteio, tanto mais quanto são quase sempre mínimas as perspectivas de mercado próximo para a madeira cortada.(pg 67) Aos índios tomaram ainda instrumentos de caça e pesca, embarcações de casca ou tronco escavado, que singravam os rios e as águas do litoral, o modo de cultivar a ferra ateando primeiramente aos matos. "(26ª ed., Cia da Letras, pág. 47) A utilização das queimadas persiste, agora mais restrita ao momento da colheita, para a qual se alega que possibilita maior produtividade e que “protege” os trabalhadores de incêndios acidentais. Por outro lado, a lista de efeitos nocivos inclui malefícios à saúde das pessoas que vivem na região e dos próprios cortadores, à fauna, à flora e o agravamento do efeito estufa. O Ministério Público Federal mencionou na inicial diversos estudos sobre cada um dos referidos aspectos, os quais não foram impugnados ou contestados pelos réus. Acresço trabalho da prestigiosa EMBRAPA intitulado: “Queimada na colheita da cana-de-açúcar: impactos ambientais, sociais e econômicos”, de 2010, que aborda o problema: Queima e a emissão de gases que intensificam o aquecimento global Segundo o Intergovernmental Panel on Climate Change (IPCC) (IPCC, 1995), os resíduos da cana-de-açúcar representam cerca de 11% da produção mundial de resíduos agrícolas, e a queima desses resíduos é responsável por uma liberação substancial de gases de efeito estufa (GEEs). No Brasil, um levantamento realizado por Lima et al. (1999) comprovou que a cana-de-açúcar é responsável por cerca de 98% das emissões de gases provenientes da queima de resíduos agrícolas. A queimada do canavial libera para a atmosfera grandes concentrações de gases como dióxido de carbono (CO2), óxido nitroso (N2O) e metano (CH4), o que aumenta o efeito estufa e constitui um dos principais problemas ambientais atuais. Emissão de compostos nitrogenados pela queima A queima da cana emite certas quantidades de compostos nitrogenados com atividade química e biológica e tem potencial para modificar as propriedades físicas do ambiente ou da biota. O nitrogênio ativo (NO e NO2) é responsável por provocar problemas ambientais locais e regionais, como a chuva ácida e a contaminação de águas, e ainda tem grande potencial para afetar a biodiversidade de florestas naturais. Muitas vezes os gases de nitrogênio ativo se depositarão a centenas de quilômetros de distância do local onde foram formados (CARDOSO et al., 2008). A queima da palha de cana emite, por ano, algo em torno de 46 mil toneladas de nitrogênio ativo para a atmosfera só no Estado de São Paulo (MACHADO et al., 2008). Os efeitos são muito danosos ao meio ambiente. Espécies de plantas e micro-organismos que absorvem o nitrogênio mais rápido podem proliferar-se e tomar o lugar de outros, destruindo o equilíbrio do ecossistema e sua biodiversidade. Nos ambientes aquáticos, o efeito é imediato, com o crescimento exacerbado da população de algas (eutrofização), que libera toxinas e consome quase todo o oxigênio da água (CARDOSO et al., 2008). O dióxido de nitrogênio (NO2) presente na atmosfera é transformado em ácido nítrico e forma a chuva ácida, que modifica o pH do solo e das águas. O N2O tem também a propriedade de catalisar reações atmosféricas em presença de luz solar, as quais formam, entre outros gases, o ozônio (O3). O ozônio é prejudicial quando formado na baixa atmosfera, região onde vivemos. Ele é altamente tóxico a animais e plantas e ataca diversos materiais como borracha e pigmentos. A concentração de ozônio gerado em região produtora de cana-de-açúcar mostra que os valores alcançados na época de safra da cana são próximos aos de um grande centro poluído como a cidade de São Paulo. Perda da biodiversidade com as queimadas A queima da palhada da cana-de-açúcar acarreta a degradação do meio ambiente e elimina um número incalculável de espécies da fauna nativa, desde insetos até mamíferos, podendo também atingir a flora nativa. Flora Os canaviais geralmente não são plantados em áreas distantes, isoladas de outras culturas ou vegetações. As áreas se estendem até os limites de florestas, unidades de conservação, áreas de proteção ambiental, áreas de preservação permanente e áreas de plantio de outras culturas. Como as queimadas são efetuadas durante a estiagem, não raro as vegetações limítrofes são atingidas, direta ou indiretamente, e sofrem danos irreparáveis ou de difícil reparação. As queimadas também podem atingir áreas de preservação permanente (APPs) localizadas às margens de rios e córregos. O dano às matas ciliares atinge diretamente o potencial hídrico de toda a microbacia, já que com a diminuição desse tipo de vegetação o volume das águas nos cursos d'água é alterado em função da menor infiltração de água no solo e do maior escorrimento superficial, o que potencializa a ocorrência de processos erosivos e o carreamento de material sólido para os cursos dos rios. Além dos danos causados diretamente pelo fogo na vegetação natural, a alta temperatura alcançada na queimada pode destruir a vegetação da borda e abrir espaço para a penetração de gramíneas, que se alastram pela área protegida e tornam o ambiente mais propício ao fogo, pois essa vegetação torna-se seca durante o período de escassez de chuvas. As queimadas podem atingir também áreas agrícolas e destruir as culturas. Como exemplo esta reportagem do jornal O Globo (INCÊNDIO..., 2010). Uma queimada destruiu um canavial e mais de dois mil pés de seringueiras na cidade de Tanabi, interior do Estado de São Paulo. Os reservatórios de látex derreteram. O fogo atingiu ainda pastos e uma área de preservação permanente. Fauna Tempos atrás, até o início da década de 1980, as queimadas dos canaviais muitas vezes eram feitas a partir dos quatro lados da plantação e o fogo partia das extremidades para o centro. Com a maior conscientização ambiental dos agricultores no Estado de São Paulo, muitos realizam as queimadas somente a partir de dois lados dos canaviais, para diminuir os riscos de acidentes com a fauna. De qualquer forma, o fogo tem destruído um número ainda incalculável de espécimes da fauna nativa, desde insetos até mamíferos. A cana colhida crua permite que a fauna tenha maior tempo para fuga. Durante a queimada, o fogo alastra-se rapidamente e muitas vezes não oferece condições de fuga aos animais, ocasionando mortes e destruição de ninhos e filhotes. Muitos animais morrem até mesmo em virtude da elevada temperatura ou por asfixia causada pela fumaça. Alguns integrantes da fauna, como insetos, pequenos roedores e pássaros, são completamente incinerados e sequer deixam vestígios notáveis. Os micro-organismos e pequenos insetos que se instalam sob a palha da cana colhida crua e servem de alimento para a fauna superior atraem predadores como cobras, ratos e lagartos que, por sua vez, atraem outros predadores de maior porte, como o cachorro-do-mato, o lobo-guará e a onça-parda. Não existe um levantamento estatístico científico sobre a quantidade média de animais ou de espécies que morrem por hectare de canavial queimado. Recentemente, em 22 de julho de 2010, o Ministério Público apurou a morte de três filhotes de onça-parda que tinham de dois a três meses de idade e foram encontrados em incêndios ocorridos com a queima de palha de cana-de-açúcar na região do Pontal do Paranapanema (extremo oeste do Estado de São Paulo). Outra causa de morte de animais da fauna nativa é o atropelamento em estradas próximas às plantações de cana, provocado principalmente pela fuga dos animais das chamas dos canaviais. Saúde do trabalhador e esforço físico para o corte manual de cana queimada O avanço da colheita mecanizada da cana resultou em exigências de produtividade e em metas de produção nas usinas, segundo as quais cada trabalhador deve cortar em torno de dez toneladas de cana por dia. O resultado tem sido o recrutamento e a seleção cada vez mais rigorosos e a recontratação em outra safra. Nesse cenário, já são muitos os trabalhadores que não conseguem cumprir as metas de produtividade e são descartados em plena safra (NOVAES, 2007). A pesada carga laboral dos cortadores resulta de: postura física exigida para o corte, uso de ferramentas perigosas, realização de atividades repetitivas e desgastantes, transporte de material excessivamente pesado, reforçados por condições ambientais como exposição prolongada ao sol e intempérie, descargas atmosféricas, presença de animais peçonhentos e poluição do ar (VILAS BOAS; DIAS, 2009). Ao cortar a cana, um trabalhador realiza, em média, as seguintes atividades em um dia: caminha 8.800 m; despende 133.332 golpes de podão; carrega 12 t de cana em montes de 15 kg; faz 800 trajetos e 800 flexões levando 15 kg nos braços por uma distância de 1,5 m a 3 m; faz aproximadamente 36.630 flexões e entorses torácicos para golpear a cana; perde, em média, 8 L de água por dia, por realizar toda essa atividade sob sol forte, sob os efeitos da poeira, da fuligem expelida pela cana queimada e trajando uma indumentária que o protege da cana, mas aumenta sua temperatura corporal (ALVES, 2006). Segundo Ribeiro e Aquino (2010), as queixas de saúde dos trabalhadores estão relacionadas ao processo produtivo em que estão envolvidos: dores nas costas, tosse, fadiga muscular, ardor nos olhos. Esses sintomas são provocados pelo trabalho pesado, pela poluição, pela velhice e pela alimentação inadequada para um trabalho que exige altíssima quantidade de energia. Os trabalhadores que afirmaram sentir com frequência irritação nos olhos, tosse e falta de ar alegaram que esses sintomas têm maior intensidade na época das queimadas. Parra (2009) observou, por meio de levantamento quantitativo realizado junto aos prontuários médicos dos cortadores de cana da cidade de Monte Aprazível, SP, que as doenças incidentes sobre os trabalhadores rurais são: doenças ortopédicas (28,8%) seguidas das doenças das vias aéreas superiores e inferiores (24,1%) e, por fim, doenças relacionadas ao aparelho circulatório e muscular (18,3%). Somadas, essas doenças atingiram algo em torno de 70% dos prontuários pesquisados. Os trabalhadores também adoeceram de problemas do aparelho digestivo (8,3%), do aparelho urinário (3,3%), de alergias, infecções e intoxicações (5,1%) e, por fim, dos acidentes de trabalho que atingem pelo menos 12,1% dessa mão de obra. A queima da palha da cana e a saúde da população Com a combustão da biomassa, provocada pela queima da cana para colheita, são lançadas na atmosfera do interior de São Paulo diariamente, na época das queimadas, 285 milhões de toneladas de material particulado. Esse número é cinco vezes superior à poluição produzida na região metropolitana de São Paulo (LOPES, 2005). Essa poluição, composta também por gases tóxicos, atinge um grande número de pessoas, tanto no perímetro rural quanto urbano. Poucos estudos foram realizados no Brasil para avaliar efeitos da queimada de cana-de-açúcar na saúde da população que vive nos arredores das plantações. A grande maioria deles preocupou-se em avaliar efeitos agudos de episódios de queima à saúde da população, em curto prazo. Destacam-se as pesquisas de Cançado (2003), Arbex et al. (2004) e Lopes e Ribeiro (2006), que indicaram que, em períodos de queima de cana, há maior quantidade de visitas hospitalares, inalações e internações hospitalares por doenças respiratórias em cidades próximas. Uma tonelada de cana queimada emite em torno de: 0,0005 tonelada de óxido de nitrogênio; 0,004 tonelada de material particulado; 0,006 tonelada de hidrocarbonetos; 0,028 tonelada de monóxido de carbono (ARBEX et al., 2004). Entre os elementos resultantes da combustão da palha da cana, o material particulado é o que apresenta maior toxicidade para a população. Ele é constituído, em seu maior percentual (94%), por partículas finas (com diâmetro entre 0,1 μm e 2,5 μm) e ultrafinas (diâmetro menor que 0,1 μm), ou seja, partículas que conseguem transpor todas as barreiras do sistema respiratório e chegar até os alvéolos (ARBEX et al., 2004). Estudo realizado por De Andrade et al. (2010) na região de Araraquara comprovou que durante a safra há um considerável aumento na concentração de material particulado na atmosfera. Os autores observaram que a concentração de material particulado (PM10) na safra e entressafra variou de 41 mg m-3 a 181 mg m-3 e de 12 mg m-3 a 47 mg m-3 , respectivamente. Quanto aos hidrocarbonetos policíclicos aromáticos (HPAs), a concentração foi quatro vezes superior na safra em relação à entressafra. O problema é que partículas finas, como as estudadas nesse trabalho, podem viajar até 40 km e atingir muitos centros urbanos, o que torna o problema mais abrangente e não somente pontual da área rural. Estudos realizados no Brasil indicam que esse material particulado é composto por ao menos 40 tipos de hidrocarbonetos policíclicos aromáticos, compostos orgânicos com propriedades mutagênicas e cancerígenas. Entre essas substâncias, os autores destacam que 16 são consideradas contaminantes pela agência norte-americana de saúde. Os principais quadros de problemas respiratórios vão desde uma simples inflamação até infecções crônicas, quadros que podem evoluir consideravelmente, ocasionando até mesmo um câncer. Além disso, aponta populações de cidades localizadas em regiões com forte adensamento canavieiro, como Araraquara, Ribeirão Preto, Piracicaba entre outras, como as mais atingidas. O material particulado interfere no filme lacrimal e no tecido epitelial que recobre a superfície ocular. O material emitido também afeta as células produtoras de muco, que estão presentes na conjuntiva, membrana mucosa do olho (MATSUDA, 2009). Com menos muco e o filme lacrimal instável, os olhos dos trabalhadores ficam ainda mais expostos aos efeitos dos agentes externos, como poluentes atmosféricos. Quanto aos gases, a queima da palha da cana libera para a atmosfera alguns gases tóxicos primários, como monóxido de carbono (CO), dióxido de carbono (CO2), metano (CH4) e hidrocarbonetos. Estudos alertam para os riscos à saúde humana que esses gases oferecem, não só pelos problemas cardiorrespiratórios ocasionados, mas pelas substâncias cancerígenas (hidrocarbonetos policíclicos aromáticos – HPAs) encontradas na fumaça (RIBEIRO; AQUINO, 2010). Além disso, esses gases são precursores do ozônio (O3), um gás secundário resultante da interação entre outros gases, que é um poluente atmosférico com alta toxicidade e que, em grandes concentrações, diminui a resistência do organismo a infecções e causa irritações nos olhos e vias respiratórias. Monitoramentos feitos em municípios canavieiros no interior paulista demonstram altas concentrações de ozônio na atmosfera, resultantes da queima. Durante a safra da cana, esses gases atingem padrões de concentração inadequados (FOCUS, 2010). Lopes e Ribeiro (2006), ao mapear as queimadas e a incidência de internações por doenças respiratórias nas diferentes regiões do estado, observaram que nas zonas canavieiras a incidência desses dois fenômenos é maior, sobretudo nos meses de seca e de queimadas (entre maio e outubro). No Município de Araraquara, com extensa área dedicada ao plantio de cana-de-açúcar, Arbex et al. (2004) estudaram a quantidade de pacientes atendidos para inalação em um hospital da cidade e verificaram que a quantidade de atendimentos por dia nos fins de semana de maio e junho (época das queimadas e safra) variava entre 70 e 40 pessoas e que, com o fim da safra, a média caía para 10 a 20 pessoas. Os autores indicam a queima nos canaviais como motivo desse aumento sazonal. conclusão A poluição do ar gerada pela queima de cana, o agravamento do efeito estufa e os transtornos causados à população, sobretudo nos centros urbanos próximos aos canaviais, pela fuligem deixada pela fumaça são fatos. Considerados os valores gastos com programas de melhoria do meio atmosférico poluído, com a saúde da população afetada, junto aos valores desperdiçados com a energia da biomassa das palhas de cana, com a perda da fertilidade do solo, com o esgotamento dos recursos hídricos e a irreversibilidade de alguns quadros de degradação do meio, certamente chegar-se-á a conclusão de que o fim da queima é o melhor caminho a ser seguido (Queimada na colheita de cana-de-açúcar: impactos ambientais, sociais e econômicos / Carlos Cesar Ronquim. – Campinas: Embrapa Monitoramento por Satélite, 2010 45 p.: il. Embrapa Monitoramento por Satélite. Documentos, 77. ISSN 0103-78110) Por pertinente, destaco do eminente Desembargador Estadual Renato Nalini, em matéria publicada no Espaço Aberto do jornal "O Estado de São Paulo", de 28 de fevereiro de 2007, a seguinte assertiva: 'Perdeu-se de vista que o drama ambiental há de ser avaliado não só na relação entre o homem e os outros seres vivos, ou no plano das relações intergeracionais, mas também com base na categoria ética da justiça. Os trabalhadores, usados como pretexto para a continuidade da prática rudimentar, são as principais vítimas da queimada. E sofrem duas vezes tais efeitos: no trabalho e em suas residências. São parcelas da população que suportam peso desproporcionados efeitos negativos da degradação ambiental. Quem ordena a queimada pode refugiar-se longe dela. Quem serve de instrumento recebe, imediatamente, suas consequências.' (grifo do original) V.2. As Queimadas e a Preservação Ambiental: o arcabouço jurídico que envolve a questão V.2.1. A Constituição V.2.1.1. Proteção ao Meio Ambiente A Constituição Federal no artigo 1º consagra como fundamento do Estado Democrático de Direito a dignidade da pessoa humana e seu artigo 196 dispõe que: “...a saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação”. Esses princípios fundamentais concatenam-se com o direito de todos ao “meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações” (artigo 225, caput). O Min. Celso de Mello classifica o direito à integridade do meio ambiente como de terceira geração e o identifica aos valores fundamentais indisponíveis: "o direito à integridade do meio ambiente - típico direito de terceira geração - constitui prerrogativa jurídica de titularidade coletiva, refletindo, dentro do processo de afirmação dos direitos humanos, a expressão significativa de um poder atribuído, não ao indivíduo identificado em sua singularidade, mas, num sentido verdadeiramente mais abrangente, a própria coletividade social, enquanto os direitos de primeira geração (direitos civis e políticos) - que compreendem as liberdades clássicas, negativas ou formais - realçam o princípio da liberdade e os direitos de segunda geração (direitos econômicos, sociais e culturais) - que se identifica com as liberdades positivas, reais ou concretas - acentuam o princípio da igualdade, os direitos de terceira geração, que materializam poderes de titularidade coletiva atribuídos genericamente a todas as formações sociais, consagram o princípio da solidariedade e constituem um momento importante no processo de desenvolvimento, expansão e reconhecimento dos direitos humanos, caracterizados, enquanto valores fundamentais indisponíveis, pela nota de uma essencial inexauribilidade." (MS 22.164; Rel. Min. Celso de Mello, j. 30.10.95) O constituinte também estabeleceu a forma de lhe dar efetividade no parágrafo primeiro: I - preservar e restaurar os processos ecológicos essenciais e prover o manejo ecológico das espécies e ecossistemas; II - preservar a diversidade e a integridade do patrimônio genético do País e fiscalizar as entidades dedicadas à pesquisa e manipulação de material genético; III - definir, em todas as unidades da Federação, espaços territoriais e seus componentes a serem especialmente protegidos, sendo a alteração e a supressão permitidas somente através de lei, vedada qualquer utilização que comprometa a integridade dos atributos que justifiquem sua proteção; IV - exigir, na forma da lei, para instalação de obra ou atividade potencialmente causadora de significativa degradação do meio ambiente, estudo prévio de impacto ambiental, a que se dará publicidade; V - controlar a produção, a comercialização e o emprego de técnicas, métodos e substâncias que comportem risco para a vida, a qualidade de vida e o meio ambiente; VI - promover a educação ambiental em todos os níveis de ensino e a conscientização pública para a preservação do meio ambiente; VII - proteger a fauna e a flora, vedadas, na forma da lei, as práticas que coloquem em risco sua função ecológica, provoquem a extinção de espécies ou submetam os animais a crueldade. (destaquei) Claramente, portanto, a Carta Magna determina o controle da produção, comercialização e o emprego de técnicas, métodos e substâncias que comportem risco para a vida ou comprometam sua qualidade e o meio ambiente. Acerca do tema, colho os ensinamentos de Antônio Beltrão: No Brasil, a exigência do EIA foi elevada ao status de norma constitucional como um requerimento prévio e obrigatório para instalação "de obra ou atividade potencialmente causadora de significativa degradação do meio ambiente" (art. 225, § 1.º, IV). Portanto, os entes governamentais não possuem discricionariedade para decidir acerca da elaboração ou não de um EIA; se o projeto apresentado for potencialmente causador de algum impacto ambiental significativo, um estudo de impacto ambiental há de ser realizado. (Curso de Direito Ambiental, Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: Método, 2009, p. 110) (Grifei) Ao estabelecer os princípios de ordem econômica, o constituinte teve o cuidado de vinculá-los à dignidade humana (artigo 170, caput) e de submetê-los à, verbis: “defesa do meio ambiente, inclusive mediante tratamento diferenciado conforme o impacto ambiental dos produtos e serviços e de seus processos de elaboração e prestação” (inciso VI do artigo 170), além de condicionar o direito de propriedade à sua função social (artigos 5º, XXIII, e 170, III). Na lição de Eros Roberto Grau: “o princípio da defesa do meio ambiente conforma a ordem econômica (mundo do ser), informando substancialmente os princípios da garantia do desenvolvimento e do pleno emprego. Além de objetivo, em si, é instrumento necessário – e indispensável – à realização do fim dessa ordem, o de assegurar a todos existência digna. Nutre também, ademais, os ditames da justiça social. Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo – diz o artigo 225, caput. (“A ordem econômica na Constituição de 1988”. 5ª ed. São Paulo: Malheiros, 2000, pág. 265/266) A expressão desenvolvimento sustentável foi cunhada internacionalmente no relatório Brundland em 1987 e ganhou relevo na Conferência das Nações Unidas sobre o meio ambiente realizada no Rio de Janeiro em 1992, que enfaticamente propôs a compatibilização da atividade econômica à preservação ambiental (STEFANELLO, Alaim Giovalni Fortes, “O desenvolvimento econômico baseado na preservação ambiental como paradigma das instituições financeiras, Revista de Direito ADVOCEF, ano II, nº 4, maio/07, pag. 289-305) . Desse modo, evidencia-se que argumentos econômicos tais como, in casu, os prejuízos dos produtores de cana, das usinas de beneficiamento e da arrecadação estatal de impostos, não podem ser legitimamente destacados, contrapostos ou sobrepostos à questão da preservação ambiental para fundamentar a manutenção de prática causadora de dano, à luz da Carta Magna. Aliás, Cristiane Derani (Direito ambiental econômico,3. Ed. São Paulo: Saraiva, 2008) bem lecionou a acerca do sentido da expressão qualidade de vida: "O alargamento do sentido da expressão 'qualidade de vida', além de acrescentar esta necessária perspectiva de bem-estar relativo à saúde física e psíquica, referindo-se inclusive ao direito de o homem fruir de um ar puro e de uma bela paisagem, vinca o fato de que o meio ambiente não diz respeito à natureza isolada, estática, porém integrada à vida do homem social nos aspectos relacionados à produção, ao trabalho como também no concernente ao seu lazer", de forma que 'qualidade de vida, proposta na finalidade do direito econômico, deve ser coincidente com a qualidade de vida almejada nas normas de direito ambiental" V.2.1.2. Competências Administrativa e Legislativa Luís Pinto Ferreira define competência como a capacidade jurídica de agir em uma esfera determinada (Comentários à Constituição brasileira. São Paulo: Saraiva, 1990, v. 2.). José Afonso da Silva (2003) ressalta que a distribuição de competências entre os entes federativos em matéria ambiental segue os mesmos parâmetros adotados pela Constituição Federal em relação à repartição das outras matérias. Outrossim, a Constituição Federal dispõe basicamente sobre dois tipos de competência: a administrativa e a legislativa. A primeira cabe ao Poder Executivo e diz respeito à faculdade para atuar com base no poder de polícia, ao passo que a segunda é do Poder Legislativo e se refere à aptidão para legislar a respeito dos temas de interesse da coletividade. A competência legislativa concorrente é reservada à União, aos Estados e ao Distrito Federal, cabendo à União a primazia de legislar sobre normas gerais (CF, art. 24, § 1º). A suplementar é aquela que atribui aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios a faculdade de complementar os princípios e normas gerais ou de suprir a omissão destes (CF, arts. 24, §§ 2 e 3, e 30, II). Tércio Ferraz Júnior (1995, p. 250) adverte que essa atribuição é para a edição de legislação decorrente e não concorrente, vale dizer, deve ser exercida em concordância com as normas gerais da União e não na ausência delas. Finalmente, a competência reservada é aquela que atribui ao Distrito Federal a reservada aos Estados e aos Municípios, excetuada a relativa à organização judiciária (CF, art. 32, § 1o). Em matéria ambiental, a competência administrativa é comum entre a União, Estados, Distrito Federal e Municípios (artigo 23, VI e VII, CF). Quanto à legislativa, 0 que predomina é a da União para legislar sobre normas gerais e aos Estados, Municípios e ao Distrito Federal cabe suplementá-las, de acordo com as peculiaridades locais. Destaco trecho de julgado do Supremo Tribunal Federal que abordou a questão da divisão de competências em matéria ambiental em caso em que o Município de Paulínea proibiu a despalha da cana com o uso do fogo: A tese discutida, em verdade, é simples: o Município de Paulínia, ao legislar sobre a proibição da queima de cana-de-açúcar, afrontou a regra descrita no art. 24, VI da Constituição Federal ou simplesmente se utilizou da norma constante no art. 30, I e II também da Constituição Federal, que permite legislar sobre interesse local supletivamente? Se o questionamento é simples, o mesmo não se pode dizer de sua solução, que é bastante complexa. Basta compreender que sua solução envolve o conceito de interesse local e a definição in concreto dos limites, estabelecidos pela Constituição, da competência legislativa dos entes da federação. Ao tentar traçar um esboço do conceito de interesse local, é interessante observar o ensinamento do eminente doutrinador Hely Lopes Meireles, segundo o qual “se caracteriza pela predominância e não pela exclusividade do interesse para o município, em relação ao do Estado e da União. Isso porque não há assunto municipal que não seja reflexamente de interesse estadual e nacional. A diferença é apenas de grau, e não de substância." (Direito Administrativo Brasileiro. São Paulo: Malheiros Editores, 1996. p. 121.) Falei especificamente em conceito de interesse local, ao invés de definição, visto que, esta somente será obtida mediante análise de cada caso concreto. Daí, a necessidade de se ter em mente a lição acima transcrita, pois é precisamente o que se passa neste julgamento: o meio ambiente equilibrado é interesse de todos os entes da federação, sendo imprescindível, para a solução correta do problema, identificar qual é o predominante. (...) O art. 24 da Constituição Federal estabelece uma competência concorrente entre União e Estados-membros, determinando a edição de norma de caráter genérico pela primeira e de caráter específico na segunda hipótese. (STF, RE 586224/SP, Rel Min Luiz Fux; j. 05/03/2005) No aludido julgado foi declarada a inconstitucionalidade da lei municipal que vedava, por completo, a prática da queima de cana-de-açúcar, dada a sua incompatibilidade com lei estadual - no caso, a Lei Paulista nº 11.241/2002. Note-se, todavia, que o caso em exame não visa a proibição da queima, mas que seu controle fique a cargo do IBAMA e com base em EIA/RIMA. V.2.2. Legislação Infraconstitucional V.2.2.1 – Estudo de Impacto Ambiental O estudo prévio do impacto ambiental há muito está previsto no artigo 10 da Lei nº 6.938/81 (Lei de Política Nacional do Meio Ambiente): Art. 10. A construção, instalação, ampliação e funcionamento de estabelecimentos e atividades utilizadores de recursos ambientais, efetiva ou potencialmente poluidores ou capazes, sob qualquer forma, de causar degradação ambiental dependerão de prévio licenciamento ambiental. (Redação dada pela Lei Complementar nº 140, de 2011) Essa lei também define o que se entende por degradação da qualidade ambiental (artigo 3º, inciso II): "a alteração adversa das características do meio ambiente". A Resolução nº 237/97 do CONAMA reiterou a necessidade de licença ambiental prévia, que é obtida por meio de estudo de impacto: Art. 2º- A localização, construção, instalação, ampliação, modificação e operação de empreendimentos e atividades utilizadoras de recursos ambientais consideradas efetiva ou potencialmente poluidoras, bem como os empreendimentos capazes, sob qualquer forma, de causar degradação ambiental, dependerão de prévio licenciamento do órgão ambiental competente, sem prejuízo de outras licenças legalmente exigíveis. § 1º- Estão sujeitos ao licenciamento ambiental os empreendimentos e as atividades relacionadas no Anexo 1, parte integrante desta Resolução. § 2º – Caberá ao órgão ambiental competente definir os critérios de exigibilidade, o detalhamento e a complementação do Anexo 1, levando em consideração as especificidades, os riscos ambientais, o porte e outras características do empreendimento ou atividade. Art. 3º- A licença ambiental para empreendimentos e atividades consideradas efetiva ou potencialmente causadoras de significativa degradação do meio dependerá de prévio estudo de impacto ambiental e respectivo relatório de impacto sobre o meio ambiente (EIA/RIMA), ao qual dar-se-á publicidade, garantida a realização de audiências públicas, quando couber, de acordo com a regulamentação.; Cabe destacar acerca do parágrafo primeiro do artigo 2º que as atividades objeto do anexo não são as únicas sujeitas ao licenciamento, apenas que sobre elas há presunção de que degradam o meio ambiente. Interpretação diversa implicaria atribuir à regulamentação o poder de limitar o alcance do comando constitucional de que qualquer atividade potencialmente poluidora depende de prévio estudo de impacto ambiental. A propósito, Luiz Guilherme Marinoni bem destrinchou o conceito: "... supõe a existência de uma zona de certeza positiva - na qual certamente se dá o conceito -e de uma zona de certeza negativa - na qual certamente não se dá o conceito. Nessas duas zonas de certeza não se pode pensar em existência de discricionariedade, pois caso se dê o conceito "obra ou atividade potencialmente causadora de significativa degradação do meio ambiente", a administração terá o dever de exigir o estudo de impacto ambiental, enquanto que na outra hipótese esse dever inexistirá. Será apenas naquela zona intermédia entre as duas zonas de certeza, o chamado halo do conceito ou zona de penumbra, que existirá discricionariedade." (O Direito Ambiental e as Ações Inibitórios e de Remoção do Ilícito. Disponível em: http://www.planetaverde.org/arquivos/biblioteca/arquivo_20131101100547_5939.pdf, acesso em 24/6/2020). Os objetivos e diretrizes do estudo de impacto ambiental estão previstos na Resolução CONAMA 01/86: Artigo 5º - O estudo de impacto ambiental, além de atender à legislação, em especial os princípios e objetivos expressos na Lei de Política Nacional do Meio Ambiente, obedecerá às seguintes diretrizes gerais: I - Contemplar todas as alternativas tecnológicas e de localização de projeto, confrontando-as com a hipótese de não execução do projeto; II - Identificar e avaliar sistematicamente os impactos ambientais gerados nas fases de implantação e operação da atividade ; III - Definir os limites da área geográfica a ser direta ou indiretamente afetada pelos impactos, denominada área de influência do projeto, considerando, em todos os casos, a bacia hidrográfica na qual se localiza; lV - Considerar os planos e programas governamentais, propostos e em implantação na área de influência do projeto, e sua compatibilidade. Parágrafo Único - Ao determinar a execução do estudo de impacto ambiental o órgão estadual competente, ou o IBAMA ou, quando couber, o Município, fixará as diretrizes adicionais que, pelas peculiaridades do projeto e características ambientais da área, forem julgadas necessárias, inclusive os prazos para conclusão e análise dos estudo Luis Paulo Sirvinskas resume o que é o estudo de impacto ambiental: “o estudo de impacto ambiental nada mais é do que a avaliação, através de estudos realizados por uma equipe técnica multidisciplinar, da área onde o postulante pretende instalar indústria ou exercer atividade causadora de significativa degradação ambiental, procurando ressaltar os aspectos negativos e/ou positivos dessa intervenção humana. Tal estudo analisará a viabilidade ou não da instalação da indústria ou do exercício da atividade, apresentado, inclusive, alternativas tecnológicas que poderiam ser adotadas para minimizar o impacto negativo ao meio ambiente. O relatório de impacto ambiental, por sua vez, nada mais é do que a materialização desse estudo.” (Manual de Direito Ambiental, São Paulo: Saraiva, 2002, p.66) Conclui-se que, seja sob o viés constitucional ou do infralegal, o estudo prévio de impacto ambiental é obrigatório e o poder público não pode dispensá-lo, bem como que não é cabível a invocação de resoluções e atos administrativos para justificar a inexigibilidade. Nesse sentido é o precedente do STF (ADIN nº 1.086/SC, Rel. Min. Ilmar Galvão, DJ 01.10.2001): EMENTA: AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. ARTIGO 182, § 3º, DA CONSTITUIÇÃO DO ESTADO DE SANTA CATARINA. ESTUDO DE IMPACTO AMBIENTAL. CONTRAIEDADE AO ARTIGO 225, § 1º, IV, DA CARTA DA REPÚBLICA. A norma impugnada, ao dispensar a elaboração de estudo prévio de impacto ambiental no caso de áreas de florestamento ou reflorestamento para fins empresariais, cria exceção incompatível com o disposto no mencionado inciso IV do § 1º do artigo 225 da Constituição Federal. Ação julgada procedente, para declarar a inconstitucionalidade do dispositivo constitucional catarinense sob enfoque. V.2.2.2 – Queima da palha da cana-de-açúcar O art. 27 da Lei n.º 4.771/1965 (Código Florestal) proibia, de regra, a queima de vegetação, permitindo-a apenas excepcionalmente, de acordo com peculiaridades regionais, após prévia “permissão” do ente ambiental: Art. 27. É proibido o uso de fogo nas florestas e demais formas de vegetação. Parágrafo único. Se peculiaridades locais ou regionais justificarem o emprego do fogo em práticas agropastoris ou florestais, a permissão será estabelecida em ato do Poder Público, circunscrevendo as áreas e estabelecendo normas de precaução. (Grifei) Referido parágrafo único foi regulamentado pelo Decreto n.º 2.661, de 8 de julho de 1998, ainda em vigor, que definiu a queima controlada como sendo: o emprego do fogo como fator de produção e manejo em atividades agropastoris ou florestais, e para fins de pesquisa científica e tecnológica, em áreas com limites físicos previamente definidos (art. 2º, parágrafo único). Tal ato regulamentar também passou a prever a eliminação gradativa da queima, nos seguintes termos: Art. 16. O emprego do fogo, como método despalhador e facilitador do corte de cana-de-açúcar em áreas passíveis de mecanização da colheita, será eliminado de forma gradativa, não podendo a redução ser inferior a um quarto da área mecanizável de cada unidade agroindustrial ou propriedade não vinculada a unidade agroindustrial, a cada período de cinco anos, contados da data de publicação deste Decreto. O novo Código Florestal (Lei n.º 12.651/2012) manteve praticamente a mesma redação da revogada Lei n.º 4.771/65, in verbis: Art. 38. É proibido o uso de fogo na vegetação, exceto nas seguintes situações: I - em locais ou regiões cujas peculiaridades justifiquem o emprego do fogo em práticas agropastoris ou florestais, mediante prévia aprovação do órgão estadual ambiental competente do Sisnama, para cada imóvel rural ou de forma regionalizada, que estabelecerá os critérios de monitoramento e controle; (Grifei) Usualmente argumenta-se que a licença é o ato final de um procedimento de licenciamento, que avalia o impacto ambiental de atividades ou obras, com fundamento na Lei nº 6.938/81, e que, diferentemente, autorização é ato administrativo vinculado à lei, aplicável à utilização do fogo na colheita por se caracterizar como uma prática de agricultura. A alegação não prospera porque parte da premissa de que essa prática não provoca significativa degradação ambiental. O Superior Tribunal de Justiça já interpretou o dispositivo e deixou claro que a exceção não se aplica às atividades agrícolas organizadas: "Os estudos acadêmicos ilustram que a queima da palha da cana-de-açúcar causa grandes danos ambientais e que, considerando o desenvolvimento sustentado, há instrumentos e tecnologias modernos que podem substituir tal prática sem inviabilizar a atividade econômica. 2. A exceção do parágrafo único do artigo 27 da Lei n. 4.771/65 deve ser interpretada com base nos postulados jurídicos e nos modernos instrumentos de linguística, inclusive com observância - na valoração dos signos (semiótica) - da semântica, da Sintaxe e da pragmática. 3. A exceção apresentada (peculiaridades locais ou regionais) tem como objetivo a compatibilização de dois valores protegidos na Constituição Federal/88: o meio ambiente e a cultura (modos de fazer). Assim, a sua interpretação não pode abranger atividades agroindustriais ou agrícolas organizadas, ante a impossibilidade de prevalência do interesse econômico sobre a proteção ambiental quando há formas menos lesivas de exploração". (STJ, ADRESP 200802154943, 2009) DIREITO AMBIENTAL. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. CANA-DE-AÇÚCAR. QUEIMADAS. ART. 21, PARÁGRAFO ÚNICO, DA LEI N. 4771/65. DANO AO MEIO AMBIENTE. PRINCÍPIO DA PRECAUÇÃO. QUEIMA DA PALHA DE CANA. EXISTÊNCIA DE REGRA EXPRESSA PROIBITIVA. EXCEÇÃO EXISTENTE SOMENTE PARA PRESERVAR PECULIARIDADES LOCAIS OU REGIONAIS RELACIONADAS À IDENTIDADE CULTURAL. INAPLICABILIDADE ÀS ATIVIDADES AGRÍCOLAS INDUSTRIAIS. 1. O princípio da precaução, consagrado formalmente pela Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente e o Desenvolvimento - Rio 92 (ratificada pelo Brasil), a ausência de certezas científicas não pode ser argumento utilizado para postergar a adoção de medidas eficazes para a proteção ambiental. Na dúvida, prevalece a defesa do meio ambiente. 2 A situação de tensão entre princípios deve ser resolvida pela ponderação, fundamentada e racional, entre os valores conflitantes. Em face dos principias democráticos e da Separação dos Poderes, é o Poder Legislativo quem possui a primazia no processo de ponderação, de modo que o Judiciário deve intervir apenas no caso de ausência ou desproporcionalidade da opção adotada pelo legislador. 3. O legislador brasileiro, atento a essa questão, disciplinou o uso do fogo no processo produtivo agrícola, quando prescreveu no art. 27, parágrafo único da Lei n. 4.771/65 que o Poder Público poderia autorizá-lo em práticas agropastoris ou florestais desde que em razão de peculiaridades locais ou regionais. 4. Buscou-se, com isso, compatibilizar dois valores protegidos na Constituição Federal de 1988, quais sejam, o meio ambiente e a cultura ou o modo de fazer, este quando necessário à sobrevivência d pequenos produtores que retiram seu sustento da atividade agrícola e que não dispõem de outros métodos para o exercício desta, que não o uso do fogo. 5. A interpretação do art. 27, parágrafo único do Código Florestal não pode conduzir ao entendimento de que estão por ele abrangidas as atividades agroindustriais ou agrícolas organizadas, ou seja, exercidas empresarialmente, pois dispõe de condições financeiras para implantar outros métodos menos ofensivos ao meio ambiente. Precedente (AgRg nos EDc1 no Resp 1094873/SP, Rei. Mm. Humberto Martins, Segunda Turma, julgado em 04/08/2009, DJe 17/08/2009). 6. Ademais, ainda que se entenda que é possível à administração pública autorizar a queima da palha da cana de açúcar em atividades agrícolas industriais, a permissão deve ser especifica, precedida de estudo de impacto ambiental e licenciamento, com a implementação de medidas que viabilizem amenizar os danos e a recuperar o ambiente, Tudo isso em respeito ao art. 10 da Lei n. 6.938/81. Precedente: (ERE5p 418.565/SP, Rei. Mm. Teori Albino Zavascki, Primeira Seção, julgado em 29/09/2010, DJe 13/10/2010). Recurso especial provido. (STJ, 2 Turma, Resp n. 1.285.463 - SP, Rei. Mm. Humberto Martins, DJ: 28.02.2012). "ADMINISTRATIVO E PROCESSUAL CIVIL. QUEIMA DA PALHA DE CANA-DE-AÇÚCAR. EXISTÊNCIA DE REGRA EXPRESSA PROIBITIVA. EXCEÇÃO EXISTENTE SOMENTE PARA PRESERVAR PECULIARIDADES LOCAIS OU REGIONAIS RELACIONADAS À IDENTIDADE CULTURAL. REANÁLISE DE AUTORIZAÇÃO ADMINISTRATIVA E ESTUDO DE IMPACTO AMBIENTAL. NECESSIDADE DE EXAME DO ACERVO FÁTICO-PROBATÓRIO. SÚMULA 7/STJ. 1. O procedimento de queima de palha de cana-de-açúcar possui caráter prejudicial ao meio ambiente. Esta Corte já possui entendimento firmado no sentido de se considerar que tal atividade é possível excepcionalmente, desde que não seja danosa ao meio ambiente e haja a respectiva de autorização do órgão competente. 2. (...) (AgRg no REsp 1413767/SP, Rel. Ministro HUMBERTO MARTINS, SEGUNDA TURMA, julgado em 13/10/2015, DJe 27/10/2015) "PROCESSUAL CIVIL E AMBIENTAL. EMBARGOS DE DIVERGÊNCIA. QUEIMADA DA PALHA DE CANA-DE-AÇÚCAR. PROIBIÇÃO. APLICAÇÃO DO ART. 27 DO CÓDIGO FLORESTAL. 1. "Segundo a disposição do art. 27 da Lei n. 4.771/85, é proibido o uso de fogo nas florestas e nas demais formas de vegetação, as quais abrangem todas as espécies, independentemente de serem culturas permanentes ou renováveis. Isso ainda vem corroborado no parágrafo único do mencionado artigo, que ressalva a possibilidade de se obter permissão do Poder Público para a prática de queimadas em atividades agropastoris, se as peculiaridades regionais assim indicarem" (REsp 439.456/SP, 2ª T., Min. João Otávio de Noronha, DJ de 26/03/2007). Indispensável considerar que "[as] queimadas, sobretudo nas atividades agroindustriais ou agrícolas organizadas ou empresariais, são incompatíveis com os objetivos de proteção do meio ambiente estabelecidos na Constituição Federal e nas normas ambientais infraconstitucionais. Em época de mudanças climáticas, qualquer exceção a essa proibição geral, além de prevista expressamente em lei federal, deve ser interpretada restritivamente pelo administrador e juiz" (REsp 1000731, 2a. Turma, Min.Herman Benjamin, DJ de 08.09.09). 2. Assim, a palha da cana-de-açúcar está sujeita ao regime do art. 27 e seu parágrafo do Código Florestal, razão pela qual sua queimada somente é admitida mediante prévia autorização dos órgãos ambientais competentes, nos termos do parágrafo único do mesmo artigo e do disposto no Decreto 2.661/98, sem prejuízo de outras exigências constitucionais e legais inerentes à tutela ambiental, bem como da responsabilidade civil por eventuais danos de qualquer natureza causados ao meio ambiente e a terceiros. 3. Embargos de Divergência improvidos. (EREsp 418.565/SP, Rel. Ministro TEORI ALBINO ZAVASCKI, PRIMEIRA SEÇÃO, julgado em 29/09/2010, DJe 13/10/2010) Não bastasse, a mencionada distinção não encontra amparo na Lei Complementar nº 140/2011, que dispõe sobre as ações administrativas que cabem aos entes federativos, a qual prevê unicamente o licenciamento ambiental como procedimento apto para autorizar atividades que tenham potencial ou causem degradação ambiental: Art. 2o Para os fins desta Lei Complementar, consideram-se: I - licenciamento ambiental: o procedimento administrativo destinado a licenciar atividades ou empreendimentos utilizadores de recursos ambientais, efetiva ou potencialmente poluidores ou capazes, sob qualquer forma, de causar degradação ambiental; Cabe destacar que a atividade canavieira na região é largamente utilizada e abarca inúmeras propriedades, com ciclo de plantio e colheita na mesma época, de modo que ocasiona o uso do fogo em grande escala e no mesmo período. Assim, não se pode analisar a prática como se fora ocasional e por um pequeno proprietário em uma cultura de subsistência ou por uma pequena comunidade indígena ou quilombola. Destaco da sentença os malefícios verificados na Subseção: A petição inicial e a documentação que a acompanha, contudo, revelam que os danos causados pela queima da palha de cana são graves e geram significativo impacto ambiental, já que colocam em risco espécies ameaçadas de extinção, provocam a morte por queimaduras ou asfixia de animais que habitam os canaviais ou áreas adjacentes, reduzem a umidade relativa do ar a níveis que provocam doenças respiratórias nas pessoas que habitam nas localidades atingidas pela fumaça, prejudica a saúde dos trabalhadores das lavouras de cana e colocam em risco áreas de vegetação protegidas, bem como a vida das pessoas que trafegam pela região dos canaviais. A queima da palha da cana-de-açúcar se dá no contexto de uma atividade agrícola e industrial muito bem organizada, conforme a EMBRAPA deixa claro no trabalho anteriormente mencionado, em largas porções de terra de inúmeras propriedades da região e que, como demonstram os diversos estudos que instruem a demanda, provoca severos impactos ambientais para a fauna, flora e a camada de ozônio, além da saúde das pessoas. Em decorrência, é incontornável e não submetida à discricionariedade do ente público a necessidade do licenciamento por meio do estudo de impacto ambiental, conforme anteriormente explicitado. A propósito, o seguinte julgado do STJ: "AMBIENTAL. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. QUEIMA DE PALHA DA CANA-DE-AÇÚCAR. IMPOSSIBILIDADE. DANO AO MEIO AMBIENTE. 1. A Segunda Turma do STJ reconheceu a ilegalidade da queima de palha de cana-de-açúcar, por se tratar de atividade vedada, como regra, pela legislação federal, em virtude dos danos que provoca ao meio ambiente. 2. De tão notórios e evidentes, os males causados pelas queimadas à saúde e ao patrimônio das pessoas, bem como ao meio ambiente, independem de comprovação de nexo de causalidade, pois entender diversamente seria atentar contra o senso comum. Insistir no argumento da inofensividade das queimadas, sobretudo em época de mudanças climáticas, ou exigir a elaboração de laudos técnicos impossíveis, aproxima-se do burlesco e da denegação de jurisdição, pecha que certamente não se aplica ao Judiciário brasileiro. 3. O acórdão recorrido viola o art. 27 da Lei 4.771/1965 ao interpretá-lo de forma restritiva e incompatível com a Constituição da República (arts. 225, 170, VI, e 186, II)). Para a consecução do mandamento constitucional e do princípio da precaução, forçoso afastar, como regra geral, a queima de palha da cana-de-açúcar, sobretudo por haver instrumentos e tecnologias que podem substituir essa prática, sem inviabilizar a atividade econômica. 4. Caberá à autoridade ambiental estadual expedir autorizações - específicas, excepcionais, individualizadas e por prazo certo - para uso de fogo, nos termos legais, sem a perda da exigência de elaboração, às expensas dos empreendedores, de Estudo Prévio de Impacto Ambiental, na hipótese de prática massificada, e do dever de reparar eventuais danos (patrimoniais e morais, individuais e coletivos) causados às pessoas e ao meio ambiente, com base no princípio poluidor-pagador. 5. Recurso Especial provido. (REsp 965.078/SP, Rel. Ministro HERMAN BENJAMIN, SEGUNDA TURMA, julgado em 20/08/2009, DJe 27/04/2011) V.2.2.3 – A Incumbência do Licenciamento Com fundamento nos incisos III, VI e VII do caput e do parágrafo único do art. 23 da Constituição Federal, foi editada a Lei Complementar nº 140/2011 para definir a cooperação entre a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios nas ações administrativas decorrentes do exercício da competência comum relativas à proteção das paisagens naturais notáveis, à proteção do meio ambiente, ao combate à poluição em qualquer de suas formas e à preservação das florestas, da fauna e da flora. Seu artigo 3º define os objetivos fundamentais dos entes da federação: Art. 3o Constituem objetivos fundamentais da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, no exercício da competência comum a que se refere esta Lei Complementar: I - proteger, defender e conservar o meio ambiente ecologicamente equilibrado, promovendo gestão descentralizada, democrática e eficiente; II - garantir o equilíbrio do desenvolvimento socioeconômico com a proteção do meio ambiente, observando a dignidade da pessoa humana, a erradicação da pobreza e a redução das desigualdades sociais e regionais; III - harmonizar as políticas e ações administrativas para evitar a sobreposição de atuação entre os entes federativos, de forma a evitar conflitos de atribuições e garantir uma atuação administrativa eficiente; IV - garantir a uniformidade da política ambiental para todo o País, respeitadas as peculiaridades regionais e locais. O artigo 7º dessa norma elabora uma extensa lista de vinte e cinco ações administrativas que incumbem à União, das quais destaco: Art. 7o São ações administrativas da União: (...) IV - promover a integração de programas e ações de órgãos e entidades da administração pública da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, relacionados à proteção e à gestão ambiental; V - articular a cooperação técnica, científica e financeira, em apoio à Política Nacional do Meio Ambiente; (...) XII - controlar a produção, a comercialização e o emprego de técnicas, métodos e substâncias que comportem risco para a vida, a qualidade de vida e o meio ambiente, na forma da lei; XIII - exercer o controle e fiscalizar as atividades e empreendimentos cuja atribuição para licenciar ou autorizar, ambientalmente, for cometida à União; (...) XIV - promover o licenciamento ambiental de empreendimentos e atividades: e) localizados ou desenvolvidos em 2 (dois) ou mais Estados; (...) XXI - proteger a fauna migratória e as espécies inseridas na relação prevista no inciso XVI; Relativamente às atribuições estaduais previstas na lei complementar ressalto: Art. 8o São ações administrativas dos Estados: XIV - promover o licenciamento ambiental de atividades ou empreendimentos utilizadores de recursos ambientais, efetiva ou potencialmente poluidores ou capazes, sob qualquer forma, de causar degradação ambiental, ressalvado o disposto nos arts. 7o e 9o; Com o objetivo de cumprir suas competências administrativas, a União criou o IBAMA que, de acordo com a Lei nº 7735/89, com a redação que lhe deu o art. 5º da Lei nº 11.516, de 28 de agosto de 2007, tem como principais atribuições: I. Exercer o poder de polícia ambiental; II. Executar ações das políticas nacionais de meio ambiente, referentes às atribuições federais, relativas ao licenciamento ambiental, ao controle da qualidade ambiental, à autorização de uso dos recursos naturais e à fiscalização, monitoramento e controle ambiental, observadas as diretrizes emanadas do Ministério do Meio Ambiente; e III. Executar as ações supletivas de competência da União, de conformidade com a legislação ambiental vigente. No mesmo sentido, o art. 4º da Resolução CONAMA 237/97 dispõe, in verbis: [...] Art. 4º - Compete ao Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis - IBAMA, órgão executor do SISNAMA, o licenciamento ambiental, a que se refere o artigo 10 da Lei nº 6.938, de 31 de agosto de 1981, de empreendimentos e atividades com significativo impacto ambiental de âmbito nacional ou regional, a saber: I - localizadas ou desenvolvidas conjuntamente no Brasil e em país limítrofe; no mar territorial; na plataforma continental; na zona econômica exclusiva; em terras indígenas ou em unidades de conservação do domínio da União. II - localizadas ou desenvolvidas em dois ou mais Estados; III - cujos impactos ambientais diretos ultrapassem os limites territoriais do País ou de um ou mais Estados; § 1º - O IBAMA fará o licenciamento de que trata este artigo após considerar o exame técnico procedido pelos órgãos ambientais dos Estados e Municípios em que se localizar a atividade ou empreendimento, bem como, quando couber, o parecer dos demais órgãos competentes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, envolvidos no procedimento de licenciamento. § 2º - O IBAMA, ressalvada sua competência supletiva, poderá delegar aos Estados o licenciamento de atividade com significativo impacto ambiental de âmbito regional, uniformizando, quando possível, as exigências. Art. 5º - Compete ao órgão ambiental estadual ou do Distrito Federal o licenciamento ambiental dos empreendimentos e atividades: I - localizados ou desenvolvidos em mais de um Município ou em unidades de conservação de domínio estadual ou do Distrito Federal; II - localizados ou desenvolvidos nas florestas e demais formas de vegetação natural de preservação permanente relacionadas no artigo 2º da Lei nº 4.771, de 15 de setembro de 1965, e em todas as que assim forem consideradas por normas federais, estaduais ou municipais; III - cujos impactos ambientais diretos ultrapassem os limites territoriais de um ou mais Municípios; IV - delegados pela União aos Estados ou ao Distrito Federal, por instrumento legal ou convênio. Parágrafo único. O órgão ambiental estadual ou do Distrito Federal fará o licenciamento de que trata este artigo após considerar o exame técnico procedido pelos órgãos ambientais dos Municípios em que se localizar a atividade ou empreendimento, bem como, quando couber, o parecer dos demais órgãos competentes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, envolvidos no procedimento de licenciamento. Art. 6º - Compete ao órgão ambiental municipal, ouvidos os órgãos competentes da União, dos Estados e do Distrito Federal, quando couber, o licenciamento ambiental de empreendimentos e atividades de impacto ambiental local e daquelas que lhe forem delegadas pelo Estado por instrumento legal ou convênio." O Estado de São Paulo alega que o artigo 6º da Lei nº 6.938/81 atribui aos órgãos estaduais o controle e fiscalização de atividades passíveis de provocar degradação ambiental. Eis o dispositivo: Art 6º - Os órgãos e entidades da União, dos Estados, do Distrito Federal, dos Territórios e dos Municípios, bem como as fundações instituídas pelo Poder Público, responsáveis pela proteção e melhoria da qualidade ambiental, constituirão o Sistema Nacional do Meio Ambiente - SISNAMA, assim estruturado: I - órgão superior: o Conselho de Governo, com a função de assessorar o Presidente da República na formulação da política nacional e nas diretrizes governamentais para o meio ambiente e os recursos ambientais; (Redação dada pela Lei nº 8.028, de 1990) II - órgão consultivo e deliberativo: o Conselho Nacional do Meio Ambiente (CONAMA), com a finalidade de assessorar, estudar e propor ao Conselho de Governo, diretrizes de políticas governamentais para o meio ambiente e os recursos naturais e deliberar, no âmbito de sua competência, sobre normas e padrões compatíveis com o meio ambiente ecologicamente equilibrado e essencial à sadia qualidade de vida; (Redação dada pela Lei nº 8.028, de 1990) III - órgão central: a Secretaria do Meio Ambiente da Presidência da República, com a finalidade de planejar, coordenar, supervisionar e controlar, como órgão federal, a política nacional e as diretrizes governamentais fixadas para o meio ambiente; (Redação dada pela Lei nº 8.028, de 1990) IV - órgão executor: o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis, com a finalidade de executar e fazer executar, como órgão federal, a política e diretrizes governamentais fixadas para o meio ambiente; (Redação dada pela Lei nº 8.028, de 1990) V - Órgãos Seccionais: os órgãos ou entidades estaduais responsáveis pela execução de programas, projetos e pelo controle e fiscalização de atividades capazes de provocar a degradação ambiental; (Redação dada pela Lei nº 7.804, de 1989) VI - Órgãos Locais: os órgãos ou entidades municipais, responsáveis pelo controle e fiscalização dessas atividades, nas suas respectivas jurisdições; (Incluído pela Lei nº 7.804, de 1989) § 1º Os Estados, na esfera de suas competências e nas áreas de sua jurisdição, elaboração normas supletivas e complementares e padrões relacionados com o meio ambiente, observados os que forem estabelecidos pelo CONAMA. ... À luz do regramento constitucional e infralegal anteriormente citado, a leitura dessa norma revela que é equivocada a interpretação que o ente público dela fez, in casu. A poluição e os malefícios provocados pelas queimadas se espraiam para muito além de seu território por meio das correntes de ar, das chuvas e dos rios, além do impacto que têm sobre as espécies ameaçadas e migratórias, cuja proteção, como visto, cabe à União. A propósito, destaco: ADMINISTRATIVO E PROCESSUAL CIVIL. AGRAVO INTERNO NO RECURSO ESPECIAL. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. QUEIMA DA PALHA DA CANA DE AÇÚCAR. DANO QUE ATINGE MAIS DE UM ESTADO DA FEDERAÇÃO. LEGITIMIDADE DO IBAMA PARA O LICENCIAMENTO AMBIENTAL. PRECEDENTES DO STJ. AGRAVO INTERNO IMPROVIDO. I. Agravo interno aviado contra decisão que julgara Recurso Especial interposto contra acórdão publicado na vigência do CPC/73. II. No acórdão objeto do Recurso Especial, o Tribunal de origem julgou parcialmente procedente o pedido em Ação Civil Pública, ajuizada pelo Ministério Público Federal, na qual requer seja reconhecida a atribuição do IBAMA para efetuar o licenciamento ambiental quando a atividade em análise tiver como objeto o licenciamento/autorização para a queima controlada da palha da cana-de-açúcar na área compreendida na Subseção Judiciária de Maringá/PR. Nos termos do acórdão recorrido, "o impacto ambiental causado pela queima da palha da cana-de-açúcar ultrapassa os limites territoriais do País ou de um ou mais Estados, assumindo contornos internacionais, dada a proximidade de região noroeste do Paraná com a fronteira do Paraguai. Parte dos municípios da Subseção Judiciária de Maringá está nas divisas (ou próximo delas) com os Estados de Mato Grosso do Sul e de São Paulo, havendo, ainda, a proximidade com a fronteira Brasil/Paraguai. Evidente que as queimadas lançam poluentes na atmosfera (incluindo o chamado 'carvãozinho' que é levado a grandes distâncias pelo vento), é cabido afirmar que, em sua extensão, o impacto ambiental da queimada dos canaviais no território dessa Subseção Judiciária atinge dimensão internacional". III. O acórdão recorrido está em conformidade com a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, que, apreciando caso similar ao dos autos, decidiu que, como o "efeito danoso dessa queima controlada abrange mais de um Estado, razão pela qual a competência para o licenciamento da atividade em questão é do Ibama. O art. 7º, XIV, 'e', da LC 140/2011 estabelece a competência da União para promover o licenciamento ambiental de empreendimentos e atividades localizados ou desenvolvidos em dois ou mais estados" (STJ, REsp 1.386.006/PR, Rel. Ministro HERMAN BENJAMIN, SEGUNDA TURMA, DJe de 26/08/2020). Nesse sentido: STJ, RMS 41.551/MA, Rel. Ministro BENEDITO GONÇALVES, PRIMEIRA TURMA, DJe de 27/05/2014; REsp 1.474.492/SP, Rel. Ministro HERMAN BENJAMIN, SEGUNDA TURMA, DJe de 07/08/2020. IV. Agravo interno improvido. (STJ - AgInt no REsp 1605705/PR, Rel. Ministra ASSUSETE MAGALHÃES, SEGUNDA TURMA, julgado em 07/06/2021, DJe 14/06/2021) AMBIENTAL. PROCESSUAL CIVIL. AUSÊNCIA DE OMISSÃO. ART. 535, II, DO CPC. EMBARGOS DE DECLARAÇÃO JULGADOS. RECURSO PREJUDICADO. COMPETÊNCIA DA UNIÃO. LICENÇA AMBIENTAL. ART. 7º, XIV, "E", DA LEI COMPLEMENTAR 140/2011. QUEIMA CONTROLADA DA PALHA DE CANA-DE-AÇÚCAR. ATIVIDADE DESENVOLVIDA. ÁREA MAIOR QUE A DO ESTADO DE SÃO PAULO. 1. Os Embargos de Declaração interpostos pelo Estado de São Paulo, antes pendentes de julgamento pelo Órgão Especial do TRF da 3ª Região, não foram providos. Dessa forma, com o julgamento dos Embargos de Declaração, toda a dúvida que afligia a recorrente sobre o decisum proferido pelo Tribunal Regional Federal foi dissipada e, consequentemente, houve a perda superveniente do objeto deste recurso no que se refere à violação dos arts. 475-I e 475-N do CPC. 2. O art. 7º, XIV, "e", da LC 140/2011 estabelece a competência da União para promover o licenciamento ambiental de empreendimentos e atividades localizados ou desenvolvidos em dois ou mais estados. RMS 41.551/MA, Rel. Ministro Benedito Gonçalves, Primeira Turma, DJe de 27/5/2014. 3. A Agência Paulista de Promoção de Investimentos e Competitividade Investe São Paulo, pessoa jurídica de direito público, criada com o escopo de alavancar a economia do estado, informa em seu site: "São Paulo possui usinas instaladas que processam matéria-prima proveniente de cerca de 5,2 milhões de hectares plantados com cana-de-açúcar. Essa área representa 54% dos quase 9,6 milhões de hectares com a cultura em todo o território brasileiro na safra 2011/2012. A área do canavial de São Paulo é equivalente aos territórios da Croácia ou da Costa Rica." 4. Não se sustenta, por óbvio, a alegação da recorrente de que o impacto da queima controlada da palha da cana-de-açúcar no Estado de São Paulo, cujo cultivo envolve 5,2 milhões de hectares, está restrito apenas ao seu território. Muito pelo contrário, a emissão de monóxido de carbono, de dióxido de enxofre, de dióxido de nitrogênio, alguns dos poluentes encontrados na queima da palha, afetam os estados vizinhos, causando efeitos prejudiciais às suas populações, principalmente doenças respiratórias. 5. O efeito danoso da queima controlada da palha da cana-de-açúcar abrange área muito maior que a do Estado de São Paulo, razão pela qual a competência para o licenciamento da atividade em apreço é do Ibama, nos termos do art. 7º, XIV, "e", da LC 140/2011. 6. Recurso Especial não provido. (STJ - REsp 1474492/SP, Rel. Ministro HERMAN BENJAMIN, SEGUNDA TURMA, julgado em 18/06/2015, DJe 07/08/2020) Por outro lado, no âmbito do Estado de São Paulo, foram editadas as Leis Estaduais 10.547/2000 e 11.241/02, que dispõem sobre a eliminação do uso do fogo como método despalhador e facilitador do corte da cana-de-açúcar, com previsão de eliminação de forma gradativa e imposição, inclusive, de um calendário de extinção. Para regulamentá-la editou-se o Decreto Estadual 45.869/01, pelo qual foram definidos procedimentos, proibições e regras de execução e medidas de precaução a serem obedecidas quando do emprego do fogo no corte da cana mediante requerimento detalhado do interessado junto ao órgão responsável. Foi anteriormente abordado no item V.2.1.2. que a Constituição Federal dispõe basicamente sobre dois tipos de competência: a administrativa e a legislativa. A primeira cabe ao Poder Executivo e diz respeito à faculdade para atuar com base no poder de polícia, ao passo que a segunda é do Poder Legislativo e se refere à aptidão para legislar a respeito dos temas de interesse da coletividade. A competência administrativa, como visto, é comum entre a União, Estados, Distrito Federal e Municípios (artigo 23, VI e VII, CF, LC 140/11). Quanto à legislativa, 0 que predomina é a da União para legislar sobre normas gerais e aos Estados, Municípios e ao Distrito Federal cabe suplementá-las, Assim, no caso dos autos, sob o aspecto da competência administrativa para o licenciamento, nos termos da legislação mencionada, quando implicar impactos ambientais que ultrapassem os limites territoriais estaduais, é da União por meio do IBAMA. Questão diversa é a competência legislativa do Estado de São Paulo para editar as aludidas leis que previram a proibição gradativa da despalha por meio do fogo. Considerados os termos do pedido da presente demanda, que, em resumo, pretende que o IBAMA fiscalize e dê cumprimento à legislação federal que exige o licenciamento das queimadas por meio do EIA/RIMA, entendo não haver incompatibilidade com a Lei paulista nº 11.241/02, na medida em que prevê supletivamente a extinção da prática no Estado, o que, como dito, não é objeto desta ação e harmoniza-se com a defesa ambiental. O fato de que também estabelece procedimento para a prática não afasta o regramento geral em apreço. Consequentemente, desnecessária a declaração de inconstitucionalidade incidental para o acolhimento da pretensão do Ministério Público Federal, que decorre da legislação federal e da demonstração da gravidade da degradação ambiental para justificar a competência da União. A propósito, colho julgado do STJ: AMBIENTAL. AGRAVO REGIMENTAL. QUEIMA DE PALHA DE CANA-DE-AÇÚCAR. PRÁTICA QUE CAUSA DANOS AO MEIO AMBIENTE. NECESSIDADE DE PRÉVIA AUTORIZAÇÃO DOS ÓRGÃOS PÚBLICOS COMPETENTES. 1. Discute-se nos autos se a queimada de palha de cana-de-açúcar é medida que, em tese, pode causar danos ao meio ambiente e se se trata de prática possível a luz do ordenamento jurídico vigente. 2. Em decisão monocrática, foi dado provimento ao recurso especial do Ministério Público, interposto com fundamento nas alíneas "a" e "c" do permissivo constitucional, tendo sido (i) fixado que a queimada de palhas de cana-de-açúcar causa danos ao meio ambiente e, por isso, só pode ser realizada com a chancela do Poder Público e (ii) determinada a remessa dos autos à origem para que lá seja apreciada a causa com base nos elementos fixados na jurisprudência do STJ, vale dizer, levando-se em consideração a existência ou não de autorização do Poder Público, na forma do art. 27, p. ún., do Código Florestal. 3. No regimental, sustenta a agravante (i) a impossibilidade de julgamento da lide pelo art. 557 do Código de Processo Civil - CPC, (ii) a inexistência de prequestionamento dos dispositivos legais apontados no especial e a ausência de demonstração do dissídio jurisprudencial, (iii) a incidência da Súmula n. 7 desta Corte Superior, (iv) o não-cabimento de recurso especial, uma vez que a origem validou lei local em face da Constituição da República vigente (cabimento de recurso extraordinário), (v) a existência de lei local autorizando a prática da queimada. 4. Não assiste razão à parte agravante, sob qualquer perspectiva. 5. Em primeiro lugar, no âmbito da Segunda Turma desta Corte Superior, pacificou-se o entendimento segundo o qual a queimada de palha de cana-de-açúcar causa danos ao meio ambiente, motivo pelo qual sua realização fica na pendência de autorização dos órgãos ambientais competentes, sendo perfeitamente possível, portanto, o julgamento da lide com base no art. 557 do CPC. A título de exemplo, v. REsp 439.456/SP, Rel. Min. João Otávio de Noronha, Segunda Turma, DJU 26.3.2007. Não fosse isso bastante, a apreciação do agravo regimental pela Turma convalida eventual vício. 6. Em segundo lugar, a instância ordinária enfrentou a questão da queima de palha de cana-de-açúcar e suas consequências ambientais, motivo pelo qual não cabe falar em ausência de prequestionamento do art. 27 do Código Florestal - que trata justamente dessa temática no âmbito da legislação infraconstitucional federal. O enfrentamento da tese basta para o cumprimento do requisito constitucional. 7. Em terceiro lugar, não encontra óbice na Súmula n. 7 do Superior Tribunal de Justiça o provimento que assevera, em tese, quais são o entendimento da Corte Superior a respeito do tema e qual a norma aplicável à espécie, remetendo os autos à origem para que lá sejam reanalisados os fatos e as provas dos autos em cotejo com a jurisprudência do STJ. Inclusive, quando do julgamento monocrático, ficou asseverado que "não há menção, no acórdão recorrido, acerca da (in)existência de autorização ambiental própria no caso em comento, sendo vedado a esta Corte Superior a análise do conjunto fático-probatório (incidência da Súmula n. 7)". Por isso, foi determinada a remessa dos autos à origem para que lá venha a ser apreciada a causa levando-se em consideração a existência ou não de autorização do Poder Público, na forma do art. 27, p. ún., do Código Florestal. 8. Em quarto lugar, a origem, em momento algum, enfrentou a controvérsia dos autos confrontando a validade de lei local com a Constituição da República. Ao contrário, discutindo dispositivos de leis estaduais, chegou à conclusão de que a queima de palha de cana-de-açúcar era viável e não causava danos ao meio ambiente. Não há que se falar, portanto, em cabimento de recurso extraordinário, no lugar de recurso especial. 9. Em quinto e último lugar, a existência de lei estadual que prevê, genericamente, o uso do fogo como método despalhador desde que atendidos certos requisitos não é suficiente para afastar a exigência prevista em legislação federal, que é a existência específica de autorização dos órgãos competentes. Não custa lembrar que a licença ambiental está inserida na esfera de competência do Executivo, e não do Legislativo (sob pena de violação ao princípio da separação de Poderes). 10. Agravo regimental não provido (AgRg no RECURSO ESPECIAL Nº 1.038.813 – SP; Rel. Min. Humberto Martins; j. 20/08/2009) Ressalte-se, por fim, que, considerado o entendimento de que a legislação federal que impõe a realização do EIA/RIMA deve ser observada, é impertinente a argumentação dos réus no sentido de que a legislação paulista foi bem elaborada, que o procedimento de autorização é bem elaborado e seu cumprimento fiscalizado. V.3. Questões Sociais e Econômicas Relativamente aos trabalhadores rurais que supostamente ficariam desocupados, deve-se ressaltar, primeiramente, que esse é um problema de ordem social. Não obstante, o argumento não se sustenta. Não houve imposição de mecanização total e a colheita sem despalha pelo fogo não está proibida. Em verdade, a resistência ao corte da cana crua é muito maior dos produtores, porque o rendimento é menor e, assim, há necessidade de mais rurícolas. Ademais, é consensual o reconhecimento de que essa atividade é degradante, além de altamente perniciosa à saúde dos trabalhadores. Sua manutenção inclusive tem rendido ao Brasil acusações de organismos internacionais. A questão é posta, outrossim, de forma distorcida, como se fora preocupação com o desemprego, em lugar de o Estado optar por requalificar os trabalhadores para outras atividades, até mesmo para trabalhar na indústria da cana. A alegação de que o corte da cana crua expõe os trabalhadores a incêndios acidentais é pouco plausível. Primeiramente, porque a queima controlada também é realizada pelos rurícolas e com exposição a idêntico risco. Pior, sujeita-os diuturnamente à inalação da fuligem. Ademais, é mera especulação sem amparo em dados estatísticos concretos a respeito. A diminuição da arrecadação aventada pelos recorrentes é improvável, pois, como dito anteriormente, não há óbice à colheita e, portanto, não há razão para quebra da safra. Haverá, no máximo, aumento do custo de produção, com reflexo no preço. Como os impostos incidem sobre ele, a tendência é de que, em verdade, a arrecadação aumente. Ainda que assim não fosse, a alegação é ingênua, pois desconsidera os gastos suportados pela sociedade com a assistência médica e previdenciária decorrente dos efeitos deletérios da queima, os quais provavelmente sejam superiores à eventual redução da receita tributária. Por fim, conforme explicitado anteriormente, entre princípios constitucionais gerais da atividade econômica estão o de desenvolvimento sustentável por meio da defesa dos recursos naturais e do meio ambiente (artigo 170, inciso VI) e, ainda mais eloquentes, os do caput do artigo 170, no sentido de que se assegure a todos existência digna e de valorização do trabalho humano. É o quanto basta para expor a fragilidade e a inaptidão dos argumentos utilizados. V. 4. Jurisprudência do TRF3 Primeiramente, merece citação o voto de relatoria da então Presidente desta corte, Desembargadora Federal Marli Ferreira, na SuExSe nº 2008.03.00.006427-8, no qual se pretendia a suspensão de decisão judicial que suspendera a queima da palha da cana no ano de 2008, verbis: 'a discussão subjacente ao presente pedido de suspensão de segurança refere-se ao angustiante problema da despalha da cana mediante o método das queimadas. O que se observa no Estado de São Paulo é uma corrida desenfreada pelo lucro fácil do canavial em que se transformou esta unidade federativa, com a complacência tácita dos órgãos fiscalizadores. (...) 'veja-se que na verdade a preocupação do Ministério Público na promoção da ação civil pública originária é de todo procedente. Isto porque as promessas dos governantes na eliminação da queima da palha de cana de há muito se venceu, sem que os produtores de açúcar e álcool se desse ao trabalho de mitigar o sofrimento enfrentado pelos munícipes atingidos pelas emissões lançadas na atmosfera.' (...) 'O certo é que a Administração Pública, talvez pressionada pela força dos produtores de cana cede a cada passo, diferindo para tempos cada vez mais remotos o término dessa prática destrutiva. Observe-se que a Lei nº 10.547, de 02.05.2000, determinou que o emprego do fogo como método despalhador e facilitador do corte de cana-de-açúcar em áreas passíveis de mecanização da colheita seria eliminado de forma gradativa, não podendo ser inferior a um quanto de área mecanizável de cada unidade agro industrial, a cada período de cinco anos, contados da vigência da lei. Portanto, o prazo total seria de 20 anos, com término para 2020. Fez mais essa lei. Afirmou que em áreas com declividades maiores que 12%, não será considerada mecanizável a colheita. Portanto, a conclusão é que não se deve e não se pode plantar ou mesmo admitir a plantação de cana nessas áreas, porque simplesmente não há maquinário que possa ser empregado para a colheita da cana. Em 2002, sobreveio nova legislação - Lei nº 11.241 - que avançou o término desse processo para 2031. Induvidosamente, as razões desse retrocesso são inexplicáveis, como igualmente o são a não demonstração de cumprimento dos artigos 9º e 10º dessa mesma lei, e ainda os arts. 1º, 2º, 3º e parágrafo único das disposições transitórias desse último regramento legal.' (...) 'O certo é que o objeto de grave lesão é a saúde pública, em especial dos habitantes dos municípios atingidos pelos efeitos das queimadas, ainda que o i. requerente tenha afirmado que o MM. Juiz prolator da decisão vergastada apoiou-se em apenas dois valores: meio ambiente e saúde humana, e assim determinou a paralisação imediata das queimadas, causando lesão à ordem pública e a valores econômicos e sociais que superam o impacto ao meio ambiente e à saúde humana. Assim não entendo, porém. A saúde representa a continuidade da vida, que por seu turno busca sua razão de relevância e fundamento maior na dignidade da pessoa humana. Os munícipes e os moradores da região atingida estão sendo desconsiderados nessa corrida contra o tempo, e a favor de lucro contado, quer a favor do Governo (em decorrência dos tributos que alimentam sua receita), que em relação aos cultivadores de cana. ... A saúde e o meio ambiente valem muito mais que qualquer outro valor, porque preservam a vida, que ao lado da liberdade (tomadas em acepção amplíssima) são os bens maiores para o ser humano. ... Nosso povo merece e exige respeito à saúde e ao meio ambiente, binômio insuperável na régua de valor com a qual o jurista deve medir interesses e direitos.' Cabe, ainda, destacar julgados desta corte em casos idênticos, no mesmo sentido do entendimento ora explicitado: ApReeNec - APELAÇÃO/REMESSA NECESSÁRIA - 1625987 / SP Relator(a) JUIZA CONVOCADA LEILA PAIVA Órgão Julgador SEXTA TURMA Data do Julgamento 21/07/2016 Data da Publicação/Fonte e-DJF3 Judicial 1 DATA:02/08/2016 Ementa AÇÃO CIVIL PÚBLICA. APELAÇÕES E REEXAME NECESSÁRIO. LEGITIMIDADE ATIVA DO MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL. LEGITIMIDADE PASSIVA DO IBAMA. COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA FEDERAL. CONTROLE INCIDENTAL DE CONSTITUCIONALIDADE SOBRE LEGISLAÇÃO ESTADUAL. POSSIBILIDADE. MÉRITO. QUEIMA CONTROLADA DA PALHA DE CANA DE AÇÚCAR. LICENÇA AMBIENTAL PELO ÓRGÃO ESTADUAL. ATIVIDADE DOTADA DE RISCOS À SAÚDE E AO MEIO AMBIENTE. PRÉVIA ELABORAÇÃO DE EIA/RIMA. NECESSIDADE. RESPEITO À NORMATIZAÇÃO IMPOSTA PELA CONSTITUIÇÃO FEDERAL E POLÍTICA NACIONAL DO MEIO AMBIENTE. ATRIBUIÇÃO SUPLETIVA DO IBAMA. RECONHECIMENTO. PRECEDENTES DA E. SEXTA TURMA. - Caso de não conhecimento da apelação da CETESB, eis que interposta na pendência de embargos declaratórios, não sendo reiterada após o correspondente julgamento, bem como porque o seu preparo foi recolhido em desconformidade à Lei 9.289/96. Precedentes. - A apelação da União não foi recebida pelo MM. Juízo a quo, decisão não combatida pelo recurso próprio, tendo sido, dessa forma, alcançada pela preclusão, razão pela qual também não se conhecesse desse recurso. - O autor e ora recorrido Ministério Público Federal, órgão da União, é legitimado ativo para a propositura de ação civil pública (arts. 6º, VII, "b" e 39, II e III da LC 75/93 e art. 5º, I, da Lei 7.347/85), o que se mostra determinante para a fixação da competência da Justiça Federal neste caso, aliada à presença do IBAMA no polo passivo, nos termos do art. 109, I, da Constituição Federal. Jurisprudência do C. STF. - O IBAMA detém atribuição supletiva em matéria de licenciamento ambiental, nos termos da Política Nacional do Meio Ambiente (Lei 6.938/81), razão pela qual, se lhe é imputada omissão ou desídia em relação às licenças concedidas pelos Estados-membros, exsurge a respectiva legitimidade passiva ad causam para figurar nas ações em que essas condutas são discutidas. - A ação civil pública constitui instrumento processual adequado para que veiculadas as pretensões ora deduzidas, pois, a apontada inconstitucionalidade das leis estaduais, na parte em que dispõem sobre a queima da palha de cana-de-açúcar, não consubstanciou objeto principal do feito - o que, decerto, não seria possível, sob pena de usurpação da competência exclusiva do C. STF - mas, isso sim, pleito incidental, sob forma de controle difuso de constitucionalidade "incidenter tantum", perfeitamente cabível no âmbito das ações desta espécie. Entendimento pacificado no C. STF. - Mérito: verifica-se que a questão ora debatida, com todas as suas minúcias, já foi objeto de diversas análises e decisões nesta E. Sexta Turma, sem que houvesse substanciais divergências quanto aos desfechos anunciados. - A proteção do meio ambiente foi erigida pela Constituição da República como condicionante à atividade econômica e à função social da propriedade, todos tendo direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações, sendo que as condutas e atividades consideradas lesivas sujeitarão os infratores, pessoas físicas ou jurídicas, a sanções penais e administrativas, independentemente da obrigação de reparar os danos causados (arts. 23, VI, 186, II e 225). - Incumbe à Administração exigir, na forma da lei, para instalação de obra ou atividade potencialmente causadora de significativa degradação do meio ambiente (ou seja, como condicionante ao licenciamento), estudo prévio de impacto ambiental, a que se dará publicidade, bem como controlar a produção, a comercialização e o emprego de técnicas, métodos e substâncias que comportem risco para a vida, a qualidade de vida e o meio ambiente (CFR, art. 225, § 1º, IV e V). - A competência direta para o licenciamento de atividades cujo desenvolvimento se mostra apto a propiciar riscos ao meio ambiente é, inicialmente, do órgão estadual responsável, cabendo ao IBAMA a possibilidade de intervenção supletiva, nos casos de inércia ou negligência do Estado-membro (art. 10, § 3º, da Lei 6.938/81 na redação anterior à LC 140/2011). - Quanto ao uso do fogo nas florestas e demais formas de vegetação, observa-se que o art. 27 da Lei 4.771/65 (Código Florestal vigente na época do ajuizamento) proibia tal prática, mas de forma relativa, pois o respectivo parágrafo único preconizava que se peculiaridades locais ou regionais a justificassem em métodos agropastoris ou florestais, a permissão poderia ser concedida pelo poder Público, desde que devidamente delimitadas as áreas e estabelecidas normas de precaução. - O Decreto 2.661/98 regulamentava o supracitado art. 27 do antigo Código Florestal, determinando que o emprego do fogo, como método "despalhador" e facilitador do corte de cana-de-açúcar em áreas passíveis de mecanização da colheita, seria gradativamente eliminado.. - A Resolução CONAMA 237/97, editada nos parâmetros do poder normativo conferido ao Órgão pela Lei 6.938/81, além de ratificar a competência supletiva do IBAMA para o licenciamento de atividades na hipótese em que os impactos ambientais dela decorrentes ultrapassarem os limites da localidade (art. 4º, III, § 2º), definiu, no respectivo Anexo "1", as atividades ou empreendimentos sujeitos a licenciamento ambiental, não englobando a prática da queima da palha de cana-de-açúcar. - No Estado de São Paulo, foram editadas as Leis Estaduais 10.547/2000 e 11.241/02 que, dentre outras disposições, proibiram o emprego do fogo nas florestas e demais formas de vegetação, excetuadas as atividades agrícolas, pastoris ou florestais, dentre as quais se insere a queima controlada da palha de cana-de-açúcar, técnica que, por outro lado, deveria ser eliminada de forma gradativa, impondo-se, inclusive, um calendário de extinção. - Regulamentando essa legislação Paulista, veio à baila o Decreto Estadual 45.869/01, pelo qual definidos procedimentos, proibições e regras de execução e medidas de precaução a serem obedecidas quando do emprego do fogo no corte de açúcar, a serem estipuladas mediante requerimento detalhado do interessado junto ao órgão responsável. - Ocorre que a prática da queima da palha de cana de açúcar, se procedida sem as necessárias cautelas, pode acarretar ou incrementar reais e graves riscos à saúde humana e ao meio ambiente, pelo lançamento de partículas de fuligem (material particulado) na atmosfera, composta também por gases tóxicos que, entre o mais, agravam os efeitos decorrentes do efeito estufa e induzem doenças respiratórias, havendo estudos que, inclusive, apontam consequências mais gravosas, como a potencialização de doenças cancerígenas. Jurisprudência do C. STJ e do E. STF. - Mesmo que não houvesse prova cabal desses riscos ou danos, o princípio da prevenção, extraível da proteção integral que constitucionalmente recai sobre o meio ambiente (art. 225 CFR), impõe a realização de EIA/RIMA como condicionante ao licenciamento de todas atividades que potencialmente venham a acarretar danos ambientais, ainda que a constatação dessa lesividade advenha de probabilidade e não seja certa a sua ocorrência. - Tratando-se de atividade com significante impacto ambiental, com potencial de extrapolar os limites da localidade em que praticada, se mostra correta e afinada com os ditames da Carta Magna e da Política Nacional do Meio Ambiente a condenação da CETESB e do Estado de São Paulo para que se abstenham a conceder novas licenças de queima controlada da palha de cana-de-açúcar na área compreendida pela Subseção Judiciária de Araraquara, sem prévio EIA/RIMA. Nessa esteira, impõe-se reconhecer, na mesma medida, o acerto da condenação do IBAMA para que fiscalize a exigência de licenciamento e prévio EIA/RIMA para as atividades da espécie desenvolvidas no território da referida Subseção. - Os danos morais difusos, segundo a jurisprudência da E. Corte Superior de Justiça, têm como pressupostos (1) a conduta antijurídica (ação ou omissão) do agente, pessoa física ou jurídica; (2) a ofensa a interesses jurídicos fundamentais, de natureza extrapatrimonial, titularizados por uma determinada coletividade (comunidade, grupo, categoria ou classe de pessoas); (3) a intolerabilidade da ilicitude, diante da realidade apreendida e da sua repercussão social; (4) o nexo causal observado entre a conduta e o dano correspondente à violação do interesse coletivo ("lato sensu"). - Patente a conduta antijurídica dos órgãos públicos que, atrelados às correspondentes atribuições, deveriam zelar pela preservação do meio ambiente e, especificamente, exigirem a elaboração do EIA/RIMA para que, eventualmente, fosse concedida licença para a atividade de queima da cana, sendo que a violação a esses deveres configurou afronta direta ao art. 225, caput, § 1º, incisos IV e V, da Constituição da República. - Conduta que, no mais, consubstanciou ofensa a interesses jurídicos fundamentais, de natureza extrapatrimonial, titularizados por uma coletividade latu sensu, que inegavelmente foram expostas a todos os malefícios que a atividade pode acarretar, tanto os potenciais como os já comprovados. Descabe falar-se em tolerabilidade desse comportamento em razão do que dispõe a legislação estadual, eis que a Carta Magna não deixa dúvidas sobre a necessidade de licenciamento para as atividades da espécie, bem como a obrigação de efetivo controle sobre técnicas, métodos e substâncias que comportem risco para a vida, a qualidade de vida e o meio ambiente. - Precedentes análogos desta E. Sexta Turma citados: AC 0000264-06.2011.4.03.6113, Rel. Des. Fed. Consuelo Yoshida, j. em 28.04.2016; AC 0002726-51.2011.4.03.6107, Rel. Des. Fed. Johonsom Di Salvo, j. em 18.02.2016; AI 0023504-59.2013.4.03.0000, Rel. Des. Fed. Johonsom Di Salvo, j. em 13.08.2015; AI 0024973-43.2013.4.03.0000; Rel. Des. Fed. Johonsom Di Salvo, j. em 13.08.2015. - Apelos da CETESB e da União não conhecidos, bem como desprovidos o reexame necessário e as demais apelações. Ap - APELAÇÃO CÍVEL - 1754890 / SP Relator(a) DESEMBARGADORA FEDERAL CONSUELO YOSHIDA Órgão Julgador SEXTA TURMA Data do Julgamento 28/04/2016 Data da Publicação/Fonte e-DJF3 Judicial 1 DATA:06/05/2016 Ementa PROCESSUAL CIVIL. CONSTITUCIONAL. AMBIENTAL. AGRAVO RETIDO REITERAÇÃO INOCORRÊNCIA. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. PRESENÇA DO MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL E DO IBAMA. COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA FEDERAL. CONTROLE DE CONSTITUCIONALIDADE INCIDENTER TANTUM EM AÇÃO CIVIL PÚBLICA. POSSIBILIDADE. QUEIMA CONTROLADA DE PALHA DE CANA-DE-AÇÚCAR. NECESSIDADE DE PRÉVIO ESTUDO DE IMPACTO AMBIENTAL PARA CONCESSÃO DE LICENÇA. APLICAÇÃO DA MULTA DIÁRIA PARA O CASO DE DESCUMPRIMENTO DA SENTENÇA. POSSIBILIDADE. INDENIZAÇÃO AO FUNDO FEDERAL DE DIREITOS DIFUSOS POR DANOS MORAIS COLETIVOS. CABIMENTO. FIXAÇÃO DE HONORÁRIOS ADVOCATÍCIOS. IMPOSSIBILIDADE. 1. Não conhecido o agravo retido interposto pelo Sindicato da Indústria da Fabricação do Álcool do Estado de São Paulo (SIAFESP), Sindicato da Indústria do Açúcar no Estado de São Paulo (SIAESP) e pela União da Agroindústria Canavieira do Estado de São Paulo (ÚNICA), tendo em vista a homologação do pedido de desistência do recurso de apelação interposto pelas partes, que deixaram, consequentemente, de reiterá-lo expressamente nas razões ou na resposta de apelação, conforme disposição do art. 523, § 1º do CPC/73. 2. A participação do Ministério Público Federal no polo ativo, cuja legitimidade exsurge dos arts. 6º, VII, "b" e 39, II e III, da Lei Complementar n.º 75/93, foi o fator determinante para a fixação da competência da Justiça Federal para a apreciação da causa, nos termos do art. 109, I, da Constituição. 3. Também não prospera a alegação de ilegitimidade passiva ad causam do IBAMA, órgão executor da Política Nacional do Meio Ambiente que promove a preservação, conservação e uso racional, fiscalização, controle e fomento dos recursos ambientais, nos termos do disposto na Lei n.º 6.938/81, regulamentada pela Resolução CONAMA n.º 237/97, cujo art. 4º, III, prescreve competir ao IBAMA o licenciamento ambiental de empreendimentos e atividades com significativo impacto ambiental de âmbito nacional ou regional, cujos impactos ambientais diretos ultrapassem os limites territoriais do País ou de um ou mais Estados. 4. Como se sabe, a queima da palha de cana-de-açúcar não pode ser considerada uma atividade com impacto exclusivamente local, haja vista as inegáveis repercussões, sobretudo no âmbito regional. 5. É possível a análise da inconstitucionalidade das leis estaduais ora discutidas, visto que, in casu, se opera o controle difuso ou incidenter tantum de constitucionalidade, porquanto o pedido principal objetiva que a CETESB e o Estado de São Paulo abstenham-se de conceder novas licenças e autorizações ambientais para a queima controlada da palha de cana-de-açúcar da área compreendida pela Subseção de Franca, decretando-se a nulidade das já expedias. 6. O art. 27, da Lei n.º 4.771/1965, proibia, por regra, a queima de vegetação, a permitindo apenas excepcionalmente, de acordo com as peculiaridades regionais, após prévio licenciamento do ente ambiental, o que foi regulamentado pelo Decreto n.º 2.661/1998, ainda em vigor, que definiu a queima controlada como sendo o emprego do fogo como fator de produção e manejo em atividades agropastoris ou florestais, e para fins de pesquisa científica e tecnológica, em áreas com limites físicos previamente definidos (art. 2º, parágrafo único). 7. De acordo com a Lei n.º 12.651/2012, é proibido o uso de fogo na vegetação, exceto nas seguintes situações (...) em locais ou regiões cujas peculiaridades justifiquem o emprego do fogo em práticas agropastoris ou florestais, mediante prévia aprovação do órgão estadual ambiental competente do Sisnama, para cada imóvel rural ou de forma regionalizada, que estabelecerá os critérios de monitoramento e controle (art. 38, I). 8. Embora seja indubitável que a atividade de queima da vegetação cause significativa degradação do meio ambiente, razão pela qual, em regra, deve ser proibida, a própria lei excepciona casos em que as peculiaridades regionais justifiquem o emprego do fogo para práticas agropastoris, mediante prévia aprovação do órgão estadual, para hipóteses individualizadas, por prazo certo e sem prejuízo da eventual responsabilização civil do proprietário por eventuais danos causados ao meio ambiente e a terceiros, em homenagem, inclusive, ao princípio do poluidor-pagador. 9. Mostra-se, assim, adequada a r. sentença que determinou à CETESB e ao Estado de São Paulo, que se abstenham de conceder novas licenças ambientais, tendo como objeto autorização para a queima controlada da palha de cana-de-açúcar na área compreendida pela Subseção de Franca, decretando nulas todas as licenças e autorizações já expedidas e determinando a paralisação das atividades de queima, em razão da ausência de estudo de impacto ambiental prévio, ausência de licenciamento com base nas normas válidas e inexistência de estudo prévio de levantamento de fauna e propostas concretas de sua proteção e retirada das áreas pretendidas para a queima. 10. Da mesma forma, haja vista a competência supletiva do IBAMA, também agiu corretamente o r. Juízo de origem ao determinar que a autarquia ambiental assuma o exercício imediato de sua competência, ante a omissão da CETESB e do Estado de São Paulo em exigir licenciamento específico e de prévio estudo de impacto ambiental ou estudo prévio de levantamento de fauna e propostas concretas de sua proteção e retirada das áreas pretendidas para a queima, bem como que, em havendo pedido de autorização para a prática da referida atividade, que o IBAMA sempre exija EIA/RIMA como condição para a autorização e realize o cadastramento de todas as propriedades rurais ocupadas com a cultura canavieira, verificando se estão sendo cumpridas as prescrições deferidas pelo Juízo, podendo, para tanto, celebrar convênio com a Polícia Ambiental da região, determinando desde já que a CETESB lhe forneça todos os arquivos desse cadastramento. 11. No que concerne à específica alegação de que o cadastramento de propriedades rurais criaria obrigação ao IBAMA sem previsão legal, como bem justificou o r. Juízo a quo, o pedido de que o IBAMA cadastre as propriedades canavieiras para verificar se estão cumprindo o comando desta sentença não foge ao âmbito legal. É corolário da atividade fiscalizadora saber quem está sendo fiscalizado. Por isso, o próprio cumprimento das demais determinações desta sentença somente será levado a cabo se o IBAMA estiver de posse de relação de todas as produções de cana desta subseção judiciária e, para tanto, o cadastro é essencial. 12. Igualmente correta a determinação de aplicação da multa diária para o caso de descumprimento da sentença, cuja função é exatamente compelir as partes ao cumprimento das obrigações que lhe foram impostas. 13. Para o E. STJ, o dano moral coletivo atinge direitos de personalidade de um grupo massificado, sendo despicienda a demonstração de que a coletividade sinta a mesma dor ou repulsa de um indivíduo isolado. Assim, o dano moral extrapatrimonial deve ser averiguado de acordo com as características próprias aos interesses difusos e coletivos, distanciando-se quanto aos caracteres próprios das pessoas físicas que compõem determinada coletividade ou grupo determinado ou indeterminado de pessoas, sem olvidar que é a confluência dos valores individuais que dão singularidade ao valor coletivo, decorrendo a possibilidade de indenização em virtude de dano moral coletivo causado ao meio ambiente, no âmbito de ação civil pública, também de expressa previsão na Lei n.º 7.347/85 (art. 1º, I e art. 3º). 14. Para a caracterização da responsabilidade objetiva das pessoas jurídicas de direito público e das de direito privado prestadoras de serviços públicos ensejadora da indenização por dano moral é essencial a ocorrência de três fatores: o dano, a ação do agente e o nexo causal. 15. No presente caso, existe demonstração inequívoca da alegada ofensa à coletividade, sendo possível concluir que das condutas praticadas, quais sejam, das expedições de licenças e autorizações para a queima controlada da palha de cana-de-açúcar sem o necessário EIA/RIMA, resultou efetivo prejuízo de ordem moral à coletividade, configurada conduta capaz de ensejar indenização a título de danos morais. 16. Diante das condições das partes e da repercussão da ofensa em comento, tanto para os seres humanos, quanto para a flora e fauna, deve ser mantido o montante indenizatório fixado em R$ 923.408,00, valor este a ser revertido ao Fundo Federal de Direitos Difusos e que se mostra adequado à finalidade de reprimir a prática da conduta danosa, não caracterizando valor irrisório, nem abusivo. 17. Não há que se falar em condenação ao pagamento de honorários advocatícios em sede de ação civil pública, tendo em vista o que dispõe o art. 18, da Lei n.º 7.347/93, razão pela qual deve ser acolhido pedido subsidiário formulado pelo Estado de São Paulo para que seja afastada a sua condenação na referida verba. Haja a vista a remessa oficial, também deve ser afastada a condenação do IBAMA ao pagamento de honorários advocatícios. Contudo, à mingua de impugnação da CETESB, do SIAFESP, do SIAESP e da UNICA, deve ser mantida a condenação destes na verba honorária, conforme arbitrada na r. sentença, a ser igualmente repartida entre referidas partes. 18. Destaque-se, ainda, que, não obstante o pedido de desistência de apelação do SIAFESP, do SIAESP e da ÚNICA tenha sido homologado, nos termos do art. 52, caput, do CPC/73 o assistente atuará como auxiliar da parte principal, exercerá os mesmos poderes e sujeitar-se-á aos mesmos ônus processuais que o assistido. 19. Agravo retido não conhecido. Remessa oficial, tida por interposta, e à apelação do Estado de São Paulo, providas. Apelações da CETESB e do IBAMA improvidas. Ap - APELAÇÃO CÍVEL - 1880704 / SP Relator(a) DESEMBARGADOR FEDERAL JOHONSOM DI SALVO Órgão Julgador SEXTA TURMA Data do Julgamento 18/02/2016 Data da Publicação/Fonte e-DJF3 Judicial 1 DATA:02/03/2016 Ementa APELAÇÕES EM AÇÃO CIVIL PÚBLICA AMBIENTAL OBJETIVANDO A OBRIGATORIEDADE DE PRÉVIO EIA/RIMA PARA A CONCESSÃO DE LICENÇA DE QUEIMA CONTROLADA DE PALHA DE CANA-DE-AÇÚCAR. PRESENÇA DE DANO OBJETIVO E CONSUMADO. A QUEIMA DA PALHA DE CANAVIAIS CAUSA A DEGRADAÇÃO DO MEIO AMBIENTE, DA SAÚDE HUMANA E DE OUTRAS ATIVIDADES ECONÔMICAS. NECESSIDADE DE CAUTELAS DESTINADAS À MINORAÇÃO DOS SEUS MALEFÍCIOS. COMPETENCIA SUPLETIVA DO IBAMA SENTENÇA DE PARCIAL PROCEDENCIA MANTIDA. RECURSOS DESPROVIDOS. REMESSA OFICIAL TIDA POR INTERPOSTA DESPROVIDA. 1. Apelações contra a sentença de parcial procedência de ação civil pública ambiental interposta pelo Ministério Público Federal, objetivando a obrigatoriedade de realização de prévio Estudo de Impacto Ambiental e Relatório de Impacto ao Meio Ambiente (EIA/RIMA) para a concessão de licença de queima controlada de palha de cana-de-açúcar na área compreendida pela 7ª Subseção Judiciária do Estado de São Paulo. 2. O IBAMA possui competência supletiva, nos termos da Lei nº 6.938/81 e da Resolução CONAMA n.º 237/97, na medida em que a legislação estadual paulista acerca da matéria, com especial destaque às Leis Estaduais nº 10.547/2000 e nº 11.241/2002, não prevê a exigência de EIA/RIMA no procedimento de licenciamento de queima controlada de palha de cana-de-açúcar. 3. No exame do mérito, observa-se que esta Corte já se pronunciou em caso semelhante, assegurando que a falta de EIA/RIMA no procedimento de licenciamento de queima controlada em canavial, em princípio, não é inconstitucional. Também, que a legislação estadual paulista vem se desenvolvendo no sentido da gradativa eliminação do uso do fogo como método facilitador do corte da cana-de-açúcar, numa tentativa de contrabalancear os impactos ambientais e socioeconômicos que envolvem a questão (AI 00272884920104030000, Desembargador Federal CARLOS MUTA, TRF3 - TERCEIRA TURMA, e-DJF3 5/7/2012). 4. No entanto, não merecem descuido as graves consequências do uso do fogo nas plantações de cana-de-açúcar, prática que remonta à época das capitanias hereditárias e que de há muito já deveria ter sido abolida em favor da moderna tecnologia agrícola. Deveras, qualquer pessoa que percorra a extensa zona canavieira no interior do Estado de São Paulo, facilmente constata - pela visão e olfato - os danos infligidos ao meio ambiente e, também, à saúde humana, sendo as crianças e os idosos as maiores vítimas das moléstias respiratórias que lotam os serviços de pronto-socorro da região, causadas pela fumaça negra e particulada oriunda das queimadas. 5. Os supostos prejuízos econômicos dos produtores de cana - que, aliás, são questionáveis - não podem se sobrepor ao bem estar de um número indeterminável de paulistas e tampouco justificar o sacrifício de animais inocentes que habitam as áreas lindeiras dos canaviais e, menos ainda, o malefício ao meio ambiente como um todo. A liturgia devida ao "bezerro de ouro" há de ter limites, e a Constituição Federal não pode ser o escudo dos que defendem o lucro a qualquer custo. 6. Embora o artigo 225, § 1º, IV, da Constituição Federal, em tese, sirva para condicionar a exigência legal de prévio estudo de impacto ambiental, depreende-se da sua correta interpretação que essa exigência legal está intrinsecamente ligada à ...instalação de obra ou atividade potencialmente causadora de significativa degradação do meio ambiente. Evidentemente, a queima da palha da cana-de-açúcar causa a degradação do meio ambiente, da saúde humana e de outras atividades econômicas. Não se trata de mero risco, mas de dano objetivo e consumado. 7. Com efeito, têm-se duas situações diametralmente opostas. De um lado está a atividade que ostenta na sua essência a possibilidade de ofensa ao meio ambiente. Nesse caso, a exigência de prévio estudo de impacto ambiental deve ser condicionada à lei, porque a atividade não pode ser vista, a priori, como degradadora. Tome-se, por exemplo, a instalação de uma nova unidade portuária no estuário de Santos/SP, que pode ou não piorar a degradação local. De outro lado está atividade que ostenta na sua essência a efetiva ofensa ao meio ambiente, que é o que ocorre na queimada de canavial. Ou seja, cuida-se de atividade essencialmente degradadora, motivo pelo qual seu desempenho deve ser cercado de cautelas destinadas à minoração dos malefícios. Essa distinção deve ser feita à luz da dicção constitucional, sob a pena de se igualar atividades desiguais. 8. Nesse cenário não é absurdo que o Judiciário seja compelido a ditar - ainda que excepcionalmente - uma política pública de salvaguarda do meio ambiente, com manifesto reflexo na proteção do direito social à saúde, nos termos do artigo 6º da Constituição Federal. 9. Correta a condenação do Estado de São Paulo, por intermédio da Secretaria de Estado do Meio Ambiente, a abster-se de conceder novas licenças de queima controlada da palha de cana-de-açúcar, na área compreendida pela 7ª Subseção Judiciária do Estado de São Paulo, sem prévio EIA/RIMA. 10. Sem reparo, também, a condenação do IBAMA a fiscalizar a exigência de licenciamento e prévio EIA/RIMA. O dever fiscalizatório que emana da competência supletiva não implica em violação do pacto federativo e que a alegada falta de estrutura física não exime o IBAMA da obrigação imposta. 11. Legítimo o arbitramento de multa diária em caso de descumprimento da medida judicial, com fulcro no artigo 461, §4º, do Código de Processo Civil. Não se cuida de meio de coação, mas de garantia do cumprimento das obrigações impostas. Precedentes do C. STJ (REsp 1360305/RS, Rel. Ministra ELIANA CALMON, Segunda Turma, julgado em 28/5/2013, DJe 13/6/2013; AgRg no Ag 1247323/SC, Rel. Ministro HERMAN BENJAMIN, Segunda Turma, julgado em 8/6/2010, DJe 1/7/2010). 12. Recursos das defesas desprovidos. Remessa oficial tida por interposta desprovida. V.5. CONCLUSÃO Não há dúvida e a prova dos autos demonstra que a prática da queima da palha da cana-de-açúcar causa sérios danos ao meio ambiente, agravados por um quadro crítico de mudanças climáticas, com drásticos e atípicos períodos de seca. É também uma atividade nociva para a saúde e a vida, que agride seriamente os trabalhadores e os habitantes das cidades próximas e que sabidamente gera para o Estado altos custos com hospitalizações, tratamentos e afastamentos do trabalho suportados pela Previdência. A poluição e os danos provocados pela prática não se restringem aos locais em que há plantação, mas pode atingir áreas de reserva legal e matas ciliares, além de causar processos erosivos e carreamento de material sólido aos leitos dos rios. Assim, os malefícios se estendem por enorme área por meio das correntes de ar, das chuvas e dos rios, bem como acarreta impactos em espécies ameaçadas e migratórias, cuja proteção cabe à União. Deflui dos dispositivos constitucionais e da legislação federal que traça as regras gerais, por conseguinte, que o estudo prévio de impacto ambiental é imperativo legal e deve ser exigido pelo órgão competente, o IBAMA, como requerido pelo Ministério Público Federal. Descabido, em consequência, o pedido subsidiário do apelo do Estado de São Paulo de eficácia futura, após 5 a 8 anos do trânsito em julgado, porquanto implicaria negar eficácia à legislação vigente e perpetuar seu descumprimento. VI – MULTA POR DESCUMPRIMENTO O Estado de São Paulo questiona a multa cominatória aplicada. Alega que é descabida, abusiva e atenta contra o princípio da independência e harmonia dos poderes. O cabimento da aludida cominação é questão pacífica na jurisprudência. Veja-se o seguinte precedente do STJ DIREITO AMBIENTAL E PROCESSUAL CIVIL. AUSÊNCIA DE VIOLAÇÃO DO ART. 535 DO CPC. ÁREA DE PROTEÇÃO AMBIENTAL DA BALEIA FRANCA. ELABORAÇÃO DO PLANO DE MANEJO E GESTÃO. ASPECTO POSITIVO DO DEVER FUNDAMENTAL DE PROTEÇÃO. DETERMINAÇÃO PARA QUE A UNIÃO TOME PROVIDÊNCIAS NO ÂMBITO DE SUA COMPETÊNCIA. LEGITIMIDADE PASSIVA. ASTREINTES. POSSIBILIDADE DE COMINAÇÃO CONTRA A FAZENDA PÚBLICA. VALOR FIXADO. SÚMULA 7/STJ. (...) 6. É pacífico na jurisprudência desta Corte Superior a possibilidade do cabimento de cominação de multa diária - astreintes - contra a Fazenda Pública, como meio coercitivo para cumprimento de obrigação de fazer. 7. No caso concreto, a fixação das astreintes não se mostra desarrazoada à primeira vista, motivo pelo qual, não há como rever o entendimento da instância ordinária, em razão do óbice imposto pela Súmula 7/STJ. Recurso especial do IBAMA e o da UNIÃO improvidos. (STJ, REsp n.º 1.163.524/SC, Rel. Min. HUMBERTO MARTINS, SEGUNDA TURMA, j. 05/05/2011, DJe 12/05/2011) Quanto ao valor, foi fixado em dez mil reais e se mostra adequado para fazer frente à degradação ambiental provocada na região, aos malefícios à saúde da população e ao eventual descumprimento da legislação federal e à decisão judicial. VII. DANOS MORAIS A queima da palha da cana-de-acúcar sem a observância da legislação de regência, conforme anteriormente demonstrado, configura dano ecológico in re ipsa, o qual dispensa até mesmo prova técnica de lesividade específica e enseja a obrigação propter rem de restaurar a plenitude ambiental, indenizar pela degradação e igualmente terceiros afetados, sob a sistemática da responsabilidade civil objetiva. Significa, assim, que responde pelo dano não somente aquele que perpetra a ação lesiva como, de igual forma, quem contribui para sua manutenção. O descumprimento das regras exigíveis para a prática questionada e a omissão das entidades envolvidas, como visto, é antiga, a agravar cada vez mais os danos ambientais, a qualidade de vida e a saúde da população local já anteriormente mencionados. Daí decorre o dever de indenizar. A jurisprudência admite que seja cumulada com a reparação ou o cumprimento do dever de fazer ou não fazer - caso dos autos - a qual, no entanto, não é suficiente para a reparação do malefício provocado. Ademais, seus objetos são distintos. A primeira objetiva compensar danos indiretos, passados, futuros, morais coletivos e tem efeito pedagógico, ao passo que a segunda busca a correta observância da legislação sobre a realização de estudo de impacto ambiental. Nesse sentido, destaco o entendimento do STJ: ADMINISTRATIVO. AMBIENTAL . AÇÃO CIVIL PÚBLICA. DESMATAMENTO EM ÁREA DE PRESERVAÇÃO PERMANENTE (MATA CILIAR). DANOS CAUSADOS AO MEIO AMBIENTE. BIOMA DO CERRADO. ARTS. 4º, VII, E 14, § 1º, DA LEI 6.938/1981, E ART. 3º DA LEI 7.347/1985. PRINCÍPIOS DO POLUIDOR-PAGADOR E DA REPARAÇÃO INTEGRAL. REDUCTIO AD PRISTINUM STATUM. FUNÇÃO DE PREVENÇÃO ESPECIAL E GERAL DA RESPONSABILIDADE CIVIL. CUMULAÇÃO DE OBRIGAÇÃO DE FAZER (RESTAURAÇÃO DA ÁREA DEGRADADA) E DE PAGAR QUANTIA CERTA ( INDENIZAÇÃO ). POSSIBILIDADE. DANO AMBIENTAL REMANESCENTE OU REFLEXO. ART. 5º DA LEI DE INTRODUÇÃO ÀS NORMAS DO DIREITO BRASILEIRO. INTERPRETAÇÃO IN DUBIO PRO NATURA. 1. Cuidam os autos de Ação Civil Pública proposta com o fito de obter responsabilização por danos ambientais causados por desmatamento de vegetação nativa (Bioma do Cerrado) em Área de Preservação Permanente. O Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais considerou provado o dano ambiental e condenou o réu a repará-lo, porém julgou improcedente o pedido indenizatório cumulativo. 2. A legislação de amparo dos sujeitos vulneráveis e dos interesses difusos e coletivos deve ser interpretada da maneira que lhes seja mais favorável e melhor possa viabilizar, no plano da eficácia, a prestação jurisdicional e a ratio essendi da norma de fundo e processual. A hermenêutica jurídico- ambiental rege-se pelo princípio in dubio pro natura. 3. A jurisprudência do STJ está firmada no sentido de que, nas demandas ambientais, por força dos princípios do poluidor-pagador e da reparação in integrum, admite-se a condenação, simultânea e cumulativa, em obrigação de fazer, não fazer e indenizar. Assim, na interpretação do art. 3º da Lei 7.347/1985, a conjunção "ou" opera com valor aditivo, não introduz alternativa excludente. Precedentes da Primeira e Segunda Turmas do STJ. 4. A recusa de aplicação, ou aplicação truncada, pelo juiz, dos princípios do poluidor-pagador e da reparação in integrum arrisca projetar, moral e socialmente, a nociva impressão de que o ilícito ambiental compensa, daí a resposta administrativa e judicial não passar de aceitável e gerenciável "risco ou custo normal do negócio". Saem debilitados, assim, o caráter dissuasório, a força pedagógica e o objetivo profilático da responsabilidade civil ambiental (= prevenção geral e especial), verdadeiro estímulo para que outros, inspirados no exemplo de impunidade de fato, mesmo que não de direito, do degradador premiado, imitem ou repitam seu comportamento deletério. 5. Se o meio ambiente lesado for imediata e completamente restaurado ao seu estado original (reductio ad pristinum statum), não há falar, como regra, em indenização . Contudo, a possibilidade técnica e futura de restabelecimento in natura (= juízo prospectivo) nem sempre se mostra suficiente para, no terreno da responsabilidade civil, reverter ou recompor por inteiro as várias dimensões da degradação ambiental causada, mormente quanto ao chamado dano ecológico puro, caracterizado por afligir a Natureza em si mesma, como bem inapropriado ou inapropriável. Por isso, a simples restauração futura - mais ainda se a perder de vista - do recurso ou elemento natural prejudicado não exaure os deveres associados aos princípios do poluidor-pagador e da reparação in integrum. 6. A responsabilidade civil, se realmente aspira a adequadamente confrontar o caráter expansivo e difuso do dano ambiental, deve ser compreendida o mais amplamente possível, de modo que a condenação a recuperar a área prejudicada não exclua o dever de indenizar - juízos retrospectivo e prospectivo. A cumulação de obrigação de fazer, não fazer e pagar não configura bis in idem, tanto por serem distintos os fundamentos das prestações, como pelo fato de que eventual indenização não advém de lesão em si já restaurada, mas relaciona-se à degradação remanescente ou reflexa. 7. Na vasta e complexa categoria da degradação remanescente ou reflexa, incluem-se tanto a que temporalmente medeia a conduta infesta e o pleno restabelecimento ou recomposição da biota, vale dizer, a privação temporária da fruição do bem de uso comum do povo (= dano interino, intermediário, momentâneo, transitório ou de interregno), quanto o dano residual (= deterioração ambiental irreversível, que subsiste ou perdura, não obstante todos os esforços de restauração) e o dano moral coletivo. Também deve ser restituído ao patrimônio público o proveito econômico do agente com a atividade ou empreendimento degradador, a mais-valia ecológica que indevidamente auferiu (p. ex., madeira ou minério retirados ao arrepio da lei do imóvel degradado ou, ainda, o benefício com o uso ilícito da área para fim agrossilvopastoril, turístico, comercial). 8. Recurso Especial parcialmente provido para reconhecer a possibilidade, em tese, de cumulação da indenização pecuniária com as obrigações de fazer voltadas à recomposição in natura do bem lesado, devolvendo-se os autos ao Tribunal de origem para que verifique se, na hipótese, há dano indenizável e fixe eventual quantum debeatur. (STJ; REsp nº 1145083/MG; Rel. Min. Herman Benjamin; 2ª Turma; Dje 04/09/2012) Penso que o dano coletivo extrapatrimonial ou moral está presente. Pela própria definição constitucional (art. 225, CF), o meio ambiente é primacialmente coletivo e sua proteção, seja da flora ou da fauna, respeita seus aspectos material e espiritual e deve ser considerado no seu conjunto, como é a expressão do legislador: meio ambiente ecologicamente equilibrado e essencial à sadia qualidade de vida. De acordo com José Rubens Morato Leite (2003, p. 249): Não se aprecia subjetivamente a conduta do poluidor, mas a ocorrência do resultado prejudicial ao homem e a seu ambiente. A atividade poluente acaba sendo uma apropriação pelo poluidor dos direitos de outrem, pois na realidade a emissão é um confisco dos direitos de alguém em respirar ar puro, beber água saudável e viver com tranquilidade. O autor ainda ressalta: O dano extrapatrimonial está muito vinculado ao direito da personalidade, mas não restringido, pois este é conhecido tradicionalmente como atinente à pessoa física e no que concerne ao dano ambiental, abraçando uma caracterização mais abrangente e solidária, tratando-se, ao mesmo tempo, de um direito individual e um direito da coletividade. O direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado está ligado a um direito fundamental de todos e se reporta à qualidade de vida que se configura como valor imaterial da coletividade. (p. 266-267). Veja-se, a propósito, entendimento do STJ sobre o dano moral coletivo: PROCESSUAL CIVIL E AMBIENTAL. AÇÃO CIVIL PÚBLICA PARA COIBIR A PRÁTICA RECORRENTE DE POLUIÇÃO SONORA. MINISTÉRIO PÚBLICO. LEGITIMIDADE RECONHECIDA. DANO MORAL COLETIVO. POLUIÇÃO SONORA. OCORRÊNCIA. PRECEDENTES. REDUÇÃO DA INDENIZAÇÃO. REEXAME DE FATOS E PROVAS. INCIDÊNCIA DA SÚMULA 7/STJ. 1. Recurso especial decorrente de ação civil pública em que se discute danos morais coletivos decorrentes de poluição sonora e irregularidade urbanística provocadas por funcionamento dos condensadores e geradores colocados no fundo do estabelecimento das condenadas. 2. Tratando-se de poluição sonora, e não de simples incômodo restrito aos lindeiros de parede, a atuação do Ministério Público não se dirige à tutela de direitos individuais de vizinhança, na acepção civilística tradicional, e, sim, à defesa do meio ambiente, da saúde e da tranquilidade pública, bens de natureza difusa. O Ministério Público possui legitimidade para propor Ação Civil Pública com o fito de prevenir ou cessar qualquer tipo de poluição, inclusive sonora, bem como buscar a reparação pelos danos dela decorrentes. Nesse sentido: REsp 1.051.306/MG, Rel. Ministro CASTRO MEIRA, Rel. p/ Acórdão Ministro HERMAN BENJAMIN, SEGUNDA TURMA, julgado em 16/10/2008, DJe 10/09/2010. 3. "Tratando-se de poluição sonora, e não de simples incômodo restrito aos lindeiros de parede, a atuação do Ministério Público não se dirige à tutela de direitos individuais de vizinhança, na acepção civilística tradicional, e, sim, à defesa do meio ambiente, da saúde e da tranquilidade pública, bens de natureza difusa" (REsp 1.051.306/MG, Rel. Ministro CASTRO MEIRA, Rel. p/ Acórdão Ministro HERMAN BENJAMIN, SEGUNDA TURMA, julgado em 16/10/2008, DJe 10/09/2010.). 4. "O dano moral coletivo, assim entendido o que é transindividual e atinge uma classe específica ou não de pessoas, é passível de comprovação pela presença de prejuízo à imagem e à moral coletiva dos indivíduos enquanto síntese das individualidades percebidas como segmento, derivado de uma mesma relação jurídica-base. (...) O dano extrapatrimonial coletivo prescinde da comprovação de dor, de sofrimento e de abalo psicológico, suscetíveis de apreciação na esfera do indivíduo, mas inaplicável aos interesses difusos e coletivos". Nesse sentido: REsp 1.410.698/MG, Rel. Ministro HUMBERTO MARTINS, SEGUNDA TURMA, julgado em 23/06/2015, DJe 30/06/2015; REsp 1.057.274/RS, Rel. Ministra ELIANA CALMON, SEGUNDA TURMA, julgado em 01/12/2009, DJe 26/02/2010. 5. A Corte local, ao fixar o valor indenizatório em R$ 50.000,00 (cinquenta mil reais), o fez com base na análise aprofundada da prova constante dos autos. A pretensão da ora agravante não se limita à revaloração da prova apreciada do aresto estadual, mas, sim, ao seu revolvimento por este Tribunal Superior, o que é inviável. Incidência da Súmula 7 do Superior Tribunal de Justiça. Nesse sentido: AgRg no AREsp 430.850/SP, Rel. Ministro Herman Benjamin, Segunda Turma, DJe 07/03/2014. Agravo regimental improvido. (AGARESP 201501613818; Rel. Min. HUMBERTO MARTINS; 2ª Turma; DJE DATA:14/09/2015) Ressalte-se, ademais, que aquela corte entende que não há óbice à cumulação da obrigação de reparar a área e de indenizar: "ADMINISTRATIVO. AMBIENTAL. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. DESMATAMENTO E EDIFICAÇÃO EM ÁREA DE PRESERVAÇÃO PERMANENTE, SEM AUTORIZAÇÃO DA AUTORIDADE AMBIENTAL. DANO S CAUSADOS À BIOTA. INTERPRETAÇÃO DOS ARTS. 4º, VII, E 14, § 1º, DA LEI 6.938/1981, E DO ART. 3º DA LEI 7.347/85. PRINCÍPIOS DA REPARAÇÃO INTEGRAL, DO POLUIDOR-PAGADOR E DO USUÁRIO-PAGADOR. POSSIBILIDADE DE CUMULAÇÃO DE OBRIGAÇÃO DE FAZER (REPARAÇÃO DA ÁREA DEGRADADA) E DE PAGAR QUANTIA CERTA (INDENIZAÇÃO). REDUCTION AD PRISTINUM STATUM. DANO AMBIENTAL INTERMEDIÁRIO, RESIDUAL E MORAL COLETIVO. ART. 5º DA LEI DE INTRODUÇÃO AO CÓDIGO CIVIL. INTERPRETAÇÃO IN DUBIO PRO NATURA DA NORMA AMBIENTAL. 1. Cuidam os autos de Ação Civil Pública proposta com o fito de obter responsabilização por dano s ambientais causados pela supressão de vegetação nativa e edificação irregular em Área de Preservação Permanente. O juiz de primeiro grau e o Tribunal de Justiça de Minas Gerais consideraram provado o dano ambiental e condenaram o réu a repará-lo; porém, julgaram improcedente o pedido indenizatório pelo dano ecológico pretérito e residual. 2. A jurisprudência do STJ está firmada no sentido da viabilidade, no âmbito da Lei 7.347/85 e da Lei 6.938/81, de cumulação de obrigações de fazer, de não fazer e de indenizar (REsp 1.145.083/MG, Rel. Ministro Herman Benjamin, Segunda Turma, DJe 4.9.2012; REsp 1.178.294/MG, Rel. Ministro Mauro Campbell Marques, Segunda Turma, DJe 10.9.2010; AgRg nos EDcl no Ag 1.156.486/PR, Rel. Ministro Arnaldo Esteves Lima, Primeira Turma, DJe 27.4.2011; REsp 1.120.117/AC, Rel. Ministra Eliana Calmon, Segunda Turma, DJe 19.11.2009; REsp 1.090.968/SP, Rel. Ministro Luiz Fux, Primeira Turma, DJe 3.8.2010; REsp 605.323/MG, Rel. Ministro José Delgado, Rel. p/ Acórdão Ministro Teori Albino Zavascki, Primeira Turma, DJ 17.10.2005; REsp 625.249/PR, Rel. Ministro Luiz Fux, Primeira Turma, DJ 31.8.2006, entre outros). 3. Recurso Especial parcialmente provido para reconhecer a possibilidade de cumulação de indenização pecuniária com as obrigações de fazer e não fazer voltadas à recomposição in natura do bem lesado, devolvendo-se os autos ao Tribunal de origem para que fixe, in casu, o quantum debeatur reparatório do dano já reconhecido no acórdão recorrido." (destaques aditados) (STJ, REsp 1328753, Rel. Min. Herman Benjamin, Segunda Turma, v.u., DJe 03/02/2015) PROCESSUAL CIVIL. ADMINISTRATIVO. AMBIENTAL. RECURSO ESPECIAL. DANOS MORAIS COLETIVOS. DANOS AMBIENTAIS INTERCORRENTES. OCORRÊNCIA. 1. Os danos morais coletivos são presumidos. É inviável a exigência de elementos materiais específicos e pontuais para sua configuração. 2. A configuração dessa espécie de dano depende da verificação de aspectos objetivos da causa. Trata-se de operação lógica em que os fatos conhecidos permitem ao julgador concluir pela ocorrência de fatos desconhecidos. 3. Considerando-se a inversão do ônus probatório em matéria ambiental, deve o réu comprovar a inexistência de tais elementos objetivos. A presunção opera em favor do fato presumido, somente se afastando diante de razões concretas. 4. O dano intercorrente não se confunde com o dano residual. O dano ambiental residual (permanente, perene, definitivo) pode ser afastado quando a área degradada seja inteiramente restaurada ao estado anterior pelas medidas de reparação in natura. O dano ambiental intercorrente (intermediário, transitório, provisório, temporário, interino) pode existir mesmo nessa hipótese, porquanto trata de compensar as perdas ambientais havidas entre a ocorrência da lesão (marco inicial) e sua integral reparação (marco final). 5. Hipótese em que o acórdão reconheceu a ocorrência de graves e sucessivas lesões ambientais em área de preservação permanente (APP) mediante soterramento, entulhamento, aterramento e construção e uso de construções civis e estacionamento, sem autorização ambiental e com supressão de vegetação nativa de mangue, restinga e curso d'água. 6. Patente a presença de elementos objetivos de significativa e duradoura lesão ambiental, configuradora dos danos ambientais morais coletivos e dos intercorrentes. As espécies de danos devem ser individualmente arbitradas, na medida em que possuem causas e marcos temporais diversos. 7. Recurso especial provido para reconhecer a existência de danos ambientais morais coletivos e danos ambientais intercorrentes, com valor compensatório a ser arbitrado em liquidação. (REsp n. 1.940.030/SP, relator Ministro Og Fernandes, Segunda Turma, julgado em 16/8/2022, DJe de 6/9/2022.) Esse entendimento foi inclusive consolidado por aquela corte superior na Súmula nº 629: “Quanto ao dano ambiental, é admitida a condenação do réu à obrigação de fazer ou à de não fazer cumulada com a de indenizar”. Correta, portanto, a sentença ao fixar o pagamento de danos morais. VIII. Dispositivo Ante o exposto, homologo a desistência do apelo do SINDICATO DA INDÚSTRIA DA FABRICAÇÃO DO ÁLCOOL DO ESTADO DESÃO PAULO - SIFAESP, SINDICATO DA INDÚSTRIA DO AÇÚCAR NO ESTADO DE SÃOPAULO - SIAESP O UNIÃO DA AGROINDÚSTRIA CANAVIEIRA DO ESTADO DE SÃO PAULO- ÚNICA, declaro prejudicados os pedidos de concessão de efeito suspensivo aos recursos, rejeito as preliminares suscitadas pelo Estado de São Paulo e nego provimento ao seu apelo, bem como aos da CETESB e do IBAMA e à remessa oficial. É como voto. ANDRÉ NABARRETE DESEMBARGADOR FEDERAL mcc
Advogado do(a) APELANTE: DANIELA DUTRA SOARES - SP202531-A
Advogado do(a) APELANTE: RAQUEL CRISTINA MARQUES TOBIAS - SP185529-A
Advogado do(a) APELANTE: CRISTIANO SCORVO CONCEICAO - SP194984-A
TERCEIRO INTERESSADO: ASSOCIACAO DOS FORNECEDORES DE CANA DE ARARAQUARA
ADVOGADO do(a) TERCEIRO INTERESSADO: SERGIO RICARDO CAMPOS LEITE - SP164785-A
0011027-50.2008.4.03.6120
0000264-06.2011.4.03.6113
0002726-51.2011.4.03.6107
E M E N T A
AMBIENTAL E PROCESSO CIVIL. QUEIMA DA PALHA DA CANA-DE-AÇÚCAR. LICENCIAMENTO. ESTUDO DE IMPACTO AMBIENTAL. OBRIGATORIEDADE.
1. Apelações da Companhia Ambiental do Estado de São de Paulo - CETESB, da Fazenda do Estado de São Paulo, do Instituto Brasileiro de Meio Ambiente e Recursos Naturais Renováveis – IBAMA e dos SINDICATOS DA INDÚSTRIA DA FABRICAÇÃO DO ÁLCOOL DO ESTADO DE SÃO PAULO - SIFAESP, SINDICATO DA INDÚSTRIA DO AÇÚCAR NO ESTADO DE SÃO PAULO - SÍAESP e UNIÃO DA AGROINDÚSTRIA CANAVIEIRA DO ESTADO DE SÃO PAULO- UNICA, contra sentença que julgou procedente em parte ação civil pública ajuizada pelo Ministério Público Federal e Ministério Público do Trabalho para obter a suspensão da queima da palha da cana-de-açúcar na Subseção Judiciária em São Carlos.
2. Prejudicados os pedidos de concessão de efeito suspensivo aos apelos, à vista do julgamento dos recursos.
3. A Fazenda do Estado de São Paulo invocou incompetência absoluta do juízo a quo, porque a atribuição seria do STF, dada a existência de conflito federativo entre a União e Estado-membro (art. 102, I “f”, CF), porquanto o MPF e o MPT pretendem tolher a competência material do Estado de São Paulo para a concessão de licenças ambientais, segundo os procedimentos definidos na legislação estadual. Aduziu que, ainda que assim não se entenda, a competência é do foro da Capital, a teor do artigo 93, inciso II, do CDC, que estabelece expressamente que para a hipótese de dano regional a atribuição é do foro da capital do Estado. A presente ação civil pública defende que os órgãos estaduais responsáveis não estão agindo satisfatoriamente na implementação e fiscalização de medidas de proteção ao meio ambiente quanto à queima da palha de cana-de-açúcar, à luz da legislação existente e considerada a competência comum para a proteção ambiental assegurada no ad. 23, VI, da Constituição. Não foi evidenciada nos autos a existência de conflito entre o IBAMA e o Estado de São Paulo. Ao contrário, ambos sustentam a legalidade das autorizações e pugnam pela improcedência dos pedidos. Ademais, cabe destacar que o ora apelante apenas reiterou questão que, por ocasião do julgamento do Pedido de Suspensão de Tutela nº 0039440-03.2008.4.03.0000 que interpôs incidentalmente neste feito, o Desembargador Federal Fábio Prieto suscitou na sessão do dia 26/07/2010. Todavia, naquela sessão, o colegiado não a acolheu, conforme inclusive foi reafirmado no julgamento dos embargos de declaração que opôs (j. em 18/08/2011). Tampouco prospera a alegação de incompetência por aplicação subsidiária do artigo 93, inciso II, do CDC. O artigo 2º da Lei nº 7347/85 estabelece o ajuizamento no foro em que ocorrer o dano, no caso a Subseção Judiciária em São Carlos, e o artigo 16 da Lei nº 7347/85 é claro ao dispor que a sentença civil fará coisa julgada erga omnes, nos limites da competência territorial do órgão prolator.
4. Não se configuram os invocados vícios e que a sentença foi extra e ultra petita. O magistrado não desbordou do pedido inicial. A pretensão que norteia toda a presente ação é de reconhecimento de que o prévio estudo de impacto ambiental para o deferimento de queima de palha de cana-de-acúcar é condição indispensável para a prática. Portanto, a anulação das autorizações concedidas em desacordo e a declaração de obrigatoriedade da exigência de EIA/RIMA é absolutamente harmônica e condizente. Igualmente, a menção à vedação em áreas mecanizáveis apenas reproduz e explicita o limite legal em que a prática da queima é aceitável, considerado que a regra (artigo 38 do Código Florestal) é sua expressa proibição, salvo nos locais que, por suas peculiaridades, seja eventualmente justificada (inciso I).
5. A Constituição Federal no artigo 1º consagra como fundamento do Estado Democrático de Direito a dignidade da pessoa humana e seu artigo 196 dispõe que “...a saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação”. Esses princípios fundamentais concatenam-se com o direito de todos ao “meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações” (artigo 225, caput). No parágrafo primeiro o constituinte também estabeleceu a forma de lhe dar efetividade. Assim, a Carta Magna determina o controle da produção, comercialização e o emprego de técnicas, métodos e substâncias que comportem risco para a vida ou comprometam sua qualidade e o meio ambiente, bem como a necessidade de estudo prévio de impacto ambiental para obra ou atividade que potencialmente cause sua degradação.
6. Ao estabelecer os princípios de ordem econômica, o constituinte teve o cuidado de vinculá-los à dignidade humana (artigo 170, caput) e de submetê-los à defesa do meio ambiente, inclusive mediante tratamento diferenciado conforme o impacto ambiental dos produtos e serviços e de seus processos de elaboração e prestação (inciso VI do artigo 170), além de condicionar o direito de propriedade à sua função social (artigos 5º, XXIII, e 170, III).
7. A expressão desenvolvimento sustentável foi cunhada internacionalmente no relatório Brundland em 1987 e ganhou relevo na Conferência das Nações Unidas sobre o meio ambiente realizada no Rio de Janeiro em 1992, que enfaticamente propôs a compatibilização da atividade econômica à preservação ambiental (STEFANELLO, Alaim Giovalni Fortes, “O desenvolvimento econômico baseado na preservação ambiental como paradigma das instituições financeiras, Revista de Direito ADVOCEF, ano II, nº 4, maio/07, pag. 289-305). Desse modo, evidencia-se que argumentos econômicos tais como, in casu, os prejuízos dos produtores de cana, das usinas de beneficiamento e da arrecadação estatal de impostos não podem ser legitimamente destacados, contrapostos ou sobrepostos à questão da preservação ambiental para fundamentar a manutenção de prática causadora de dano, à luz da Carta Magna.
8. Em matéria ambiental, a competência administrativa é comum entre a União, Estados, Distrito Federal e Municípios (artigo 23, VI e VII, CF). Quanto à legislativa, 0 que predomina é a da União para legislar sobre normas gerais e aos Estados, Municípios e ao Distrito Federal cabe suplementá-las, de acordo com as peculiaridades locais.
9. O estudo prévio do impacto ambiental há muito está previsto no artigo 10 da Lei nº 6.938/81. A Resolução nº 237/97 do CONAMA reiterou a necessidade de licença ambiental prévia, que é obtida por meio de estudo de impacto.
10. Conclui-se que, seja sob o viés constitucional ou do infralegal, o estudo prévio de impacto ambiental é obrigatório e o poder público não pode dispensá-lo, bem como que não é cabível a invocação de resoluções e atos administrativos para justificar a inexigibilidade. Nesse sentido é o precedente do STF (ADIN nº 1.086/SC, Rel. Min. Ilmar Galvão, DJ 01.10.2001).
11. O art. 27 da Lei n.º 4.771/1965 (Código Florestal) proibia, de regra, a queima de vegetação, permitindo-a apenas excepcionalmente, de acordo com peculiaridades regionais, após prévia “permissão” do ente ambiental. O novo Código Florestal (Lei n.º 12.651/2012) manteve praticamente a mesma redação. O Superior Tribunal de Justiça já interpretou o dispositivo e deixou claro que a exceção não se aplica às atividades agrícolas organizadas. A queima da palha da cana-de-açúcar se dá no contexto de uma atividade agrícola e industrial muito bem organizada, conforme a EMBRAPA deixa claro em seu trabalho, em largas porções de terra de inúmeras propriedades da região e que, como demonstram os diversos estudos que instruem a demanda, provoca severos impactos ambientais para a fauna, flora e a camada de ozônio, além da saúde das pessoas. Em decorrência, é incontornável e não submetida à discricionariedade do ente público a necessidade do licenciamento por meio do estudo de impacto ambiental, conforme anteriormente explicitado. Precedente do STJ.
12. Com fundamento nos incisos III, VI e VII do caput e do parágrafo único do art. 23 da Constituição Federal, foi editada a Lei Complementar nº 140/2011 para definir a cooperação entre a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios nas ações administrativas decorrentes do exercício da competência comum relativas à proteção das paisagens naturais notáveis, à proteção do meio ambiente, ao combate à poluição em qualquer de suas formas e à preservação das florestas, da fauna e da flora. Seu artigo 3º define os objetivos fundamentais dos entes da federação. Com o objetivo de cumprir suas competências administrativas, a União criou o IBAMA, que tem suas principais atribuições definidas na Lei nº 7735/89, com a redação que lhe deu o art. 5º da Lei nº 11.516, de 28 de agosto de 2007. Por sua vez, o Estado de São Paulo alega que o artigo 6º da Lei nº 6.938/81 atribui aos órgãos estaduais o controle e fiscalização de atividades passíveis de provocar degradação ambiental. À luz do regramento constitucional e infralegal anteriormente citado, a leitura dessa norma revela que é equivocada a interpretação que o ente público dela fez. A poluição e os malefícios provocados pelas queimadas se espraiam para muito além de seu território por meio das correntes de ar, das chuvas e dos rios, além do impacto que têm sobre as espécies ameaçadas e migratórias, cuja proteção, como visto, cabe à União.
13. No caso dos autos, sob o aspecto da a competência administrativa para o licenciamento, nos termos da legislação mencionada, quando implicar impactos ambientais que ultrapassem os limites territoriais estaduais, é da União por meio do IBAMA. Questão diversa é a competência legislativa do Estado de São Paulo para editar as aludidas leis que previram a proibição gradativa da despalha por meio do fogo. Considerados os termos do pedido da presente demanda, que, em resumo, pretende que o IBAMA fiscalize e dê cumprimento à legislação federal que exige o licenciamento das queimadas por meio do EIA/RIMA, com o consequente cancelamento das autorizações que não observaram esse procedimento, não cria incompatibilidade com a Lei paulista nº 11.241/02, na medida em que prevê supletivamente a extinção da prática no Estado, o que, como dito, não é objeto desta ação e harmoniza-se com a defesa ambiental. O fato de que também estabelece procedimento para a prática não afasta o regramento geral em apreço.
14. Em conclusão, não há dúvida e a prova dos autos demonstra com clareza que a prática da queima da palha da cana-de-açúcar causa sérios danos ao meio ambiente, agravados por um quadro crítico de mudanças climáticas, com drásticos e atípicos períodos de seca. É também uma atividade nociva para a saúde e a vida, que agride seriamente os trabalhadores e os habitantes das cidades próximas e que sabidamente gera para o Estado altos custos com hospitalizações, tratamentos e afastamentos do trabalho suportados pela Previdência. A poluição e os danos provocados pela prática não se restringem aos locais em que há plantação, mas podem atingir áreas de reserva legal e matas ciliares, além de causar processos erosivos e carreamento de material sólido aos leitos dos rios. Assim, os malefícios se estendem por enorme área por meio das correntes de ar, das chuvas e dos rios, bem como acarreta impactos em espécies ameaçadas e migratórias, cuja proteção cabe à União. Deflui dos dispositivos constitucionais e da legislação federal que traça as regras gerais, por conseguinte, que o estudo prévio de impacto ambiental é imperativo legal e deve ser exigido pelo IBAMA, como acertadamente entendeu o juízo a quo.
15. O cabimento da multa por descumprimento é questão pacífica na jurisprudência. Quanto ao valor, se mostra adequado para fazer frente à degradação ambiental provocada na região, aos malefícios à saúde da população e ao descumprimento da legislação federal e à decisão judicial.
16. O descumprimento das regras exigíveis para a prática questionada e a omissão das entidades envolvidas é antiga, a agravar cada vez mais os danos ambientais, à qualidade de vida e à saúde da população local já mencionados. Daí decorre o dever de indenizar. A jurisprudência admite que seja cumulada com a reparação ou o cumprimento do dever de fazer ou não fazer - caso dos autos - a qual, no entanto, não é suficiente para a reparação do malefício provocado. Aplicação da Súmula 639 do STJ.
17. Homologada a desistência do apelo do SINDICATO DA INDÚSTRIA DA FABRICAÇÃO DO ÁLCOOL DO ESTADO DESÃO PAULO - SIFAESP, SINDICATO DA INDÚSTRIA DO AÇÚCAR NO ESTADO DE SÃOPAULO - SIAESP O UNIÃO DA AGROINDÚSTRIA CANAVIEIRA DO ESTADO DE SÃO PAULO- ÚNICA, prejudicados os pedidos de concessão de efeito suspensivo aos recursos, rejeitadas as preliminares suscitadas pelo Estado de São Paulo e negado provimento ao seu apelo, bem como aos da CETESB e do IBAMA e à remessa oficial.