APELAÇÃO CÍVEL (198) Nº 5000108-85.2019.4.03.6004
RELATOR: Gab. 11 - DES. FED. ANDRÉ NABARRETE
APELANTE: MINISTERIO PUBLICO FEDERAL - PR/SP, LENILCO SOUZA DA SILVA, LEVINO PIO DA SILVA, POUSADA SIRIEMA LTDA, RANCHO BOA SORTE LTDA
Advogado do(a) APELANTE: LUCIANA VIEIRA PEREIRA - MS25735-A
Advogado do(a) APELANTE: OLGA ALMEIDA DA SILVA ALVES - MS22557-A
APELADO: POUSADA SIRIEMA LTDA, RANCHO BOA SORTE LTDA, LEVINO PIO DA SILVA, LENILCO SOUZA DA SILVA, MINISTERIO PUBLICO FEDERAL - PR/SP
Advogado do(a) APELADO: LUCIANA VIEIRA PEREIRA - MS25735-A
Advogado do(a) APELADO: OLGA ALMEIDA DA SILVA ALVES - MS22557-A
OUTROS PARTICIPANTES:
APELAÇÃO CÍVEL (198) Nº 5000108-85.2019.4.03.6004 RELATOR: Gab. 11 - DES. FED. ANDRÉ NABARRETE APELANTE: MINISTERIO PUBLICO FEDERAL - PR/SP, LENILCO SOUZA DA SILVA, LEVINO PIO DA SILVA, POUSADA SIRIEMA LTDA, RANCHO BOA SORTE LTDA Advogado do(a) APELANTE: LUCIANA VIEIRA PEREIRA - MS25735-A APELADO: POUSADA SIRIEMA LTDA, RANCHO BOA SORTE LTDA, LEVINO PIO DA SILVA, LENILCO SOUZA DA SILVA, MINISTERIO PUBLICO FEDERAL - PR/SP Advogado do(a) APELADO: LUCIANA VIEIRA PEREIRA - MS25735-A OUTROS PARTICIPANTES: R E L A T Ó R I O Apelações interpostas pelo MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL, LEVINO PIO DA SILVA e RANCHO BOA SORTE EIRELI-ME contra sentença por meio da qual foi julgada procedente em parte ação civil pública ajuizada pelo Parquet para o fim de condenar os réus a, verbis: Ante o exposto, JULGO PARCIALMENTE PROCEDENTES OS PEDIDOS, com fundamento no art. 487, I, do CPC, para condenar solidariamente RONILDO SOUZA SILVA – ME (POUSADA SERIEMA), RANCHO BOA SORTE EIRELI – ME, LEVINO PIO DA SILVA e LENILÇO SOUZA DA SILVA, à obrigação de fazer consistente em: a) efetivar a demolição e remoção das construções de sua autoria ou sob sua responsabilidade instaladas em Área de Preservação Permanente nos termos da fundamentação supra; b) elaboração de Projeto de Recuperação de Área Degradada – PRAD, referente ao imóvel indicado na inicial, de maneira que este se adeque às características do bioma a ser reparado, cuja elaboração ficará a cargo de responsáveis habilitados e cuja submissão para aprovação pelo órgão ambiental competente deverá ocorrer em até 180 (cento e oitenta) dias. Estão inclusos os custos decorrentes da sua elaboração, além do valor de reparação do dano ambiental, sem prejuízo da responsabilidade solidária entre os réus. Com fulcro no art. 12 da LACP e nos arts. 300 c/c 536, ambos do CPC, e com o escopo de, a partir dos princípios da precaução e da prevenção, evitar o prosseguimento de atividades nocivas amplamente demonstradas no processo, defiro a tutela de urgência para: a) proibir a realização de qualquer obra, construção, supressão de vegetação, lançamento de esgoto, queima de detritos, construção de aterros ou outras atividades poluidoras na área, estando o descumprimento sujeito à multa diária de R$ 1.000,00 (mil reais); b) seja a área desocupada no prazo máximo de 90 (noventa) dias, a partir do qual não deverá ser realizado qualquer tipo de atividade turística na área, estando o descumprimento sujeito à multa diária de R$ 1.000,00 (mil reais) O Ministério Público Federal, no apelo id 281246670, argumenta que: a) o magistrado entendeu, relativamente aos danos morais coletivos, que: “o empreendimento não tem magnitude o suficiente para gerar a condenação em danos morais, sendo suficiente a reparação do dano. De fato, a prova trazida aos autos, em que pese revele que há construções e, consequentemente, dano ambiental, revela que não se trata de uma estrutura expressiva. Desse modo, não verifico o abalo social suficiente para ensejar a condenação por danos morais.” Esse aspecto da sentença merece reforma, porquanto a indenização por dano moral coletivo é objetiva, com fundamento na teoria do risco integral, tendo como requisitos a conduta (independentemente de culpa em sentido amplo), o prejuízo e o nexo de causalidade. Distingue-se da responsabilização patrimonial ou extrapatrimonial individual em razão da natureza da ofensa, que, no caso em apreço, consoante reconhecido pelo STJ no REsp 1664186/SP, apresenta alto grau de reprovabilidade e afeta, por sua gravidade e repercussão, o círculo primordial de valores sociais; b) no caso dos autos, está fartamente demonstrada a conduta dos réus, que, por meio de construções, descaracterizaram a APP do Rio Paraguai, no Pantanal, o dano, consubstanciado no desrespeito à área protegida, e o nexo causal, que é a relação entre a ação e o resultado danosa; c) “se faz presente a obrigação de indenizar o dano moral coletivo infligido, pois, mediatamente, a ação ofende toda a sociedade, de maneira essencialmente difusa, inclusive em prejuízo das futuras gerações, considerada a relacionalidade dos processos ecológicos e a interdependência entre fauna, flora, solo, complexos hídricos, fluxos eólicos e, enfim, de todas as formas de criação e manutenção da vida humana e não humana pelo ambiente.”; d) a condenação aos danos morais coletivos é decorrência dos princípios da reparação integral e do poluidor-pagador; e) a decisão recorrida confunde o alto grau de reprovabilidade da conduta lesiva, consistente na privação da coletividade de um direito que lhe é próprio, com as dimensões do dano. Pede, em consequência, a condenação dos réus ao pagamento de indenização pelos danos morais coletivos. Levino Pio da Silva, no apelo id 281246664, alega que: a) preliminarmente, o STJ reconheceu no REsp nº 1.402.984-DF que os crimes ambientais decorrentes da edificação em área de preservação permanente prescrevem em quatro anos, tese que deve ser aplicada in casu; b) consoante o laudo pericial id 15502273 (fls. 172/180), o local não estava em área de preservação permanente e os testemunhos afirmaram que o dano ambiental é de pequena monta e o local não era considerado de APP, à época; c) cuida-se de área consolidada antes de 22 de julho de 2008, de modo que é aplicável o artigo 61-A do Código Florestal; d) “o princípio da proporcionalidade aplica-se ao caso, eis que se trata de área consolidada e que a demolição não se apresenta a melhor solução para resolver as irregularidades das construções na localidade. Parece mais apropriada uma regularização que dê conta de harmonizar todas as ocupações com a proteção daquele meio ambiente. Essa medida, aliás, é a que mais se aproxima da almejada justiça social, que o caso exige”. Rancho Boa Sorte Eireli, por sua vez, também recorre e sustenta: a) o laudo id 15502273, na resposta ao quesito nº 2, afirmou que o imóvel não ocupa área de preservação permanente; b) a área questionada está dentro do Distrito de Albuquerque, de modo que pode ser caracterizado como zona urbana, não sujeita ao Código Florestal, mas à Lei nº 14.285/2021; c) o apelante reside no local há muitos anos e seu empreendimento é de pequeno porte, de forma que a demanda deve ser julgada improcedente. Nas contrarrazões de id 281246714, o Ministério Público Federal pede o desprovimento dos apelos dos réus. Nesta corte, o Parquet apresentou o parecer id 2855379978 como custos legis, no qual pede o provimento do apelo do autor, o desprovimento do dos requeridos e assevera que: a) não prospera a preliminar de prescrição suscitada com base nos crimes ambientais, dada a independência das instâncias civil, penal e administrativa. Não bastasse, o STF assentou que é imprescritível a pretensão de reparação civil de dano ambiental (Tema 999); b) “o conjunto probatório é apto a demonstrar que os requeridos não só mantiveram as intervenções existentes no imóvel na década de 1980, destinadas apenas à moradia da família, como fizeram diversas outras construções ao longo do tempo, inviabilizando, assim, a regeneração da vegetação nativa e o desenvolvimento da sua função ambiental de preservar os recursos hídricos, o solo, a paisagem e a biodiversidade, forçoso reconhecer que foi descumprido o dever constitucional e legal (art. 225, caput, da CF, c/c o art. 2º, da Lei nº 4.771/65) de preservar o meio ambiente, pelo que se impõe a obrigação de reparar os danos causados, de forma solidária e independentemente de culpa, nos termos do §3º, do art. 225, da CF e do art. 4º, VII, c/c o art. 14, § 1º, da Lei nº 6.938/81”; c) a teor do artigo 3º da Lei nº 12.651/12, com redação dada pela Lei nº 14.285/2021, a qualificação como urbana consolidada demanda o preenchimento de requisitos relativos à existência de equipamentos de infraestrutura, prova não realizada pelo réu apelante. Não bastasse, as imagens do local evidenciam que é nitidamente rural; d) “nos termos do art. 24, VI e VIII e do art. 30, I e II, da Constituição Federal, a competência legislativa dos municípios em matéria ambiental é concorrente, e, nesse sentido, restringe-se à suplementação das normas gerais criadas pela União, em assuntos de interesse local, e deve ser exercida em conformidade com o dever de, juntamente com os demais entes federativos, defender e preservar o meio ambiente para as presentes e futuras gerações (art. 225), combater a poluição em qualquer de suas formas, e preservar as florestas, a fauna e flora (art. 23, VI e VII)”. Ademais, a constitucionalidade do § 10 do artigo 4º da Lei nº 12.651/12 está sendo questionada no STF na ADI nº 7.146; e) de acordo com os elementos dos autos, o imóvel é destinado à moradia dos possuidores e suas famílias, bem como à locação de quartos para turistas, atividades que não podem ser classificadas como turismo rural ou ecoturismo para os fins do art. 61-A do Código Florestal; f) diferentemente do alegado, a atividade dos réus é degradadora, tanto assim que, em duas oportunidades, lhes foram negados pedidos de licenciamento. Ao contrário, o parecer técnico da Fundação do Meio Ambiente do Pantanal (FMAP), em resposta ao ofício n. 1301/2018/MPF/CRA/MS/MOPJ 29, considerou o empreendimento como de alto potencial poluidor; g) “uma vez comprovado o dano ambiental e a existência de nexo de causalidade entre ele e a conduta praticada, surge, como consequência, o dever de reparação integral, cujo espectro alcança não apenas os prejuízos materiais decorrentes da ação degradadora, como os de natureza imaterial, abrindo-se, assim, espaço para a cumulação de obrigações de fazer, não fazer e/ou indenizar, nos termos do entendimento consagrado na Súmula n. 629 do Superior Tribunal de Justiça”. Por meio da decisão id 1285752136, os recursos foram recebidos apenas no efeito devolutivo. É o relatório.
Advogado do(a) APELANTE: OLGA ALMEIDA DA SILVA ALVES - MS22557-A
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DECLARAÇÃO DE VOTO A Excelentíssima Senhora Desembargadora Federal Mônica Nobre: A fim de deixar consignadas nos autos as razões que me levaram a divergir parcialmente do voto proferido pelo i. Relator, procedo à presente declaração de voto. No tocante ao pedido de indenização, a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça tem adotado o princípio in dubio pro natura como fundamento na solução de conflitos e na interpretação das leis que regem a matéria. Amparada no referido princípio, o STJ estabeleceu que é possível, em alguns casos, condenar o responsável pela degradação ambiental ao pagamento de indenização relativa ao dano extrapatrimonial ou dano moral coletivo. Todavia, os proprietários já foram condenados, às suas expensas, a efetivarem a demolição e remoção das construções de sua autoria, a elaborarem Projeto de Recuperação de Área Degradada – PRAD, dentre outras obrigações. Ademais, como observado na r. sentença: “De fato, a prova trazida aos autos, em que pese revele que há construções e, consequentemente, dano ambiental, revela que não se trata de uma estrutura expressiva. Desse modo, não verifico o abalo social suficiente para ensejar a condenação por danos morais”. Como se vê, a condenação imposta será suficiente à recomposição integral do dano. Ademais, não há notícia nos autos de resistência fática dos proprietários acerca das obrigações impostas na r. sentença. A propósito: APELAÇÃO. REMESSA NECESSÁRIA. AGRAVO RETIDO NÃO CONHECIDO. AMBIENTAL. PROCESSUAL CIVIL. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. PRELIMINARES E PREJUDICIAIS DE MÉRITO AFASTADAS. INTERVENÇÃO EM ÁREA DE PRESERVAÇÃO PERMANENTE. RESERVATÓRIO ARTIFICIAL. USINA DE MARIMBONDO. RECUPERAÇÃO DA ÁREA. NECESSIDADE. IBAMA. REALOCAÇÃO AO POLO ATIVO. SENTENÇA PARCIALMENTE REFORMADA. (...) 19. É admitida a condenação do réu à obrigação de fazer ou à de não fazer cumulada com a de indenizar, caso a restauração ambiental "in natura" não se mostre suficiente à recomposição integral do dano causado. Inteligência da Súmula 629/STJ. 20. Na hipótese dos autos, o auto de apreensão e demais provas documentais atestaram a plena possibilidade de recuperação ambiental da área degradada. Logo, desnecessária a indenização pleiteada. (...) 22. Não se conhece do agravo retido. Nega-se provimento à remessa necessária e às apelações de Furnas Centrais Elétricas S/A e do município de Guaraci/SP. Dá-se provimento ao apelo do IBAMA. (TRF/3ª Região, AC nº 0011307-97.2007.4.03.6106, Desembargadora Diva Prestes Marcondes Malerbi, 6ª Turma, Publicado em 04/05/2021) Ante o exposto, rejeito a preliminar suscitada e nego provimento à remessa oficial e aos recursos de apelação.
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V O T O
Apelações interpostas pelo MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL, LEVINO PIO DA SILVA e RANCHO BOA SORTE EIRELI-ME contra sentença por meio da qual foi julgada procedente em parte ação civil pública ambiental ajuizada pelo Parquet.
I - DO REEXAME NECESSÁRIO
O decisum deve ser submetido ao reexame necessário, à semelhança do que se verifica no manejo da ação popular, aplicada por analogia a Lei nº 4.717/65, em razão da interpretação sistemática e teleológica do microssistema de tutela dos interesses coletivos e difusos, nos termos de seu artigo 19, verbis:
"Art. 19. A sentença que concluir pela carência ou improcedência da ação está sujeita ao duplo grau de jurisdição, não produzindo efeito senão depois de confirmada pelo tribunal; da que julgar a ação procedente, caberá apelação, com efeito suspensivo". (Redação dada pela Lei nº 6.014/73).
Nesse sentido, a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça:
"PROCESSUAL CIVIL. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA. REEXAME NECESSÁRIO. CABIMENTO. APLICAÇÃO, POR ANALOGIA, DO ART. 19 DA LEI 4.717/1965. 1. "Por aplicação analógica da primeira parte do art. 19 da Lei nº 4.717/65, as sentenças de improcedência de ação civil pública sujeitam-se indistintamente ao reexame necessário" (REsp 1.108.542/SC, Rel. Ministro Castro Meira, j. 19.5.2009, Dje 29.5.2009). 2. Agravo Regimental não provido."
(STJ, AGREsp 1219033/RJ, Rel. Ministro Herman Benjamin, Segunda Turma, v.u., DJe 25/04/2011).
In casu, verifica-se não ter sido contemplada a integralidade dos pedidos formulados em sede do exórdio, porquanto o Parquet Federal pretendia fossem os réus condenados a pagar indenização pelo dano ambiental coletivo em montante não inferior a cinquenta mil reais, o que não foi acolhido. Assim, far-se-á o reexame necessário da sentença, relativamente a esse tópico.
II – DA PRELIMINAR SUSCITADA
Levino Pio da Silva suscitou, preliminarmente, que o STJ reconheceu no REsp nº 1.402.984-DF que os crimes ambientais decorrentes da edificação em área de preservação permanente prescrevem em quatro anos, entendimento que deve ser aplicado ao caso.
O argumento não prospera.
Obviamente, a presente ação não pretende a responsabilização dos réus no âmbito penal. Assim, como bem ressaltou o Parquet no seu parecer, não há que se confundirem as instâncias civil, penal e administrativa, dada sua completa independência. Ademais, o STF assentou que é imprescritível a pretensão de reparação civil de dano ambiental (Tema 999), tese de repercussão geral.
III. DOS FATOS E DO PROCESSAMENTO
Narrou o Ministério Público Federal na inicial da presente ação civil pública ajuizada contra Levino Pio da Silva, Ronildo Souza Silva-ME (Pousada Seriema), Lenilço Souza da Silva e Rancho Boa Sorte Eireli-ME, que são possuidores do imóvel conhecido atualmente por Rancho Boa Sorte, antiga Pousada Seriema (“Rancho do Gordo”), no qual foram verificadas construções dentro da área de preservação permanente – APP do Rio Paraguai, sem o devido licenciamento ambiental, além de lixo a céu aberto e esgoto sem qualquer tipo de tratamento. A pretensão baseou-se no art. 225 da Constituição Federal, que assegura o direito fundamental ao meio ambiente ecologicamente equilibrado e impõe a adoção de medidas para a sua preservação tanto pelo poder público como pela coletividade, na Lei 12.651/2012, que define as APP situadas ao longo dos rios ou de qualquer curso d'água em seu art. 4º, e na Lei nº 6.938/81, que, em seu art. 14, § 1º, impõe ao poluidor o dever de indenizar e reparar os danos causados ao meio ambiente independente de culpa.
O feito foi instruído com o Inquérito Civil Público n. 1.21.004.000093/2010-37 (id. 281246113 - Pág. 1/3.), no qual consta o relatório policial final da Operação Albuquerque (id. 281246113 - Pág. 5/16), o Laudo de Perícia Criminal Federal n. 1971/2011, extraído do Inquérito Policial n. 195/2010-4/DPF/CRA/MS (Id. 281246236 - Pág. 12/20), as respostas da Fundação do Meio Ambiente e Desenvolvimento Agrário do Município de Corumbá/MS aos ofícios n. 709/2011/MPF/CRA/MS/WRA e n. 715/2012/MPF/CRA/MS/WRA (id. 281246234 - Pág. 22 e Id. 281246235 - Pág. 11, respectivamente.) e a vistoria realizada pelo IBAMA, em resposta ao ofício n. 1.039/2013/MPF/CRA/MS/PHCT (id. 281246236 - Pág. 27/28).
Os réus foram devidamente citados. Somente Lenilço Souza da Silva e Levino Pio da Silva apresentaram contestações (id 281246283 e 281246291).
No saneador, o juízo deferiu o pedido de produção de prova testemunhal formulado pelo MPF (id 281246296) e não aplicou os efeitos da revelia aos demais corréus, nos termos do art. 345, inciso I, do CPC.
Foram ouvidas as testemunhas Luiz Spricigo Junior e Alexandre Pires Dias Teixeira (id 281246546) e, após, foram acostados memoriais pelo MPF, por Levino Pio da Silva e pelo Rancho Boa Sorte Eireli (id 281246579, 281246636 e 28124663, respectivamente).
Sobreveio a sentença id 281246653, que julgou parcialmente procedentes os pedidos formulados na inicial, nos termos anteriormente relatados, contra a qual foram interpostos os recursos ora examinados.
IV. DA PROTEÇÃO AO MEIO AMBIENTE
A proteção ao meio ambiente (artigo 1º, I, da LACP) tem status constitucional, a teor do disposto no artigo 225 da Lei Maior. Os agentes infratores, pessoas físicas ou jurídicas, estão sujeitos a sanções civis, penais e administrativas, cuja incidência pode ser cumulativa, ante sua autonomia:
"Art. 225. Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações.
§ 1º. Para assegurar a efetividade desse direito, incumbe ao Poder Público:
I - preservar e restaurar os processos ecológicos essenciais e prover o manejo ecológico das espécies e ecossistemas;
II - preservar a diversidade e a integridade do patrimônio genético do País e fiscalizar as entidades dedicadas à pesquisa e manipulação de material genético;
III - definir, em todas as unidades da Federação, espaços territoriais e seus componentes a serem especialmente protegidos, sendo a alteração e a supressão permitidas somente através de lei, vedada qualquer utilização que comprometa a integridade dos atributos que justifiquem sua proteção;
IV - exigir, na forma da lei, para instalação de obra ou atividade potencialmente causadora de significativa degradação do meio ambiente, estudo prévio de impacto ambiental, a que se dará publicidade;
V - controlar a produção, a comercialização e o emprego de técnicas, métodos e substâncias que comportem risco para a vida, a qualidade de vida e o meio ambiente;
VI - promover a educação ambiental em todos os níveis de ensino e a conscientização pública para a preservação do meio ambiente;
VII - proteger a fauna e a flora, vedadas, na forma da lei, as práticas que coloquem em risco sua função ecológica, provoquem a extinção de espécies ou submetam os animais a crueldade.
§ 2º Aquele que explorar recursos minerais fica obrigado a recuperar o meio ambiente degradado, de acordo com solução técnica exigida pelo órgão público competente, na forma da lei.
§ 3º - As condutas e atividades consideradas lesivas ao meio ambiente sujeitarão os infratores, pessoas físicas ou jurídicas, a sanções penais e administrativas, independentemente da obrigação de reparar os danos causados.
§ 4º - A Floresta Amazônica brasileira, a Mata Atlântica, a Serra do Mar, o Pantanal Mato-Grossense e a Zona Costeira são patrimônio nacional, e sua utilização far-se-á, na forma da lei, dentro de condições que assegurem a preservação do meio ambiente, inclusive quanto ao uso dos recursos naturais."
(destaques aditados)
A preservação ambiental, assim como do patrimônio público de modo geral, é competência comum dos entes federativos (artigo 23, I, VI e VII, CF/88). Anote-se que cabe aos Estados, Distrito Federal e Municípios seguir as diretrizes editadas pela União, de modo que não podem reduzir a tutela estabelecida em âmbito de legislação federal, mas somente a incrementar, em observância aos princípios da simetria e da proteção máxima aos direitos de titularidade da coletividade.
A Lei Maior recepcionou a proteção anteriormente existente na esfera da legislação ordinária. Vale destacar as Leis nº 4.771/1965 e nº 6.938/1981 com suas posteriores alterações (e regulamentação pelo Decreto nº 99.274/1990), ressaltada a recente revogação do Código de 1965 com o advento da Lei nº 12.651/2012. Tais diplomas também preceituam a obrigação de toda a sociedade e do poder público quanto à defesa do meio ambiente, além da promoção das correlatas ações necessárias à sua preservação (artigos 1º e 2º, Lei nº 6.938/1981).
A novel legislação ambiental também é aplicável a situações de transição por incrementar a defesa do meio ambiente (e.g. artigo 61-A da Lei nº 12.651/2012). Frise-se ser princípio norteador do microssistema dos direitos coletivos a aplicação da norma mais protetiva para sua efetiva tutela, em razão de seu alcance e importância.
De se anotar, também, a regência do tema pelo primado do devido uso da propriedade (artigos 5º, XXII, XXIII, 170, II e III, 182 e 186 da CF/88), a intitulada função socioambiental, a qual permeia a dimensão da tutela ambiental, nos termos do artigo 1.228, § 1º, do Código Civil:
"Art. 1.228. O proprietário tem a faculdade de usar, gozar e dispor da coisa, e o direito de reavê-la do poder de quem quer que injustamente a possua ou detenha.
§ 1º. O direito de propriedade deve ser exercido em consonância com as suas finalidades econômicas e sociais e de modo que sejam preservados, de conformidade com o estabelecido em lei especial, a flora, a fauna, as belezas naturais, o equilíbrio ecológico e o patrimônio histórico e artístico, bem como evitada a poluição do ar e das águas."
A defesa do meio ambiente abarca a apuração da responsabilidade objetiva dos agentes causadores de dano a tal patrimônio, consoante determinação expressa do artigo 4º, inciso VII, c.c. artigo 14, § 1º, ambos da citada Lei nº 6.938/1981, além do artigo 2º do atual Código Florestal, verbis:
Lei nº 6.938/1981
"Art. 4º - A Política Nacional do Meio Ambiente visará:
(omissis)
VII - à imposição, ao poluidor e ao predador, da obrigação de recuperar e/ou indenizar os danos causados e, ao usuário, da contribuição pela utilização de recursos ambientais com fins econômicos."
"Art. 14. (omissis)
§ 1º. Sem obstar a aplicação das penalidades previstas neste artigo, é o poluidor obrigado, independentemente da existência de culpa, a indenizar ou reparar os danos causados ao meio ambiente e a terceiros, afetados por sua atividade. O Ministério Público da União e dos Estados terá legitimidade para propor ação de responsabilidade civil e criminal, por danos causados ao meio ambiente."
Lei nº 12.651/2012
"Art. 2º. As florestas existentes no território nacional e as demais formas de vegetação nativa, reconhecidas de utilidade às terras que revestem, são bens de interesse comum a todos os habitantes do País, exercendo-se os direitos de propriedade com as limitações que a legislação em geral e especialmente esta Lei estabelecem.
§ 1º. Na utilização e exploração da vegetação, as ações ou omissões contrárias às disposições desta Lei são consideradas uso irregular da propriedade, aplicando-se o procedimento sumário previsto no inciso II do art. 275 da Lei no 5.869, de 11 de janeiro de 1973 - Código de Processo Civil, sem prejuízo da responsabilidade civil, nos termos do § 1º do art. 14 da Lei no 6.938, de 31 de agosto de 1981, e das sanções administrativas, civis e penais."
De tais dispositivos decorre a obrigatoriedade do uso consciente da propriedade, consoante sua função social em amplo aspecto, sob pena de se impor ao agente causador do dano ambiental o dever de reparar ou indenizar pelos prejuízos sucedidos independentemente de culpa. São suficientes, assim, a comprovação de ação ou omissão, a ocorrência do dano e o nexo causal entre ambos. Despiciendo, inclusive, perquirir a respeito da licitude da atividade desenvolvida, porquanto incide na espécie a teoria do risco integral, a fim de coibir a atividade nociva e impor a reparação tanto in natura quanto em pecúnia.
O Direito Ambiental brasileiro igualmente não socorre o agente que ocupa determinada área depois de sua degradação, para de tal fato pretender beneficiar-se, pois as obrigações ambientais são propter rem. O atual Código Florestal, a citada Lei nº 12.651/2012, foi ainda mais longe em seu escopo protecionista, ao preceituar, em seu artigo 2º, § 2º, que: "as obrigações previstas nesta Lei têm natureza real e são transmitidas ao sucessor, de qualquer natureza, no caso de transferência de domínio ou posse do imóvel rural". Configuram, assim, "limitações administrativas reais" por estatuir as hipóteses legais de uso permitido em numerus clausus e, portanto, não passíveis de ampliação pela via administrativa ou judicial.
A responsabilização pela ocorrência do dano ambiental e correlata aplicação de penalidade também se dão nos termos da Lei nº 9.605/1998, na forma dos artigos a seguir transcritos:
"Art. 38. Destruir ou danificar floresta considerada de preservação permanente, mesmo que em formação, ou utilizá-la com infringência das normas de proteção:
Pena - detenção, de um a três anos, ou multa, ou ambas as penas cumulativamente.
Parágrafo único. Se o crime for culposo, a pena será reduzida à metade."
"Art. 38-A. Destruir ou danificar vegetação primária ou secundária, em estágio avançado ou médio de regeneração, do Bioma Mata Atlântica, ou utilizá-la com infringência das normas de proteção: (Incluído pela Lei nº 11.428, de 2006).
Pena - detenção, de 1 (um) a 3 (três) anos, ou multa, ou ambas as penas cumulativamente.
Parágrafo único. Se o crime for culposo, a pena será reduzida à metade."
"Art. 48. Impedir ou dificultar a regeneração natural de florestas e demais formas de vegetação:
Pena - detenção, de seis meses a um ano, e multa."
"Art. 70. Considera-se infração administrativa ambiental toda ação ou omissão que viole as regras jurídicas de uso, gozo, promoção, proteção e recuperação do meio ambiente."
"Art. 72. As infrações administrativas são punidas com as seguintes sanções, observado o disposto no art. 6º:
I - advertência;
II - multa simples;
III - multa diária;
IV - apreensão dos animais, produtos e subprodutos da fauna e flora, instrumentos, petrechos, equipamentos ou veículos de qualquer natureza utilizados na infração;
V - destruição ou inutilização do produto;
VI - suspensão de venda e fabricação do produto;
VII - embargo de obra ou atividade;
VIII - demolição de obra;
IX - suspensão parcial ou total de atividades;
X - (VETADO)
XI - restritiva de direitos."
Impende registrar, também, para o escopo de solucionar a presente lide, as disposições específicas sobre as áreas de preservação permanente. A definição de tais áreas decorre ex lege, ou seja, sua regulamentação, delimitação ou especificação deriva diretamente do ordenamento jurídico, diplomas legais e também infralegais. No tocante aos diplomas regulamentares, registre-se ter o CONAMA competência para: "estabelecer normas, critérios e padrões relativos ao controle e à manutenção da qualidade do meio ambiente com vistas ao uso racional dos recursos ambientais, principalmente os hídricos", nos termos do artigo 8º, VII, da Lei nº 6.938/1981.
Para o caso em análise vale também mencionar a Resolução CONAMA nº 303/2002, a qual reitera o conteúdo da legislação ordinária e, por delegação legal, fixa limites para as áreas protegidas. Lembre-se que tal definição, em âmbito da legislação federal, não impede que venham os parâmetros ali estabelecidos a ser ampliados na esfera regional e local, com prevalência da norma mais protetiva. Segue a transcrição da legislação vigente à época e nos dias atuais:
Lei nº 4.771/1965
"Art. 1º. (...)
§ 2º. Para os efeitos deste Código, entende-se por:
(...)
II - área de preservação permanente: área protegida nos termos dos arts. 2º e 3º desta Lei, coberta ou não por vegetação nativa, com a função ambiental de preservar os recursos hídricos, a paisagem, a estabilidade geológica, a biodiversidade, o fluxo gênico de fauna e flora, proteger o solo e assegurar o bem-estar das populações humanas;
(...)"
"Art. 2º. Consideram-se de preservação permanente, pelo só efeito desta Lei, as florestas e demais formas de vegetação natural situadas:
(...)
a) ao longo dos rios ou de qualquer curso d'água desde o seu nível mais alto em faixa marginal cuja largura mínima será:
1) 30 (trinta) metros, para os cursos d’água de menos de 10 (dez) metros de largura;
2) 50 (cinquenta) metros, para os cursos d’água que tenham de 10 (dez) a 50 (cinquenta) metros de largura;
3) 100 (cem) metros, para os cursos d’água que tenham de 50 (cinquenta) a 200 (duzentos) metros de largura;
3- de 100 (cem) metros para todos os cursos cuja largura seja superior a 200 metros;(redação original)
4 - de 200 (duzentos) metros para os cursos d'água que tenham de 200 (duzentos) a 600 (seiscentos) metros de largura; (redação dada pela Lei nº 7.803, de 18.07.1989)
5- de 500 (quinhentos) metros para os cursos d'água que tenham largura superior a 600 (seiscentos) metros;
"Art. 4º, § 1°. A supressão total ou parcial de florestas de preservação permanente só será admitida com prévia autorização do Poder Executivo Federal, quando for necessária à execução de obras, planos, atividades ou projetos de utilidade pública ou interesse social."
Resolução CONAMA nº 303/2002:
"Art. 3º Constitui Área de Preservação Permanente a área situada:I - em faixa marginal, medida a partir do nível mais alto, em projeção horizontal, com largura mínima, de:
a) trinta metros, para o curso d'água com menos de dez metros de largura;b) cinquenta metros, para o curso d'água com dez a cinquenta metros de largura;c) cem metros, para o curso d`água com cinquenta a duzentos metros de largura;d) duzentos metros, para o curso d'água com duzentos a seiscentos metros de largura; e) quinhentos metros, para o curso d'água com mais de seiscentos metros de largura;
(...)"
Lei nº 12.651/2012 (Código Florestal)
"Art. 4º. Considera-se Área de Preservação Permanente, em zonas rurais ou urbanas, para os efeitos desta Lei:
(...)
I - as faixas marginais de qualquer curso d'água natural perene e intermitente, excluídos os efêmeros, desde a borda da calha do leito regular, em largura mínima de:
a) 30 (trinta) metros, para os cursos d’água de menos de 10 (dez) metros de largura;
b) 50 (cinquenta) metros, para os cursos d’água que tenham de 10 (dez) a 50 (cinquenta) metros de largura;
c) 100 (cem) metros, para os cursos d’água que tenham de 50 (cinquenta) a 200 (duzentos) metros de largura;
d) 200 (duzentos) metros, para os cursos d'água que tenham de 200 (duzentos) a 600 (seiscentos) metros de largura;
e) 500 (quinhentos) metros, para os cursos d'água que tenham largura superior a 600 (seiscentos) metros; "
(destaques aditados)
O Código Florestal de 1934 (Decreto nº 23.793/1934) já preceituava ser o meio ambiente de interesse comum a todos e configurar situação limitadora do uso da propriedade. A seu turno, a Lei nº 4.771/1965, cujo conteúdo foi essencialmente mantido pelo atual Código Florestal de 2012, disciplina não serem possíveis intervenções em áreas de preservação permanente, tampouco a manutenção de edificações. Referidos diplomas, por outro lado, trazem taxativas exceções quanto ao uso tolerado de tal espaço, atreladas essencialmente às hipóteses de utilidade pública e interesse social, os quais foram anteriormente reproduzidos no item V.
No mesmo sentido dos dispositivos referidos há ainda a Lei nº 9.433/97 (institui a Política Nacional de Recursos Hídricos, cria o Sistema Nacional de Gerenciamento de Recursos Hídricos, regulamenta o inciso XIX do art. 21 da Constituição Federal, e altera o art. 1º da Lei nº 8.001, de 13 de março de 1990, que modificou a Lei nº 7.990, de 28 de dezembro de 1989), a Resolução CONAMA nº 369/2006 (Dispõe sobre os casos excepcionais, de utilidade pública, interesse social ou baixo impacto ambiental, que possibilitam a intervenção ou supressão de vegetação em Área de Preservação Permanente-APP) e o Código Florestal vigente (artigos 7º e 8º).
As normas mencionadas, que à evidência se aplicam tanto às áreas rurais como urbanas, contemplam como regra a vedação a qualquer tipo de intervenção em áreas de preservação permanente, como visto. Permitem, excepcionalmente, algumas ações e manutenção de construções eventualmente já erigidas em determinadas situações, seja à luz da legislação vigente à época dos fatos, seja nos termos dos permissivos dos atuais regramentos. No entanto, por serem excepcionais configuram rol taxativo e devem ser interpretadas de modo restritivo.
De igual modo, não se fala em prevalência de eventual direito adquirido ou ato jurídico perfeito quando se afere afronta ao próprio ordenamento à época existente. Prepondera o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, em interpretação harmoniosa dos primados constitucionais, inclusive porque a "anterioridade" que deve ser considerada é a da boa qualidade ambiental, o que não implica equívoco interpretativo que gere insegurança jurídica ou injustiça. Como já se disse: "Até porque se se pudesse falar em 'anterioridade', ela deveria beneficiar a boa qualidade do meio ambiente, que sem dúvida precedeu toda a instalação fonte de danos e agressões ambientais, sendo de todo inadmissível pretender que a existência e a repetição de emissões poluentes em certo local, mesmo ao longo de seguidos anos, determine a sorte de toda uma região e comprometa indefinidamente, para o futuro, o destino do meio ambiente e da qualidade de vida da população." (MIRRA, Álvaro Luiz Valery. Ação Civil Pública e Reparação do Dano ao Meio Ambiente. São Paulo. Ed. Juarez de Oliveira, 2004, p. 116).
V. DA RESPONSABILIZAÇÃO DOS RÉUS PELA OCORRÊNCIA DO DANO AMBIENTAL
Dessume-se a obrigação de reparar pela ocorrência de dano ambiental quando há atuação em desconformidade aos regramentos de proteção ao meio ambiente e nexo de causalidade entre tal comportamento e o prejuízo causado.
O desmatamento, ocupação ou exploração de área de preservação permanente, bem como a supressão de vegetação ou impedimento à sua regeneração em tais terrenos, configuram dano ecológico in re ipsa, o qual dispensa até mesmo prova técnica de lesividade específica e enseja a obrigação propter rem (vide artigo 7º, § 2º, Lei 12.651/12) de restaurar a plenitude ambiental, indenizar pela degradação e igualmente terceiros afetados, sob a sistemática da responsabilidade civil objetiva. Significa, assim, que responde pelo dano não somente aquele que perpetra a ação lesiva como, de igual forma, quem contribui para sua manutenção.
Não há qualquer conflito entre a questão da preservação ambiental e o direito de propriedade, porquanto este não pode ser desvinculado de sua função socioambiental, a qual abrange os fundamentos e preceitos norteadores já declinados, inclusive a impossibilidade da pretensão ao direito adquirido à degradação ambiental. É indissociável da função socioambiental da propriedade a noção do seu uso de modo a resguardar o meio ambiente equilibrado para a presente e as futuras gerações. Assim, no caso de restar configurado tratar-se de local de preservação permanente, torna-se absolutamente impossível sua ocupação, pois é área da mais alta relevância ecológica, de prioritária proteção.
Tampouco se pode falar em situação consolidada de ocupação de área de preservação permanente para evitar a ordem de desocupação e demolição das edificações nela erigidas, em nome da "razoabilidade e proporcionalidade", quando ausente licença ambiental para a supressão de vegetação nativa e ocupação do terreno, nos termos da lei, a revelar situação ab initio irregular. Não são admissíveis pequenas exceções que solapam a mens legis, ao argumento de serem imperceptíveis ou atenderem a interesses locais, pois seu conjunto agride o meio ambiente e causa evidente dano a toda a coletividade.
A título de nota, eventual autorização administrativa para a ocupação de terreno consolidado como área de preservação permanente fora dos casos expressa e excepcionalmente autorizados pelo ordenamento pátrio configuraria ato administrativo nulo, porque editado em afronta à literal disposição dos regramentos atinentes à tutela do meio ambiente ora apontados ou, no mínimo, perderia sua eficácia, dada a impossibilidade de se sustentar o "direito adquirido à degradação ambiental". O Superior Tribunal de Justiça adota posição incisiva nesse sentido, consoante se depreende do julgado a seguir transcrito:
"ADMINISTRATIVO. PROCESSUAL CIVIL. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. OCUPAÇÃO E EDIFICAÇÃO EM ÁREA DE PRESERVAÇÃO PERMANENTE. CASAS DE VERANEIO ("RANCHOS"). LEIS 4.771/65 (CÓDIGO FLORESTAL DE 1965), 6.766/79 (LEI DO PARCELAMENTO DO SOLO URBANO) E 6.938/81 (LEI DA POLÍTICA NACIONAL DO MEIO AMBIENTE). DESMEMBRAMENTO E LOTEAMENTO IRREGULAR. VEGETAÇÃO CILIAR OU RIPÁRIA. CORREDORES ECOLÓGICOS. RIO IVINHEMA. LICENCIAMENTO AMBIENTAL. NULIDADE DA AUTORIZAÇÃO OU LICENÇA AMBIENTAL. SILÊNCIO ADMINISTRATIVO. INEXISTÊNCIA, NO DIREITO BRASILEIRO, DE AUTORIZAÇÃO OU LICENÇA AMBIENTAL TÁCITA. PRINCÍPIO DA LEGITIMIDADE DO ATO ADMINISTRATIVO. SUSPENSÃO DE OFÍCIO DE LICENÇA E DE TERMO DE AJUSTAMENTO DE CONDUTA. VIOLAÇÃO DO ART. 535 DO CPC. PRECEDENTES DO STJ. 1. Trata-se, originariamente, de Ação Civil Pública ambiental movida pelo Ministério Público do Estado de Mato Grosso do Sul contra proprietários de 54 casas de veraneio ("ranchos"), bar e restaurante construídos em Área de Preservação Permanente - APP, um conjunto de aproximadamente 60 lotes e com extensão de quase um quilômetro e meio de ocupação da margem esquerda do Rio Ivinhema, curso de água com mais de 200 metros de largura. Pediu-se a desocupação da APP, a demolição das construções, o reflorestamento da região afetada e o pagamento de indenização, além da emissão de ordem cominatória de proibição de novas intervenções. A sentença de procedência parcial foi reformada pelo Tribunal de Justiça, com decretação de improcedência do pedido. ÁREA DE PRESERVAÇÃO PERMANENTE CILIAR 2. Primigênio e mais categórico instrumento de expressão e densificação da "efetividade" do "direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado", a Área de Preservação Permanente ciliar (= APP ripária, ripícola ou ribeirinha), pelo seu prestígio ético e indubitável mérito ecológico, corporifica verdadeira trincheira inicial e última - a bandeira mais reluzente, por assim dizer - do comando maior de "preservar e restaurar as funções ecológicas essenciais", prescrito no art. 225, caput e § 1º, I, da Constituição Federal. 3. Aferrada às margens de rios, córregos, riachos, nascentes, charcos, lagos, lagoas e estuários, intenta a APP ciliar assegurar, a um só tempo, a integridade físico-química da água, a estabilização do leito hídrico e do solo da bacia, a mitigação dos efeitos nocivos das enchentes, a barragem e filtragem de detritos, sedimentos e poluentes, a absorção de nutrientes pelo sistema radicular, o esplendor da paisagem e a própria sobrevivência da flora ribeirinha e fauna. Essas funções multifacetárias e insubstituíveis elevam-na ao status de peça fundamental na formação de corredores ecológicos, elos de conexão da biodiversidade, genuínas veias bióticas do meio ambiente. Objetivamente falando, a vegetação ripária exerce tarefas de proteção assemelhadas às da pele em relação ao corpo humano: faltando uma ou outra, a vida até pode continuar por algum tempo, mas, no cerne, muito além de trivial mutilação do sentimento de plenitude e do belo do organismo, o que sobra não passa de um ser majestoso em estado de agonia terminal. 4. Compreensível que, com base nessa ratio ético-ambiental, o legislador caucione a APP ripária de maneira quase absoluta, colocando-a no ápice do complexo e numeroso panteão dos espaços protegidos, ao prevê-la na forma de superfície intocável, elemento cardeal e estruturante no esquema maior do meio ambiente ecologicamente equilibrado. Por tudo isso, a APP ciliar qualifica-se como território non aedificandi. Não poderia ser diferente, hostil que se acha à exploração econômica direta, desmatamento ou ocupação humana (com as ressalvas previstas em lei, de caráter totalmente excepcional e em numerus clausus, v.g., utilidade pública, interesse social, intervenção de baixo impacto). 5. Causa dano ecológico in re ipsa, presunção legal definitiva que dispensa produção de prova técnica de lesividade específica, quem, fora das exceções legais, desmata, ocupa ou explora APP, ou impede sua regeneração, comportamento de que emerge obrigação propter rem de restaurar na sua plenitude e indenizar o meio ambiente degradado e terceiros afetados, sob regime de responsabilidade civil objetiva. Precedentes do STJ. LICENCIAMENTO AMBIENTAL 6. Se é certo que em licença, autorização ou Termo de Ajustamento de Conduta (TAC), ao Administrador, quando implementa a legislação ambiental, incumbe agregar condicionantes, coartações e formas de mitigação do uso e exploração dos recursos naturais - o que amiúde acontece, efeito de peculiaridades concretas da biota, projeto, atividade ou empreendimento -, não é menos certo que o mesmo ordenamento jurídico não lhe faculta, em sentido inverso, ignorar, abrandar ou fantasiar prescrições legais referentes aos usos restringentes que, por exceção, sejam admitidos nos espaços protegidos, acima de tudo em APP. 7. Em respeito ao princípio da legalidade, é proibido ao órgão ambiental criar direitos de exploração onde a lei previu deveres de preservação. Pela mesma razão, mostra-se descabido, qualquer que seja o pretexto ou circunstância, falar em licença ou autorização ambiental tácita, mormente por quem nunca a solicitou ou fê-lo somente após haver iniciado, às vezes até concluído, a atividade ou o empreendimento em questão. Se, diante de pleito do particular, o Administrador permanece silente, é intolerável que a partir da omissão estatal e do nada jurídico se entreveja salvo-conduto para usar e até abusar dos recursos naturais, sem prejuízo, claro, de medidas administrativas e judiciais destinadas a obrigá-lo a se manifestar e decidir. 8. Embora o licenciamento ambiental possa, conforme a natureza do empreendimento, obra ou atividade, ser realizado, conjunta ou isoladamente, pela União, Distrito Federal e Municípios, não compete a nenhum deles - de modo direto ou indireto, muito menos com subterfúgios ou sob pretexto de medidas mitigatórias ou compensatórias vazias ou inúteis - dispensar exigências legais, regulamentares ou de pura sabedoria ecológica, sob pena de, ao assim proceder, fulminar de nulidade absoluta e insanável o ato administrativo praticado, bem como de fazer incidir, pessoalmente, sobre os servidores envolvidos, as sanções da Lei dos Crimes contra o Meio Ambiente (arts. 66, 67 e 69-A) e da Lei da Improbidade Administrativa, às quais se agrega sua responsabilização civil em regime de solidariedade com os autores diretos de eventual dano causado. HIPÓTESE DOS AUTOS 9. O Recurso Especial em questão debate, entre outros pontos, os efeitos da suspensão de ofício da Licença de Operação 12/2008, emitida pelo órgão ambiental do Estado de Mato Grosso do Sul e incorporada às razões de decidir do acórdão recorrido. Nos Embargos de Declaração, o Parquet suscita, de maneira expressa, a suspensão de ofício da licença concedida, bem como diversas outras omissões. Em resposta, o respectivo acórdão limita-se a apontar pretensão supostamente infringente, sem examinar as impugnações, todas pertinentes para o deslinde da controvérsia. Por essa razão, vislumbro ofensa ao art. 535 do CPC. Precedentes do STJ em situações análogas. 10. Recurso Especial parcialmente provido para anular o acórdão dos Embargos de Declaração. (destaques aditados)
(STJ, REsp 1245149, Rel. Min. Herman Benjamin, Segunda Turma, v.u., DJe 13/06/2013).
In casu, a vistoria do feita pelo IBAMA em conjunto com a Polícia Militar Ambiental/Corumbá/MS (id 281246236) contatou que:
3. No local determinado, Rancho Seriema, foi constatado que a construção, ainda que bastante rústica, encontra-se na área de preservação permanente, onde em tempos passados e não precisos, houve supressão da vegetação, assim como nos demais ranchos perfilados às margens da Baía de Albuquerque;
Consta, outrossim, do parecer técnico da SEMADS/MS, elaborado em 1996 para instruir o primeiro pedido de licenciamento feito pelos réus, que (id 28124239):
“O empreendimento encontra-se dentro da área de preservação permanente, foi implantado há aproximadamente 10 anos, o local apresenta descaracterizado, a cobertura vegetal consiste em sua maior parte de gramíneas e poucas árvores esparsas. Na região ocorre períodos de cheia, permanecendo o local totalmente alagado, no entanto, nessa época o acesso ao local se dá apenas de barco.”
É certo, por outro lado, tal como mencionaram os réus apelantes, que o laudo de perícia criminal id 281246236 (pág. 12/20) considerou que as construções existentes nos terrenos não estariam em APP, porquanto foram erguidas na faixa sujeita à cheia ordinária do Rio Paraguai, conceituado pelo Código de Águas como Álveo (resposta ao quesito nº2), à luz do disposto no artigo 2º, “a”, da Lei nº 4.771/65. A conclusão do perito, portanto, fundou-se na legislação revogada, que previa que a área protegida seria contada a partir do nível mais alto do rio. Entretanto, é aplicável ao caso o Código Florestal vigente, não apenas em razão de a ação ter sido proposta já na sua vigência, mas também porque, como bem pontuou o magistrado, por força do entendimento sedimentado pelo STF, verbis:
O primeiro ponto a ser enfrentado envolve a localização do imóvel em área de preservação ambiental. Segundo o Laudo nº 1971/2011-SETEC/SR/DPF/MS (Id. 15502273), o local periciado não estaria em área de preservação permanente nos termos do art. 2º da Lei nº 4.771/1965, ou seja, conforme o antigo Código Florestal.
Todavia, há o entendimento no Supremo Tribunal Federal “no sentido de que a aplicação dos princípios tempus regit actum e do não retrocesso ambiental para fazer incidir a Lei 4.771/1965 (Código Florestal revogado) em detrimento da Lei 12.651/2012 (Novo Código Florestal) afronta o que restou decidido pelo Plenário deste E. STF no julgamento das Ações Diretas de Inconstitucionalidade n. 4.937, 4.903 e 4.902 e da Ação Declaratória de Constitucionalidade n. 42, bem como em inobservância da Súmula Vinculante nº 10” (STF, Rcl nº 49147, Relator Edson Fachin, Julgado em 29/04/2022).
Aplica-se, portanto, o art. 4º da Lei 12.651/12, a qual estabelece as seguintes distâncias: (...omissis)
Assim, em que pese o laudo da Polícia Federal tenha consignado que a área não fica em APP, a conclusão deve ser outra. De acordo com o próprio laudo, "o local se caracterizada por apresentar as seguintes construções, sendo que a mais próxima distava aproximadamente 10 metros da margem do rio Paraguai", valor inferior ao menor marco legal.
Em audiência, as testemunhas também foram uníssonas em confirmar que, à luz da nova legislação, há edificação em área de preservação ambiental:
LUIZ SPRICIGO JUNIOR afirmou: que os exames na região foram iniciados entre os anos de 2009 e 2010 e que a construção em questão foi analisada em 2011; que conhece a área e existem diversas construções em semelhante situação; que, em geral, são construções feitas à beira do Rio Paraguai e preparadas para o alagamento, que é frequente na cheia do rio; que de principal dano que se vê na área em relação às construções são a supressão da mata nativa, a compactação e impermeabilização do solo, que dificultam bastante a recomposição da vegetação nativa, e a impede enquanto perdurar a situação; que também existe dano ambiental em razão da poluição doméstica lançada no rio, mas individualmente é difícil quantificar esse dano e que o volume do rio dilui a poluição; que o dano da região como um todo é efetivo, mas pontualmente não é nada tão sério assim; que não se recorda se especificamente em relação ao imóvel objeto da ação havia tratamento de lixo, mas se não houver coleta adequada, sim, ele vai acabar no meio ambiente gerando poluição tanto física quanto química; que a pousada se localizava exatamente à margem do rio; que, pelo Código Florestal antigo, quando foi feita a análise, nós consideramos como área de álveo, mas hoje em dia, sim, pela forma de cálculo do atual Código Florestal, ela se localiza em APP sem a menor dúvida; que eventual ampliação da área aumentaria o solo impermeabilizado, que aumentaria a área de APP atingida, que tem como função primordial manter a margem do rio, mantendo o rio preservado evitando que sedimentos caiam lá dentro.
ALEXANDRE PIRES DIAS TEIXEIRA afirmou: que é engenheiro civil e, portanto, tinha a função de examinar as edificações realizadas, cabendo a análise ambiental ao colega LUIZ SPRICIGO; que, pelo laudo, recorda-se que não região existiam diversas construções, com quiosque, depósito e palafita, tudo construído na beira do rio; que as construções impedem a recuperação da vegetação, que a ação humana leva à destinação de dejetos no rio, que os veículos que circulam compactam o solo; que não se recorda sobre esgoto jogado no rio; que não tem expertise profunda em questões ambientais, mas que, pela perícia, à época, o ponto não era considerado APP, mas não sabe como seria hoje com o Novo Código Florestal; que a casa construída era grande, com 325m2; que não se recorda ao certo qual era a utilização do imóvel, em razão do tempo.
Assim, não restam dúvidas que há edificações em área de preservação ambiental.
Aliás, em depoimento prestado em juízo, o próprio perito responsável pela elaboração do laudo criminal em questão, Luiz Spricigo Junior, declarou que: “pelo Código Florestal antigo, quando foi feita a análise, nós consideramos como área de álveo, mas hoje em dia, sim, pela forma de cálculo do atual Código Florestal, ela se localiza em APP, sem a menor dúvida. ” (id 281246579).
A vegetação nativa, assim, foi extirpada do terreno, cujas construções estão totalmente dentro da APP, de modo que está impedida de se recuperar naturalmente.
Evidencia-se, ademais, que a infração ora analisada, ocupação não autorizada em área de preservação permanente, não se esgotou com o erigir das construções. Trata-se de conduta infracional continuada, que se protrai no tempo, porquanto contínua a utilização do espaço em desacordo com as normas de proteção ambiental, a agravar cada vez mais os danos ambientais no local, na medida em que impede a natural regeneração da vegetação.
Com relação à invocação da possibilidade de regularização do local com base nos artigos 61-A do Código Florestal vigente, de acordo com os elementos constantes dos autos o imóvel é destinado à moradia dos possuidores e suas famílias, bem como à locação de quartos para turistas. Tais atividades que não podem ser classificadas como turismo rural ou ecoturismo, para os fins do mencionado dispositivo, consoante destacou o Parquet em seu parecer (id 285379978, págs. 17 e 18):
de acordo com a definição contida no livreto “Turismo Rural, Orientações Básicas, 2ª edição”, publicado pelo Ministério do Turismo, “Turismo rural é o conjunto de atividades turísticas desenvolvidas no meio rural, comprometido com a produção agropecuária, agregando valor a produtos e serviços, resgatando e promovendo o patrimônio cultural e natural da comunidade.” (pág. 18) (grifo não original.) Dessa forma, a mera locação de quartos para turistas e até mesmo a prestação de algum outro tipo de serviço, como passeios de barco, não caracteriza a atividade como Turismo Rural, sendo necessário que haja comprometimento com a produção agropecuária e que se promova o patrimônio cultural e natural como elementos da oferta turística, o que não ocorre no caso em tela. Tampouco se pode dizer que são desenvolvidas atividades de ecoturismo, assim conceituado no livreto “Ecoturismo: Orientações Básicas, 2ª Edição”, publicado pelo Ministério do Turismo: ”Ecoturismo é um segmento da atividade turística que utiliza, de forma sustentável, o patrimônio natural e cultural, incentiva sua conservação e busca a formação de uma consciência ambientalista por meio da interpretação do ambiente, promovendo o bem-estar das populações” (pág. 17) (grifo não original.) No caso específico dos autos, os requeridos não utilizam o patrimônio natural de forma sustentável e, muito menos, conservam, incentivam a conservação ou busca a formação de uma consciência ambientalista, a não ser que suprimir a vegetação nativa, construir em APP e despejar lixo a céu aberto possa, de alguma forma, contribuir para tais finalidades.
Ressalte-se, ademais, que o STJ já pacificou que as casas de lazer/veraneio não se enquadram como atividade de turismo ou ecoturismo, a possibilitar sua continuidade:
AMBIENTAL. ADMINISTRATIVO. PROTEÇÃO AMBIENTAL. CONSTRUÇÕES EM MARGEM DE RIO. CASA DE VERANEIO. REPARAÇÃO DE DANOS. RECURSO ESPECIAL PARCIALMENTE PROVIDO PARA RESTABELECER SENTENÇA. NÃO INCIDÊNCIA DE EXCEÇÃO PREVISTA NO CÓDIGO FLORESTAL.
I - A existência de jurisprudência dominante desta Corte Superior sobre a matéria autoriza o improvimento do recurso especial por meio de decisão monocrática, estando o princípio da colegialidade "[...] preservado ante a possibilidade de submissão da decisão singular ao
controle recursal dos órgãos colegiados. Precedentes." (AgInt no REsp 1.336.037/RS, Rel. Ministro Gurgel de Faria, Primeira Turma, julgado em 1º/12/2016, DJe 6/2/2017), nos termos do enunciado n. 568 da Súmula do STJ e do art. 255, § 4º, do RISTJ, c/c o art. 932, inciso VIII, do Código de Processo Civil de 2015.
II - Trata-se de ação civil pública promovida pelo ora recorrente com o objetivo de condenar o recorrido (a) a desocupar, demolir e remover as edificações erguidas em área de preservação permanente localizada a menos de cem metros do Rio Ivinhema, (b) a abster-se de promover qualquer intervenção ou atividade na área de preservação permanente, (c) a reflorestar toda a área degradada situada nos limites do lote descrito na petição inicial.
III - A sentença foi pela procedência, subindo o feito ao Tribunal de origem por conta de apelação do particular, que obteve êxito com a reforma imposta no acórdão impugnado, em cuja motivação nota-se que, apesar de concluir que algumas edificações foram promovidas em área de preservação permanente, causando supressão da vegetação local - o que violaria a legislação ambiental -, o Tribunal de origem reconheceu que a situação encontrava-se consolidada, concluindo, assim, por serem descabidos a desocupação, a demolição de edificações e o reflorestamento da área. Reconheceu, ainda, a possibilidade de se aplicar o art. 61-A do Novo Código Florestal, ao caso dos autos.
IV - Assim como ocorreu em precedente relatado pela Ministra Eliana Calmon, também a presente demanda vem ao Superior Tribunal de Justiça. Isso porque o Tribunal de origem, mesmo reconhecendo que as casas de veraneio estavam construídas em área de preservação permanente e que, para tal, promoveram a "supressão da vegetação local", concluiu que não era dado impor ao recorrido o dever de reparar o dano causado, à conta de a situação consolidar-se no tempo e de que o art. 4º, § 3º, da Lei n. 4.771/1965 possibilitava o resguardo da prática de atividades de interesse social desde que não descaracterizassem a cobertura vegetal e não prejudicassem a função ambiental da área.
V - O simples fato de ter havido a consolidação da situação no tempo não torna menos ilegal toda essa quadra.
VI - Teoria do fato consumado em matéria ambiental equivale a perpetuar, a perenizar um suposto direito de poluir que vai de encontro, no entanto, ao postulado do meio ambiente equilibrado como bem de uso comum do povo essencial à sadia qualidade de vida, assim como é repelido pela nossa jurisprudência e pela da mais alta Corte do país. Precedentes: RE 609748 AgR, Relator(a): Min. Luiz Fux, Primeira Turma, julgado em 23/08/2011, DJe-175 Divulg 12-09-2011 Public 13-09-2011 Ement VOL-02585-02 PP-00222; REsp 948.921/SP, Rel. Ministro Herman Benjamin, Segunda Turma, julgado em 23/10/2007, DJe 11/11/2009.
VII - Há de salientar-se ainda que as exceções legais a esse entendimento encontram-se previstas nos arts. 61-A a 65 do Código Florestal, dentre as quais não se insere a pretensão de manutenção de casas de veraneio, como decidido noutro feito: REsp 1.362.456/MS, Rel. Ministro Mauro Campbell Marques, Segunda Turma, julgado em 20/6/2013, DJe 28/6/2013.
VIII - Correta, portanto, a decisão monocrática ao dar parcial provimento ao recurso especial para reformar o acórdão regional recorrido, restabelecendo os termos da sentença.
IX - Agravo interno improvido.
(AgInt no REsp 1495757 / MS; Rel. Min. Francisco Falcão; j. em 06/03/2018)
ADMINISTRATIVO E PROCESSUAL CIVIL. AGRAVO INTERNO NOS EMBARGOS DE DECLARAÇÃO NO AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. OCUPAÇÃO E EDIFICAÇÃO EM ÁREA DE PRESERVAÇÃO PERMANENTE, NAS PROXIMIDADES DO RIO IVINHEMA/MS. SUPRESSÃO DA VEGETAÇÃO. CONCESSÃO DE LICENÇA ADMINISTRATIVA. ILEGALIDADE. INAPLICABILIDADE DA TEORIA DO FATO CONSUMADO, EM MATÉRIA DE DIREITO AMBIENTAL. DEVER DE REPARAÇÃO DO AGENTE CAUSADOR DO DANO AMBIENTAL. PRECEDENTES DO STJ, EM CASOS IDÊNTICOS. AGRAVO INTERNO IMPROVIDO.
I. Agravo interno aviado contra decisão publicada em 31/08/2017,que, por sua vez, julgara recurso interposto contra decisum publicado na vigência do CPC/73. II. Na origem, trata-se de ação civil pública, ajuizada pelo Ministério Público do Estado de Mato Grosso do Sul, com o objetivo de obter a condenação do ora agravante em obrigação de fazer, consistente em desocupar, demolir e remover todas as construções, cercas e demais intervenções realizadas em área de preservação permanente, localizada nas proximidades do Rio Ivinhema/MS, bem como em reflorestar toda a área degradada e pagar indenização pelos danos ambientais. A sentença julgou a ação procedente, em parte, negando a indenização postulada, por entender que "não pode a ação civil pública ter por objeto a condenação em dinheiro e, concomitantemente, a obrigação de fazer e de não fazer", em face do art. 3º da Lei 7.347/85.
III. O Tribunal de origem, apesar de reconhecer a existência de edificações, em área de preservação permanente, com supressão da vegetação, em afronta à legislação ambiental, reformou a sentença, para julgar improcedente a ação, sob o fundamento de que a situação encontra-se consolidada, em razão de prévia licença concedida pelo Instituto de Meio Ambiente de Mato Grosso do Sul - IMASUL, sendo, assim, descabida a aplicação das medidas de desocupação, demolição de edificações e reflorestamento da área, determinadas pela sentença, sob pena de ofensa aos princípios da razoabilidade e da proporcionalidade. O Recurso Especial do Ministério Público do Estado do Mato Grosso do Sul postula o restabelecimento da sentença.
IV. O STJ, em casos idênticos, firmou entendimento no sentido de que, em tema de Direito Ambiental, não se admite a incidência da teoria do fato consumado. Nesse contexto, devidamente constatada a edificação, em área de preservação permanente, a concessão de licenciamento ambiental, por si só, não afasta a responsabilidade pela reparação do dano causado ao meio ambiente, mormente quando reconhecida a ilegalidade do aludido ato administrativo, como na hipótese. Nesse sentido: STJ, REsp 1.394.025/MS, Rel. Ministra ELIANA CALMON, SEGUNDA TURMA, DJe de 18/10/2013; REsp 1.362.456/MS, Rel. Ministro MAURO CAMPBELL MARQUES, SEGUNDA TURMA, DJe de 28/06/2013.
V. Na forma da jurisprudência, "'o novo Código Florestal não pode retroagir para atingir o ato jurídico perfeito, os direitos ambientais adquiridos e a coisa julgada, tampouco para reduzir de tal modo e sem as necessárias compensações ambientais o patamar de proteção de ecossistemas frágeis ou espécies ameaçadas de extinção, a ponto de transgredir o limite constitucional intocável e intransponível da 'incumbência' do Estado de garantir a preservação e a restauração dos processos ecológicos essenciais (art. 225, § 1º, I)' (AgRg no REsp 1.434.797/PR, Rel. Ministro Humberto Martins, Segunda Turma, julgado em 17/05/2016, DJe 07/06/2016)" (STJ, AgInt no AgInt no AREsp 850.994/SP, Rel. Ministro MAURO CAMPBELL MARQUES, SEGUNDA TURMA, DJe de 19/12/2016). Ademais, as exceções legais, previstas nos arts. 61-A a 65 do Código Florestal (Lei 12.651/2012), não se aplicam para a pretensão de manutenção de casas de veraneio, como na hipótese. Nesse sentido: STJ, AgInt nos EDcl no REsp 1.447.071/MS, Rel. Ministro HERMAN BENJAMIN, SEGUNDA TURMA, DJe de 02/02/2017; AgInt nos EDcl no REsp 1.468.747/MS, Rel. Ministro HERMAN BENJAMIN, SEGUNDA TURMA, DJe de 06/03/2017; AgRg nos EDcl no REsp 1.381.341/MS, Rel. Ministro HUMBERTO MARTINS, SEGUNDA TURMA, DJe de 25/05/2016.
VI. Estando o acórdão recorrido em dissonância com o entendimento atual e dominante desta Corte, deve ser mantida a decisão ora agravada, que deu provimento ao Recurso Especial do Ministério Público de Mato Grosso do Sul, para restabelecer a sentença, que julgara parcialmente procedente a presente Ação Civil Pública.
VII. Agravo interno improvido.
(AgInt nos EDcl no AREsp 359140; Rel. Min. Assusete Magalhães; j. em 07/12/2017)
Relativamente ao argumento dos réus apelantes de que o imóvel estaria em zona urbana e deve ser considerado como intervenção consolidada, diga-se, primeiramente, que as imagens e todos os pareceres técnicos existentes no feito deixam fora de dúvida de que o local é rural. Porém, ainda que assim admitido, não poderia ser qualificado “área urbana consolidada”, nos moldes do artigo 3º do Código Florestal, na medida em que não atende aos seus requisitos:
Art. 3º Para os efeitos desta Lei, entende-se por: (...) XXVI – área urbana consolidada: aquela que atende os seguintes critérios:
a) estar incluída no perímetro urbano ou em zona urbana pelo plano diretor ou por lei municipal específica; b) dispor de sistema viário implantado; c) estar organizada em quadras e lotes predominantemente edificados; d) apresentar uso predominantemente urbano, caracterizado pela existência de edificações residenciais, comerciais, industriais, institucionais, mistas ou direcionadas à prestação de serviços; e) dispor de, no mínimo, 2 (dois) dos seguintes equipamentos de infraestrutura urbana implantados: 1. drenagem de águas pluviais; 2. esgotamento sanitário; 3. abastecimento de água potável; 4. distribuição de energia elétrica e iluminação pública; e 5. limpeza urbana, coleta e manejo de resíduos sólidos.
Aduza-se que tampouco é passível de regularização fundiária. A Lei nº 13.465/2017 estabeleceu o seguinte:
Art. 11. Para fins desta Lei, consideram-se:
I e II - omissis
III - núcleo urbano informal consolidado: aquele de difícil reversão, considerados o tempo da ocupação, a natureza das edificações, a localização das vias de circulação e a presença de equipamentos públicos, entre outras circunstâncias a serem avaliadas pelo Município;
(...)
§ 2º Constatada a existência de núcleo urbano informal situado, total ou parcialmente, em área de preservação permanente ou em área de unidade de conservação de uso sustentável ou de proteção de mananciais definidas pela União, Estados ou Municípios, a Reurb observará, também, o disposto nos arts. 64 e 65 da Lei nº 12.651, de 25 de maio de 2012 , hipótese na qual se torna obrigatória a elaboração de estudos técnicos, no âmbito da Reurb, que justifiquem as melhorias ambientais em relação à situação de ocupação informal anterior, inclusive por meio de compensações ambientais, quando for o caso.
Por sua vez, os artigos 64 e 65 do Código Florestal mencionado nessa regra dispõem que:
Art. 64. Na Reurb-S dos núcleos urbanos informais que ocupam Áreas de Preservação Permanente, a regularização fundiária será admitida por meio da aprovação do projeto de regularização fundiária, na forma da lei específica de regularização fundiária urbana. (Redação dada pela Lei nº 13.465, de 2017)
(...)
Art. 65. Na Reurb-E dos núcleos urbanos informais que ocupam Áreas de Preservação Permanente não identificadas como áreas de risco, a regularização fundiária será admitida por meio da aprovação do projeto de regularização fundiária, na forma da lei específica de regularização fundiária urbana. (Redação dada pela Lei nº 13.465, de 2017)
É incontroverso nos autos que a área é de risco de inundações sazonais, tanto assim que as construções em questão foram erguidas sobre palafitas, de modo que é incontornável que a área não é passível de regularização.
Não bastasse, a controvérsia sobre o assunto foi definitivamente encerrada pelo Superior Tribunal de Justiça ao apreciar o tema 1010, ocasião em que entendeu que:
RECURSO ESPECIAL REPETITIVO. AMBIENTAL. CONTROVÉRSIA A ESPEITO DA INCIDÊNCIA DO ART. 4º, I, DA LEI N. 12.651/2012 (NOVO CÓDIGO FLORESTAL) OU DO ART. 4º, CAPUT, III, DA LEI N. 6.766/1979 (LEI DE PARCELAMENTO DO SOLO URBANO). DELIMITAÇÃO DA EXTENSÃO DA FAIXA NÃO EDIFICÁVEL A PARTIR DAS MARGENS DE CURSOS D'ÁGUA NATURAIS EM TRECHOS CARACTERIZADOS COMO ÁREA URBANA CONSOLIDADA.
1. Nos termos em que decidido pelo Plenário do STJ na sessão de 9/3/2016, aos recursos interpostos com fundamento no CPC/2015 (relativos a decisões publicadas a partir de 18 de março de 2016) serão exigidos os requisitos de admissibilidade recursal na forma nele prevista (Enunciado Administrativo n. 3).
2. Discussão dos autos: Trata-se de mandado de segurança impetrado contra ato de Secretário Municipal questionando o indeferimento de pedido de reforma de imóvel derrubada de casa para construção de outra) que dista menos de 30 (trinta) metros do Rio Itajaí-Açu, encontrando-se em Área de Preservação Permanente urbana. O acórdão recorrido negou provimento ao reexame necessário e manteve a concessão da ordem a fim de que seja observado no pedido administrativo a Lei de Parcelamento do Solo Urbano (Lei n. 6.766/1979), que prevê o recuo de 15 (quinze) metros da margem do curso d´água.
3. Delimitação da controvérsia: Extensão da faixa não edificável a partir das margens de cursos d'água naturais em trechos caracterizados como área urbana consolidada: se corresponde à área de preservação permanente prevista no art. 4°, I, da Lei n. 12.651/2012 (equivalente ao art. 2°, alínea "a", da revogada Lei n. 4.771/1965), cuja largura varia de 30 (trinta) a 500 (quinhentos) metros, ou ao recuo de 15 (quinze) metros determinado no art. 4°, caput, III, da Lei n. 6.766/1979.
4. A definição da norma a incidir sobre o caso deve garantir a melhor e mais eficaz proteção ao meio ambiente natural e ao meio ambiente artificial, em cumprimento ao disposto no art. 225 da CF/1988, sempre com os olhos também voltados ao princípio do desenvolvimento sustentável (art. 170, VI,) e às funções social e ecológica da propriedade.
5. O art. 4º, caput, inciso I, da Lei n. 12.651/2012 mantém-se hígido no sistema normativo federal, após os julgamentos da ADC n. 42 e das ADIs ns. 4.901, 4.902, 4.903 e 4.937.
6. A disciplina da extensão das faixas marginais a cursos d'água no meio urbano foi apreciada inicialmente nesta Corte Superior no julgamento do REsp 1.518.490/SC, Relator Ministro Og Fernandes, Segunda Turma, DJe de 15/10/2019, precedente esse que solucionou, especificamente, a antinomia entre a norma do antigo Código Florestal (art. 2º da Lei n. 4.771/1965) e a norma da Lei de Parcelamento do Solo Urbano (art. 4º, III, da Lei n. 6.766/1976), com a afirmação de que o normativo do antigo Código Florestal é o que deve disciplinar a largura mínima das faixas marginais ao longo dos cursos d'água no meio urbano. Nesse sentido: Resp 1.505.083/SC, Rel. Min. Napoleão Nunes Maia Filho, Primeira Turma, Dje 10/12/2018; AgInt no REsp 1.484.153/SC, Rel. Min. Gurgel de Faria, Primeira Turma, DJe 19/12/2018; REsp 1.546.415/SC, Rel. Min. Og Fernandes, Segunda Turma, DJe 28/2/2019; e AgInt no REsp 1.542.756/SC, Rel. Min. Mauro Campbell Marques, DJe 2/4/2019.
7. Exsurge inarredável que a norma inserta no novo Código Florestal (art. 4º, caput, inciso I), ao prever medidas mínimas superiores para as faixas marginais de qualquer curso d’água natural perene e intermitente, sendo especial e específica para o caso em face do previsto no art. 4º, III, da Lei n. 6.766/1976, é a que deve reger a proteção das APPs ciliares ou ripárias em áreas urbanas consolidadas, espaços territoriais especialmente protegidos (art. 225, III, da CF/1988), que não se condicionam a fronteiras entre o meio rural e o urbano.
8. A superveniência da Lei n. 13.913, de 25 de novembro de 2019, que suprimiu a expressão “[...] salvo maiores exigências da legislação específica.” do inciso III do art. 4º da Lei n. 6.766/1976, não afasta a aplicação do art. 4º, caput, e I, da Lei n. 12.651/2012 às áreas urbanas de ocupação consolidada, pois, pelo critério da especialidade, esse normativo do novo Código Florestal é o que garante a mais ampla proteção ao meio ambiente, em áreas urbana e rural, e à coletividade.
9. Tese fixada - Tema 1010/STJ: Na vigência do novo Código Florestal (Lei n. 12.651/2012), a extensão não edificável nas Áreas de Preservação Permanente de qualquer curso d’água, perene ou intermitente, em trechos caracterizados como área urbana consolidada, deve respeitar o que disciplinado pelo seu art. 4º, caput, inciso I, alíneas a, b, c, d e e, a fim de assegurar a mais ampla garantia ambiental a esses espaços territoriais especialmente protegidos e, por conseguinte, à coletividade. 10. Recurso especial conhecido e provido. 11. Acórdão sujeito ao regime previsto no art. 1.036 e seguintes do CPC/2015.
Desse modo, ainda que se admitisse a área ora questionada como urbana consolidada, como defendem os réus, nos termos do Código Florestal vigente, haveria que se respeitar a APP delimitada no seu art. 4º, caput, inciso I, alíneas a, b, c, d e e, vale dizer, a faixa que varia de 30 a 500 metros, segundo a largura do curso d’água.
Por fim, descabida a invocação do artigo 8º do Código Florestal, que possibilita a intervenção ou supressão de vegetação e APP em casos de baixo impacto ambiental, porquanto não encontra suporte na prova dos autos. Ao contrário, a par de os réus não terem obtido o necessário licenciamento nas ocasiões em que os requereram, o parecer técnico da Fundação do Meio Ambiente do Pantanal (FMAP), em resposta ao ofício n. 1301/2018/MPF/CRA/MS/MOPJ, afirmou que o empreendimento é de alto potencial poluidor (Id. 281246241 - Pág. 29/31).
VIII. DA INDENIZAÇÃO PELO DANO AMBIENTAL
A proteção integral ao meio ambiente, primado constante do artigo 225, § 3º, da CF/1988, autoriza impor ao agente infrator obrigações de fazer, não fazer e indenizar. Tal cominação cumulativa é plenamente admitida e, ainda, amplamente reconhecida por toda a doutrina e jurisprudência. Pela própria definição constitucional (art. 225, caput, CF), o meio ambiente é primacialmente coletivo e sua proteção, seja da flora ou da fauna, respeita seus aspectos material e espiritual e deve ser considerado no seu conjunto, como é a expressão do legislador: meio ambiente ecologicamente equilibrado e essencial à sadia qualidade de vida. De acordo com José Rubens Morato Leite (2003, p. 249):
Não se aprecia subjetivamente a conduta do poluidor, mas a ocorrência do resultado prejudicial ao homem e a seu ambiente. A atividade poluente acaba sendo uma apropriação pelo poluidor dos direitos de outrem, pois na realidade a emissão é um confisco dos direitos de alguém em respirar ar puro, beber água saudável e viver com tranquilidade.
O autor ainda ressalta:
O dano extrapatrimonial está muito vinculado ao direito da personalidade, mas não restringido, pois este é conhecido tradicionalmente como atinente à pessoa física e no que concerne ao dano ambiental, abraçando uma caracterização mais abrangente e solidária, tratando-se, ao mesmo tempo, de um direito individual e um direito da coletividade. O direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado está ligado a um direito fundamental de todos e se reporta à qualidade de vida que se configura como valor imaterial da coletividade. (p. 266-267).
Veja-se, a propósito, entendimento do STJ sobre o dano moral coletivo:
PROCESSUAL CIVIL E AMBIENTAL. AÇÃO CIVIL PÚBLICA PARA COIBIR A PRÁTICA RECORRENTE DE POLUIÇÃO SONORA. MINISTÉRIO PÚBLICO. LEGITIMIDADE RECONHECIDA. DANO MORAL COLETIVO. POLUIÇÃO SONORA. OCORRÊNCIA. PRECEDENTES. REDUÇÃO DA INDENIZAÇÃO. REEXAME DE FATOS E PROVAS. INCIDÊNCIA DA SÚMULA 7/STJ. 1. Recurso especial decorrente de ação civil pública em que se discute danos morais coletivos decorrentes de poluição sonora e irregularidade urbanística provocadas por funcionamento dos condensadores e geradores colocados no fundo do estabelecimento das condenadas. 2. Tratando-se de poluição sonora, e não de simples incômodo restrito aos lindeiros de parede, a atuação do Ministério Público não se dirige à tutela de direitos individuais de vizinhança, na acepção civilística tradicional, e, sim, à defesa do meio ambiente, da saúde e da tranquilidade pública, bens de natureza difusa. O Ministério Público possui legitimidade para propor Ação Civil Pública com o fito de prevenir ou cessar qualquer tipo de poluição, inclusive sonora, bem como buscar a reparação pelos danos dela decorrentes. Nesse sentido: REsp 1.051.306/MG, Rel. Ministro CASTRO MEIRA, Rel. p/ Acórdão Ministro HERMAN BENJAMIN, SEGUNDA TURMA, julgado em 16/10/2008, DJe 10/09/2010. 3. "Tratando-se de poluição sonora, e não de simples incômodo restrito aos lindeiros de parede, a atuação do Ministério Público não se dirige à tutela de direitos individuais de vizinhança, na acepção civilística tradicional, e, sim, à defesa do meio ambiente, da saúde e da tranquilidade pública, bens de natureza difusa" (REsp 1.051.306/MG, Rel. Ministro CASTRO MEIRA, Rel. p/ Acórdão Ministro HERMAN BENJAMIN, SEGUNDA TURMA, julgado em 16/10/2008, DJe 10/09/2010.). 4. "O dano moral coletivo, assim entendido o que é transindividual e atinge uma classe específica ou não de pessoas, é passível de comprovação pela presença de prejuízo à imagem e à moral coletiva dos indivíduos enquanto síntese das individualidades percebidas como segmento, derivado de uma mesma relação jurídica-base. (...) O dano extrapatrimonial coletivo prescinde da comprovação de dor, de sofrimento e de abalo psicológico, suscetíveis de apreciação na esfera do indivíduo, mas inaplicável aos interesses difusos e coletivos". Nesse sentido: REsp 1.410.698/MG, Rel. Ministro HUMBERTO MARTINS, SEGUNDA TURMA, julgado em 23/06/2015, DJe 30/06/2015; REsp 1.057.274/RS, Rel. Ministra ELIANA CALMON, SEGUNDA TURMA, julgado em 01/12/2009, DJe 26/02/2010. 5. A Corte local, ao fixar o valor indenizatório em R$ 50.000,00 (cinquenta mil reais), o fez com base na análise aprofundada da prova constante dos autos. A pretensão da ora agravante não se limita à revaloração da prova apreciada do aresto estadual, mas, sim, ao seu revolvimento por este Tribunal Superior, o que é inviável. Incidência da Súmula 7 do Superior Tribunal de Justiça. Nesse sentido: AgRg no AREsp 430.850/SP, Rel. Ministro Herman Benjamin, Segunda Turma, DJe 07/03/2014. Agravo regimental improvido. ..
(AGARESP 201501613818; Rel. Min. HUMBERTO MARTINS; 2ª Turma; DJE DATA:14/09/2015)
Ressalte-se, ademais, que aquela corte entende que não há óbice à cumulação da obrigação de reparar a área e de indenizar:
"ADMINISTRATIVO. AMBIENTAL. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. DESMATAMENTO E EDIFICAÇÃO EM ÁREA DE PRESERVAÇÃO PERMANENTE, SEM AUTORIZAÇÃO DA AUTORIDADE AMBIENTAL. DANO S CAUSADOS À BIOTA. INTERPRETAÇÃO DOS ARTS. 4º, VII, E 14, § 1º, DA LEI 6.938/1981, E DO ART. 3º DA LEI 7.347/85. PRINCÍPIOS DA REPARAÇÃO INTEGRAL, DO POLUIDOR-PAGADOR E DO USUÁRIO-PAGADOR. POSSIBILIDADE DE CUMULAÇÃO DE OBRIGAÇÃO DE FAZER (REPARAÇÃO DA ÁREA DEGRADADA) E DE PAGAR QUANTIA CERTA (INDENIZAÇÃO). REDUCTION AD PRISTINUM STATUM. DANO AMBIENTAL INTERMEDIÁRIO, RESIDUAL E MORAL COLETIVO. ART. 5º DA LEI DE INTRODUÇÃO AO CÓDIGO CIVIL. INTERPRETAÇÃO IN DUBIO PRO NATURA DA NORMA AMBIENTAL. 1. Cuidam os autos de Ação Civil Pública proposta com o fito de obter responsabilização por danos ambientais causados pela supressão de vegetação nativa e edificação irregular em Área de Preservação Permanente. O juiz de primeiro grau e o Tribunal de Justiça de Minas Gerais consideraram provado o dano ambiental e condenaram o réu a repará-lo; porém, julgaram improcedente o pedido indenizatório pelo dano ecológico pretérito e residual. 2. A jurisprudência do STJ está firmada no sentido da viabilidade, no âmbito da Lei 7.347/85 e da Lei 6.938/81, de cumulação de obrigações de fazer, de não fazer e de indenizar (REsp 1.145.083/MG, Rel. Ministro Herman Benjamin, Segunda Turma, DJe 4.9.2012; REsp 1.178.294/MG, Rel. Ministro Mauro Campbell Marques, Segunda Turma, DJe 10.9.2010; AgRg nos EDcl no Ag 1.156.486/PR, Rel. Ministro Arnaldo Esteves Lima, Primeira Turma, DJe 27.4.2011; REsp 1.120.117/AC, Rel. Ministra Eliana Calmon, Segunda Turma, DJe 19.11.2009; REsp 1.090.968/SP, Rel. Ministro Luiz Fux, Primeira Turma, DJe 3.8.2010; REsp 605.323/MG, Rel. Ministro José Delgado, Rel. p/ Acórdão Ministro Teori Albino Zavascki, Primeira Turma, DJ 17.10.2005; REsp 625.249/PR, Rel. Ministro Luiz Fux, Primeira Turma, DJ 31.8.2006, entre outros). 3. Recurso Especial parcialmente provido para reconhecer a possibilidade de cumulação de indenização pecuniária com as obrigações de fazer e não fazer voltadas à recomposição in natura do bem lesado, devolvendo-se os autos ao Tribunal de origem para que fixe, in casu, o quantum debeatur reparatório do dano já reconhecido no acórdão recorrido." (destaques aditados)
(STJ, REsp 1328753, Rel. Min. Herman Benjamin, Segunda Turma, v.u., DJe 03/02/2015
"ADMINISTRATIVO. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. QUEIMADA EM ÁREA DE PRESERVAÇÃO PERMANENTE. DANOS CAUSADOS AO MEIO AMBIENTE. PRINCÍPIOS DA REPARAÇÃO INTEGRAL E DO POLUIDOR-PAGADOR. CUMULAÇÃO DE OBRIGAÇÃO DE FAZER (REPARAÇÃO DA ÁREA DEGRADADA) E DE PAGAR QUANTIA CERTA (INDENIZAÇÃO). POSSIBILIDADE. NATUREZA PROPTER REM. ART. 3º DA LEI 7.347/1985. INTERPRETAÇÃO DA NORMA AMBIENTAL. 1. A jurisprudência do STJ está firmada no sentido de que a necessidade de reparação integral da lesão causada ao meio ambiente permite a cumulação de obrigações de fazer, de não fazer e de indenizar, que têm natureza propter rem. Precedentes: REsp 1.178.294/MG, Rel. Ministro Mauro Campbell Marques, j. 10/8/2010; REsp 1.115.555/MG, Rel. Ministro Arnaldo Esteves Lima, j. 15/2/2011; AgRg no REsp 1170532/MG, Rel. Ministro Hamilton Carvalhido, j. 24/8/2010; REsp 605.323/MG, Rel. para acórdão Ministro Teori Albino Zavascki, j. 18/8/2005, entre outros. 2. Recurso Especial parcialmente provido para que se reconheça a possibilidade, em tese, de cumulação de indenização pecuniária com as obrigações de fazer voltadas à recomposição in natura do bem lesado, devolvendo-se os autos ao Tribunal a quo para que verifique se, na hipótese, há dano indenizável e fixe o eventual quantum debeatur." (destaques aditados)
(STJ, REsp 1164587, Rel. Min. HERMAN BENJAMIN, Segunda Turma, v.u., DJe 13/04/2012).
Esse entendimento foi inclusive consolidado por aquela corte superior na Súmula nº 629: “Quanto ao dano ambiental, é admitida a condenação do réu à obrigação de fazer ou à de não fazer cumulada com a de indenizar”.
Em consequência, cabível não só a restauração ambiental, como de igual modo o pagamento de indenização pecuniária, porque dita condenação "cumpre dois objetivos principais: dar uma resposta econômica aos danos sofridos pela vítima (o indivíduo e a sociedade) e dissuadir comportamentos semelhantes do poluidor ou de terceiros" (Edis Milaré, Direito do Ambiente - A Gestão Ambiental em foco. Doutrina. Jurisprudência. Glossário. São Paulo. RT, 2007, p. 818). Diga-se, outrossim, que a restauração busca assegurar o reequilíbrio ecológico para efeitos futuros, ao passo que a indenização tem por escopo a reparação dos malefícios causados ao meio ambiente ao longo do tempo passado, em decorrência do uso ilegal da APP, que, no caso dos autos, remonta a mais de duas décadas.
No caso concreto, é certo que o laudo de perícia criminal federal nº 1971/2011 (id 281246236) atestou que:
Quesito 7: Ocorreu desmatamento, exploração econômica ou degradação da floresta, plantada ou nativa, sem autorização do órgão competente?
No local periciado foram encontradas diversas construções que ocupam o espaço da vegetação original e que foi suprimida e que impedem sua regeneração natural.
A vistoria realizada pelo IBAMA (ofício 02038.000041/2013 – id 281246236) constatou que:
“4. Com relação à intervenção na área de preservação permanente, houve supressão da mata ciliar, é notável a antropização na faixa de APP se comparado a fitofisionomia predominante a margem oposta a Baía de Albuquerque. Contudo, podemos afirmar que essa antropização deu-se ainda quando o local era somente habitado por ribeirinho-pescadores profissionais e agricultores de subsistência, o que remonta à década de 1980 (...)” (grifei)
Os danos pretéritos, consumados durante o período de ocupação irregular em que houve a degradação da área protegida, não serão suficientemente revertidos pela recomposição do prejuízo ambiental causado durante todo o período de intervenção antrópica. Nesse sentido, destaco mais precedentes do Superior Tribunal de Justiça:
“ADMINISTRATIVO. AMBIENTAL. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. DESMATAMENTO DE VEGETAÇÃO NATIVA (CERRADO) SEM AUTORIZAÇÃO DA AUTORIDADE AMBIENTAL. DANOS CAUSADOS À BIOTA. INTERPRETAÇÃO DOS ARTS. 4º, VII, E 14, § 1º, DA LEI 6.938/1981, E DO ART. 3º DA LEI 7.347/85. PRINCÍPIOS DA REPARAÇÃO INTEGRAL, DO POLUIDOR-PAGADOR E DO USUÁRIOPAGADOR. POSSIBILIDADE DE CUMULAÇÃO DE OBRIGAÇÃO DE FAZER (REPARAÇÃO DA ÁREA DEGRADADA) E DE PAGAR QUANTIA CERTA (INDENIZAÇÃO). REDUCTION AD PRISTINUM STATUM. DANO AMBIENTAL INTERMEDIÁRIO, RESIDUAL E MORAL COLETIVO. ART. 5º DA LEI DE INTRODUÇÃO AO CÓDIGO CIVIL. INTERPRETAÇÃO IN DUBIO PRO NATURA DA NORMA AMBIENTAL.
1. Cuidam os autos de ação civil pública proposta com o fito de obter responsabilização por danos ambientais causados pelo desmatamento de vegetação nativa (Cerrado). O juiz de primeiro grau e o Tribunal de Justiça de Minas Gerais consideraram provado o dano ambiental e condenaram o réu a repará-lo; porém, julgaram improcedente o pedido indenizatório pelo dano ecológico pretérito e residual.
2. A legislação de amparo dos sujeitos vulneráveis e dos interesses difusos e coletivos deve ser interpretada da maneira que lhes seja mais favorável e melhor possa viabilizar, no plano da eficácia, a prestação jurisdicional e a “ratio essendi” da norma. A hermenêutica jurídico-ambiental rege-se pelo princípio in dubio pro natura.
3. Ao responsabilizar-se civilmente o infrator ambiental, não se deve confundir prioridade da recuperação in natura do bem degradado com impossibilidade de cumulação simultânea dos deveres de repristinação natural (obrigação de fazer), compensação ambiental e indenização em dinheiro (obrigação de dar), e abstenção de uso e de nova lesão (obrigação de não fazer).
4. De acordo com a tradição do Direito brasileiro, imputar responsabilidade civil ao agente causador de degradação ambiental difere de fazê-lo administrativa ou penalmente. Logo, eventual absolvição no processo criminal ou perante a Administração Pública não influi, como regra, na responsabilização civil, tirantes as exceções em numerus clausus do sistema legal, como a inequívoca negativa do fato ilícito (não ocorrência de degradação ambiental, p. ex.) ou da autoria (direta ou indireta), nos termos do art. 935 do Código Civil.
5. Nas demandas ambientais, por força dos princípios do poluidorpagador e da reparação in integrum, admite-se a condenação do réu, simultânea e agregadamente, em obrigação de fazer, não fazer e indenizar. Aí se encontra típica obrigação cumulativa ou conjuntiva. Assim, na interpretação dos arts. 4º, VII, e 14, § 1º, da Lei da Política Nacional do Meio Ambiente (Lei 6.938/81), e do art. 3º da Lei 7.347/85, a conjunção "ou" opera com valor aditivo, não introduz alternativa excludente. Essa posição jurisprudencial leva em conta que o dano ambiental é multifacetário (ética, temporal, ecológica e patrimonialmente falando, sensível ainda à diversidade do vasto universo de vítimas, que vão do indivíduo isolado à coletividade, às gerações futuras e aos próprios processos ecológicos em si mesmos considerados).
6. Se o bem ambiental lesado for imediata e completamente restaurado ao status quo ante (reductio ad pristinum statum, isto é, restabelecimento à condição original), não há falar, ordinariamente, em indenização. Contudo, a possibilidade técnica, no futuro (= prestação jurisdicional prospectiva), de restauração in natura nem sempre se mostra suficiente para reverter ou recompor integralmente, no terreno da responsabilidade civil, as várias dimensões do dano ambiental causado; por isso não exaure os deveres associados aos princípios do poluidor-pagador e da reparação “in integrum”.
7. A recusa de aplicação ou aplicação parcial dos princípios do poluidor-pagador e da reparação in integrum arrisca projetar, moral e socialmente, a nociva impressão de que o ilícito ambiental compensa. Daí a resposta administrativa e judicial não passar de aceitável e gerenciável "risco ou custo do negócio", acarretando o enfraquecimento do caráter dissuasório da proteção legal, verdadeiro estímulo para que outros, inspirados no exemplo de impunidade de fato, mesmo que não de direito, do infrator premiado, imitem ou repitam seu comportamento deletério.
8. A responsabilidade civil ambiental deve ser compreendida o mais amplamente possível, de modo que a condenação a recuperar a área prejudicada não exclua o dever de indenizar - juízos retrospectivo e prospectivo.
9. A cumulação de obrigação de fazer, não fazer e pagar não configura bis in idem, porquanto a indenização, em vez de considerar lesão específica já ecologicamente restaurada ou a ser restaurada, põe o foco em parcela do dano que, embora causada pelo mesmo comportamento pretérito do agente, apresenta efeitos deletérios de cunho futuro, irreparável ou intangível.
10. Essa degradação transitória, remanescente ou reflexa do meio ambiente inclui: a) o prejuízo ecológico que medeia, temporalmente, o instante da ação ou omissão danosa e o pleno restabelecimento ou recomposição da biota, vale dizer, o hiato passadiço de deterioração, total ou parcial, na fruição do bem de uso comum do povo (= dano interino ou intermediário ), algo frequente na hipótese, p. ex., em que o comando judicial, restritivamente, se satisfaz com a exclusiva regeneração natural e a perder de vista da flora ilegalmente suprimida, b) a ruína ambiental que subsista ou perdure, não obstante todos os esforços de restauração (= dano residual ou permanente), e c) o dano moral coletivo. Também deve ser reembolsado ao patrimônio público e à coletividade o proveito econômico do agente com a atividade ou empreendimento degradador, a mais-valia ecológica ilícita que auferiu (p. ex., madeira ou minério retirados irregularmente da área degradada ou benefício com seu uso espúrio para fim agrossilvopastoril, turístico, comercial).
11. No âmbito específico da responsabilidade civil do agente por desmatamento ilegal, irrelevante se a vegetação nativa lesada integra, ou não, Área de Preservação Permanente, Reserva Legal ou Unidade de Conservação, porquanto, com o dever de reparar o dano causado, o que se salvaguarda não é a localização ou topografia do bem ambiental, mas a flora brasileira em si mesma, decorrência dos excepcionais e insubstituíveis serviços ecológicos que presta à vida planetária, em todos os seus matizes.
12. De acordo com o Código Florestal brasileiro (tanto o de 1965, como o atual, a Lei 12.651, de 25.5.2012) e a Lei da Política Nacional do Meio Ambiente (Lei 6.938/81), a flora nativa, no caso de supressão, encontra-se uniformemente protegida pela exigência de prévia e válida autorização do órgão ambiental competente, qualquer que seja o seu bioma, localização, tipologia ou estado de conservação (primária ou secundária).
13. A jurisprudência do STJ está firmada no sentido da viabilidade, no âmbito da Lei 7.347/85 e da Lei 6.938/81, de cumulação de obrigações de fazer, de não fazer e de indenizar (REsp 1.145.083/MG, Rel. Ministro Herman Benjamin, Segunda Turma, DJe 4.9.2012; REsp 1.178.294/MG, Rel. Ministro Mauro Campbell Marques, Segunda Turma, DJe 10.9.2010; AgRg nos EDcl no Ag 1.156.486/PR, Rel. Ministro Arnaldo Esteves Lima, Primeira Turma, DJe 27.4.2011; REsp 1.120.117/AC, Rel. Ministra Eliana Calmon, Segunda Turma, DJe 19.11.2009; REsp 1.090.968/SP, Rel. Ministro Luiz Fux, Primeira Turma, DJe 3.8.2010; REsp 605.323/MG, Rel. Ministro José Delgado, Rel. p/ Acórdão Ministro Teori Albino Zavascki, Primeira Turma, DJ 17.10.2005; REsp 625.249/PR, Rel. Ministro Luiz Fux, Primeira Turma, DJ 31.8.2006, entre outros).
14. Recurso especial parcialmente provido para reconhecer a possibilidade, em tese, de cumulação de indenização pecuniária com as obrigações de fazer e não fazer voltadas à recomposição in natura do bem lesado, devolvendo-se os autos ao Tribunal de origem para que verifique se, na hipótese, há dano indenizável e fixe eventual quantum debeatur. (REsp 1198727/MG, Rel. Ministro HERMAN BENJAMIN, SEGUNDA TURMA, julgado em 14/08/2012, DJe 09/05/2013.)
PROCESSUAL CIVIL. ADMINISTRATIVO. AMBIENTAL. RECURSO ESPECIAL. DANOS MORAIS COLETIVOS. DANOS AMBIENTAIS INTERCORRENTES. OCORRÊNCIA.
1. Os danos morais coletivos são presumidos. É inviável a exigência de elementos materiais específicos e pontuais para sua configuração.
2. A configuração dessa espécie de dano depende da verificação de aspectos objetivos da causa. Trata-se de operação lógica em que os fatos conhecidos permitem ao julgador concluir pela ocorrência de fatos desconhecidos. 3. Considerando-se a inversão do ônus probatório em matéria ambiental, deve o réu comprovar a inexistência de tais elementos objetivos. A presunção opera em favor do fato presumido, somente se afastando diante de razões concretas.
4. O dano intercorrente não se confunde com o dano residual. O dano ambiental residual (permanente, perene, definitivo) pode ser afastado quando a área degradada seja inteiramente restaurada ao estado anterior pelas medidas de reparação in natura. O dano ambiental intercorrente (intermediário, transitório, provisório, temporário, interino) pode existir mesmo nessa hipótese, porquanto trata de compensar as perdas ambientais havidas entre a ocorrência da lesão (marco inicial) e sua integral reparação (marco final).
5. Hipótese em que o acórdão reconheceu a ocorrência de graves e sucessivas lesões ambientais em área de preservação permanente (APP) mediante soterramento, entulhamento, aterramento e construção e uso de construções civis e estacionamento, sem autorização ambiental e com supressão de vegetação nativa de mangue, restinga e curso d'água.
6. Patente a presença de elementos objetivos de significativa e duradoura lesão ambiental, configuradora dos danos ambientais morais coletivos e dos intercorrentes. As espécies de danos devem ser individualmente arbitradas, na medida em que possuem causas e marcos temporais diversos.
7. Recurso especial provido para reconhecer a existência de danos ambientais morais coletivos e danos ambientais intercorrentes, com valor compensatório a ser arbitrado em liquidação.
(REsp n. 1.940.030/SP, relator Ministro Og Fernandes, Segunda Turma, julgado em 16/8/2022, DJe de 6/9/2022.)
Em conclusão, in casu, considerada a degradação verificada, decorrente da ocupação e utilização ilegal da área de preservação permanente por décadas, amplamente demonstrada nos autos, resta evidenciado o dever de indenizar o período em que mantida a lesão ao meio ambiente protegido.
Em relação à quantificação do dano ambiental, é pacífico o entendimento da jurisprudência no sentido da possibilidade de fixação do valor indenizatório por ocasião da liquidação por arbitramento (artigo 509 do CPC; artigos 475-C e 475-D do CPC/1973). Nesse sentido, colacionam-se os julgados a seguir do C. Superior Tribunal de Justiça:
"RECURSO ESPECIAL - AÇÃO CONDENATÓRIA POR DANOS EXTRAPATRIMONIAIS E PATRIMONIAIS - INCÊNDIO INICIADO NA ÁREA DE PROPRIEDADE DO RÉU QUE ATINGIU O IMÓVEL RURAL DO AUTOR - SENTENÇA DE IMPROCEDÊNCIA - CORTE LOCAL QUE, AO RECONHECER A RESPONSABILIDADE CIVIL AMBIENTAL DO RÉU (ART. 3º, INC. IV E ART. 14, § 1º, DA LEI 6.938/81), CONDENA-O AO PAGAMENTO DE INDENIZAÇÃO POR DANOS PATRIMONIAIS, A SEREM QUANTIFICADOS EM LIQUIDAÇÃO DE SENTENÇA - INSURGÊNCIA RECURSAL DA PARTE RÉ. DANOS AMBIENTAIS INDIVIDUAIS OU REFLEXOS (POR RICOCHETE) - RESPONSABILIDADE CIVIL OBJETIVA - APLICAÇÃO DO DISPOSTO NO ARTIGO 14, § 1º, DA LEI Nº 9.938/81, E, OUTROSSIM, EM VIRTUDE DA VIOLAÇÃO A DIREITOS DE VIZINHANÇA - RECONHECIMENTO DO DEVER DE INDENIZAR IMPUTÁVEL AO PROPRIETÁRIO DO IMÓVEL.
(omissis)
5. Recurso especial conhecido em parte e, na extensão, não provido." (destaques aditados)
(STJ, REsp 1381211, Rel. Min. Marco Buzzi, Quarta Turma, v.u., DJe 19/09/2014);
"CIVIL E PROCESSUAL CIVIL. AÇÃO RENOVATÓRIA DE LOCAÇÃO COMERCIAL AJUIZADA POR SUBLOCATÁRIA DE "POSTO DE GASOLINA". PROCEDÊNCIA. EXCLUSÃO DA EMPRESA DISTRIBUIDORA DE COMBUSTÍVEIS DA RELAÇÃO LOCATÍCIA. MANUTENÇÃO DOS EQUIPAMENTOS NO IMÓVEL. NOVA AÇÃO, AJUIZADA PELOS PROPRIETÁRIOS CONTRA A ANTIGA LOCATÁRIA, OBJETIVANDO A RETIRADA DOS EQUIPAMENTOS, A REGULARIZAÇÃO DA SITUAÇÃO DO IMÓVEL NO ÓRGÃO MUNICIPAL DE MEIO AMBIENTE, O PAGAMENTO DE INDENIZAÇÕES POR DANOS MATERIAIS E MORAIS E A RECONSTRUÇÃO DO PISO. LIMINAR DEFERIDA PARA DETERMINAR A REMOÇÃO DOS EQUIPAMENTOS EM CINCO DIAS E A REALIZAÇÃO DE AVALIAÇÃO AMBIENTAL DA ÁREA, COM EFETIVA LIMPEZA DO IMÓVEL, EM TRINTA DIAS, SOB PENA DE MULTA DIÁRIA. SENTENÇA DE PARCIAL PROCEDÊNCIA, CONCLUSIVA NO SENTIDO DE QUE NÃO TERIA SIDO CUMPRIDA A LIMINAR QUANTO À LIMPEZA DO LOCAL. DIREITO À INDENIZAÇÃO RECONHECIDO, MAS APENAS EM RELAÇÃO AOS DANOS MATERIAIS, EM VALOR A SER APURADO EM PROCEDIMENTO DE LIQUIDAÇÃO. SENTENÇA CONFIRMADA NO JULGAMENTO DAS APELAÇÕES. RENOVAÇÃO DO JULGAMENTO DOS EMBARGOS DE DECLARAÇÃO, DETERMINADA PELA QUINTA TURMA DO STJ NO RESP Nº 1.041.697/RS. DECLARATÓRIOS PARCIALMENTE ACOLHIDOS PARA SANAR OMISSÃO. NOVA VIOLAÇÃO DO ART. 535 DO CPC QUE NÃO FICOU CONFIGURADA. PROVA PERICIAL PRODUZIDA NO PROCEDIMENTO DE LIQUIDAÇÃO. DOCUMENTO QUE, CONQUANTO MENCIONADO, NÃO FOI UTILIZADO COMO RAZÃO DE DECIDIR PELO ACÓRDÃO DOS EMBARGOS. RESPONSABILIDADE PELA RETIRADA DOS EQUIPAMENTOS. MATÉRIA CUJA ANÁLISE DEMANDA O REEXAME DE FATOS E DE CLÁUSULAS CONTRATUAIS. ÓBICE DAS SÚMULAS NOS 5 E 7 DO STJ. ALEGADA VIOLAÇÃO DE NORMA CONTIDA EM RESOLUÇÃO. INADMISSIBILIDADE DO RECURSO ESPECIAL. INDENIZAÇÃO POR PERDAS E DANOS. PEDIDO DE QUE O VALOR SEJA DEFINIDO EM LIQUIDAÇÃO. POSSIBILIDADE. ALEGAÇÃO DE QUE NÃO TERIA FICADO COMPROVADO O PREJUÍZO MENCIONADO PELOS AUTORES. REAPRECIAÇÃO DE MATÉRIA DE FATO. IMPOSSIBILIDADE. SÚMULA 7/STJ. IMPEDIMENTO À EXPLORAÇÃO DO IMÓVEL QUE SOMENTE FICOU CONFIGURADO A PARTIR DA DEVOLUÇÃO DAS CHAVES AOS PROPRIETÁRIOS. ALTERAÇÃO DO TERMO INICIAL DA INDENIZAÇÃO. PROCEDÊNCIA DA ALEGAÇÃO. CUMPRIMENTO DA OBRIGAÇÃO DE LIMPEZA DO LOCAL NO PRAZO DEFINIDO NA LIMINAR. PRAZO SUJEITO ÀS DETERMINAÇÕES DO ÓRGÃO MUNICIPAL DE MEIO AMBIENTE. PONTO QUE NÃO FOI OBJETO DE DEBATE E DECISÃO PELO TRIBUNAL DE ORIGEM DEVIDO À PRECLUSÃO. AUSÊNCIA DE PREQUESTIONAMENTO. DISCUSSÃO SOBRE O CUMPRIMENTO DA LIMINAR NO CONCERNENTE À RETIRADA DOS EQUIPAMENTOS. ENTENDIMENTO DA SENTENÇA REFORMADO PELO TRIBUNAL NO NOVO JULGAMENTO DOS EMBARGOS. RESSARCIMENTO DOS VALORES DESPENDIDOS PELOS AUTORES NA RETIRADA DOS TANQUES REMANESCENTES. REFORMATIO IN PEJUS CONFIGURADA. MULTA DIÁRIA. PEDIDO DE REDUÇÃO DO VALOR, SOB A ALEGAÇÃO DE QUE SERIA EXCESSIVO. MATÉRIA CUJA DISCUSSÃO DEVERÁ AGUARDAR A DEFINIÇÃO, NO PROCEDIMENTO DE LIQUIDAÇÃO, A RESPEITO DO MOMENTO EM QUE FOI CUMPRIDA A ORDEM DE LIMPEZA DO TERRENO.
(omissis)
12. Recurso especial conhecido em parte e, nessa extensão, parcialmente provido." (destaques aditados)
(STJ, REsp 1372596, Rel. Min. Marco Aurélio Bellizze, Quinta Turma, v.u., DJe 02/05/2013).
É essa a interpretação a ser dada ao pleito formulado, pois o autor não restringiu a realização da perícia à fase de conhecimento, até mesmo porque plenamente cabível sua realização na fase de liquidação, como visto, nomeado expert pelo próprio Juízo onde será cumprido o decisum condenatório. O pedido deve ser interpretado de forma a alcançar a maior proteção jurídica possível e a máxima efetividade do provimento exarado. Consoante o entendimento assente do C. STJ: "O pedido deve ser extraído da interpretação lógico-sistemática da petição inicial, a partir da análise de todo o seu conteúdo (AgRg no Ag 784.710/RJ, 3ª Turma, Rel. Min. Paulo de Tarso Sanseverino, DJe de 06.10.2010. No mesmo sentido: REsp 1.159.409/AC, 2ª Turma, Rel. Min. Eliana Calmon, DJe de 21.05.2010; e AgRg no Ag 1.175.802/MG, 5ª Turma, Rel. Min. Laurita Vaz, DJe de 15.03.2010). Conforme se ressaltou no julgamento do REsp 1.107.219/SP, 1ª Turma, Rel. Min. Luiz Fux, DJe de 23.09.2010, 'os pedidos devem ser interpretados como manifestações de vontade, de forma a tornar o processo efetivo, o acesso à justiça amplo e justa a composição da lide'. Vale menção, ainda, a ressalva feita no julgamento do AgRg no REsp 737.069/RJ, 3ª Turma, Rel. Min. Sidnei Beneti, DJe de 24.11.2009, de que 'não viola os arts. 128 e 460 do CPC a decisão que interpreta de forma ampla o pedido formulado pelas partes, pois o pedido é o que se pretende com a instauração da demanda'. Os precedentes acima denotam a posição consolidada do STJ quanto à necessidade de se conferir ao pedido uma exegese sistêmica, que guarde consonância com o inteiro teor da petição inicial, de maneira a conceder à parte o que foi efetivamente requerido, sem que isso implique decisão extra ou ultra petita" (STJ, REsp 1162643, Rel. Min. Nancy Andrighi, Terceira Turma, v.u., DJe 17/08/2012).
IX. CONCLUSÃO
Assim, deflui do conjunto probatório com total segurança, por um lado, que o terreno está dentro da área de preservação ambiental, segundo o Código Florestal vigente, e que, por outro, não se enquadra como área rural ou urbana consolidada e não pode vir a ser regularizada, dado que sujeita a inundações. A construção que se mostra desde sua concepção em desacordo à correlata normatização não pode ser beneficiada pela complacência do poder público mediante autorização de sua manutenção, justamente por violar ab initio o interesse público. Logo, verifica-se caracterizada a atuação ilegítima dos requeridos, consistente na manutenção de terreno e respectiva estrutura em violação aos normativos de proteção ao meio ambiente apontados, bem como estabelecido o nexo de causalidade entre sua conduta e o resultado lesivo, de maneira que é imperiosa a correspondente responsabilização pelo dano ambiental causado, com todas suas consequências, tais como a imposição de demolição, a restauração e a indenização.
X. DO DISPOSITIVO
Ante o exposto, rejeito a preliminar suscitada e nego provimento aos recursos dos réus, bem como dou parcial provimento ao apelo do MPF e à remessa oficial, a fim de condenar os requeridos ao pagamento de indenização pelo dano ambiental causado, cujo valor deve ser quantificado em liquidação por arbitramento.
É o voto.
André Nabarrete
Desembargador Federal
mcc
O Desembargador Federal Wilson Zauhy:
Peço vênia ao Eminente Relator para divergir, em parte, de seus votos, pelas razões que passo a expor:
Inicialmente, destaco que é firme na Jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça o entendimento de que a atuação dos julgadores convocados na forma do art. 942 do CPC/2015 não se limita à divergência.
Neste sentido:
“PROCESSUAL CIVIL. RECURSOS ESPECIAIS. AÇÃO DE REVISÃO DE BENEFÍCIO PREVIDENCIÁRIO COMPLEMENTAR. JULGAMENTO NÃO UNÂNIME DA APELAÇÃO. TÉCNICA DE AMPLIAÇÃO DO COLEGIADO. NATUREZA JURÍDICA. TÉCNICA DE JULGAMENTO. AUSÊNCIA DE LIMITE APRECIAÇÃO PELO COLEGIADO AMPLIADO. INOBSERVÂNCIA. NULIDADE. RETORNO DOS AUTOS AO TRIBUNAL DE ORIGEM PARA NOVO JULGAMENTO. JULGAMENTO: CPC/15.
1. Ação de revisão de benefício previdenciário complementar ajuizada em 18/06/2015, da qual foram extraídos os presentes recursos especiais interpostos, respectivamente, em 26/03/2019 e 28/03/2019 e atribuídos ao gabinete em 23/04/2021.
2. O propósito recursal consiste em decidir se na ampliação do colegiado de julgamento os julgadores convocados ficam limitados a analisar apenas a matéria sobre a qual há entendimento dissonante.
Subsidiariamente, deve-se dizer sobre: (i) a legitimidade do Banco do Brasil S/A, na qualidade de patrocinador, para recompor a reserva matemática de plano de previdência privada junto à PREVI, entidade fechada de previdência complementar; (ii) a negativa de prestação jurisdicional; (iii) a aplicação do Tema 955/STJ; e (iv) a fixação do ônus da sucumbência.
3. O texto normativo do caput do art. 942 do CPC/15 estabelece que quando o julgamento da apelação não for unânime, ele terá prosseguimento em sessão designada com a presença de outros julgadores, convocados em número suficiente para garantir a possibilidade de inversão do resultado inicial, assegurando-se às partes e a eventuais terceiros interessados a realização de sustentações orais perante os novos julgadores convocados.
4. A natureza jurídica do instituto previsto no art. 942 do CPC/15, substituto do revogado embargos infringentes, é de técnica de julgamento, por meio da qual a sessão de julgamento iniciada pelo colegiado original retoma após a convocação de novos julgadores, e não de recurso com efeito devolutivo.
5. Diante desse panorama, conclui-se que a incidência da técnica de julgamento ampliado do art. 942 do CPC/15 não limita os julgadores convocados à análise apenas a matéria decidida de forma não unânime pelo quórum original, deve, pois, ser apreciado todo o conteúdo da apelação. Precedentes desta e. Terceira Turma.
6. Hipótese em que, ante o julgamento não unânime da apelação, houve a ampliação do quórum na forma do art. 942 do CPC/2015. Entretanto, na continuação do julgamento foi excluído o tema sobre o qual o colegiado original havia sido unânime, limitando-se os novos julgadores ao exame apenas da matéria em que houve divergência.
7. Assim, impõe-se o retorno dos autos à origem, para que seja proferido novo julgamento, no qual deverão ser analisadas todas as alegações suscitadas nas razões das apelações interpostas.
8. Recurso especial de ROSANA DAUDT PRIETO provido, com o retorno dos autos à origem. Recurso especial de CAIXA DE PREVIDÊNCIA DOS FUNCIONÁRIOS DO BANCO DO BRASIL - PREVI prejudicado” (destaquei).
(STJ, REsp nº 1.934.178/DF, Rel. Min. Nancy Andrighi, Terceira Turma, DJe: 16/09/2021).
Passo à análise da integralidade dos recursos, portanto.
Da legislação aplicável
No julgamento conjunto da ADC 42/DF e das ADI 4901/DF, ADI 4902/DF, ADI 4903/DF e ADI 4937/DF, o Supremo Tribunal Federal decidiu pela constitucionalidade do art. 61-A do Código Florestal, ocasião em que firmou a seguinte tese:
“(u) Arts. 61-A, 61-B, 61-C, 63 e 67 (Regime das áreas rurais consolidadas até 22.07.2008): O Poder Legislativo dispõe de legitimidade constitucional para a criação legal de regimes de transição entre marcos regulatórios, por imperativos de segurança jurídica (art. 5º, caput, da CRFB) e de política legislativa (artigos 21, XVII, e 48, VIII, da CRFB). Os artigos 61-A, 61-B, 61-C, 63 e 67 da Lei n. 12.651/2012 estabelecem critérios para a recomposição das Áreas de Preservação Permanente, de acordo com o tamanho do imóvel. O tamanho do imóvel é critério legítimo para definição da extensão da recomposição das Áreas de Preservação Permanente, mercê da legitimidade do legislador para estabelecer os elementos norteadores da política pública de proteção ambiental, especialmente à luz da necessidade de assegurar minimamente o conteúdo econômico da propriedade, em obediência aos artigos 5º, XXII, e 170, II, da Carta Magna, por meio da adaptação da área a ser recomposta conforme o tamanho do imóvel rural. Além disso, a própria lei prevê mecanismos para que os órgãos ambientais competentes realizem a adequação dos critérios de recomposição para a realidade de cada nicho ecológico; CONCLUSÃO: Declaração de constitucionalidade dos artigos 61-A, 61-B, 61-C, 63 e 67 do Código Florestal;” (destaquei).
Além disso, em diversas oportunidades, apreciando reclamações contra a autoridade desses julgados, o Supremo Tribunal Federal aplicou o entendimento de que casos como o presente devem ser apreciados à luz do atual Código Florestal, e não da legislação anterior vigente ao tempo da intervenção (regra “tempus regit actum”), como exemplifica o seguinte julgado do Superior Tribunal de Justiça:
“PROCESSUAL CIVIL. AGRAVO INTERNO NO RECURSO ESPECIAL. AÇÃO CIVIL PÚBLICA AMBIENTAL. PRETENSO RECONHECIMENTO DE INCONSTITUCIONALIDADE DE DISPOSITIVOS LEGAIS CONTIDOS NA LEI 12.651/2012. CUMPRIMENTO À DECISÃO DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL PROFERIDA NA RECLAMAÇÃO 43.703/SP. DECISÕES PROFERIDAS PELO PLENÁRIO DESTA CORTE NA ADC 42/DF E NAS ADIS 4.901/DF, 4.902/DF, 4.903/DF E 4.937/DF. RECONHECIMENTO DE SITUAÇÕES CONSOLIDADAS E A REGULARIZAÇÃO AMBIENTAL DE IMÓVEIS RURAIS A PARTIR DE SUAS NOVAS DISPOSIÇÕES, E NÃO A PARTIR DA LEGISLAÇÃO VIGENTE NA DATA DOS ILÍCITOS AMBIENTAIS. AGRAVO INTERNO DOS PARTICULARES A QUE SE DÁ PROVIMENTO, EM JUÍZO DE RETRATAÇÃO.
1. A Primeira Turma acompanhou voto de relatoria do Ministro Napoleão Nunes Maia Filho para negar provimento ao agravo regimental de iniciativa dos particulares, reconhecendo que, segundo ambas as turmas da Primeira Seção deste Tribunal Superior, a regra geral será a incidência da legislação florestal, de direito material, vigente à época dos fatos, na qual se determina a aplicação da Lei 4.771/1965 para as degradações ambientais ocorridas em sua vigência.
2. Após o referido julgado, o Supremo Tribunal Federal julgou procedente a reclamação proposta pelo ente público sucumbente, autuada sob o número 43.703/SP, afirmando que, em reiteradas reclamações, tem considerado que o raciocínio adotado pelo Superior Tribunal de Justiça, fundado nos princípios do tempus regit actum e da vedação de retrocesso ambiental, acarreta burla às decisões proferidas por seu Plenário na Ação Declaratória de Constitucionalidade 42/DF e nas Ações Diretas de Inconstitucionalidade 4.901/DF, 4.902/DF, 4.903/DF e 4.937/DF, e implica o esvaziamento do conteúdo normativo de dispositivo legal, com fundamento constitucional implícito, constante na Súmula Vinculante 10.
3. Logo, em cumprimento à decisão emanada na Reclamação 43.703/SP, declara-se que o voto ora combatido diverge do decidido pelo Supremo Tribunal Federal no julgamento das ADIs 4.902/DF, 4.903/DF e 4.937/DF e da ADC 42/DF quanto à legitimidade constitucional do Poder Legislativo para instituir "regimes de transição entre marcos regulatórios, por imperativos de segurança jurídica (art. 5º, caput, da CRFB) e de política legislativa (artigos 21, XVII, e 48, VIII, da CRFB)". Assim, a eficácia retroativa da Lei 12.651/2012 permitiu, por força geral dos arts. 61-A, 61-B, 61-C, 63 e 67, o reconhecimento de situações consolidadas e a regularização ambiental de imóveis rurais levando em conta suas novas disposições, e não à luz da legislação vigente na data dos ilícitos ambientais.
4. Agravo interno dos particulares a que se dá provimento, em juízo de retratação, para restabelecer os termos do acordão proferido nos autos do recurso de apelação pelo Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo” (destaquei).
(STJ, AgInt no REsp n. 1.668.484/SP, relator Ministro Manoel Erhardt (Desembargador Convocado do TRF5), Primeira Turma, julgado em 5/12/2022, DJe de 7/12/2022).
Desta forma, independentemente da data das intervenções na área de preservação permanente - APP em questão, a legislação a ser aplicada é o atual Código Florestal (Lei nº 12.651/2012) e suas posteriores alterações.
Do marco temporal e da garantia constitucional à moradia
Dentre os diversos dispositivos do Código Florestal aplicáveis, ao menos em tese, ao caso concreto, merece destaque o art. 61-A, que assim dispõe:
“Art. 61-A. Nas Áreas de Preservação Permanente, é autorizada, exclusivamente, a continuidade das atividades agrossilvipastoris, de ecoturismo e de turismo rural em áreas rurais consolidadas até 22 de julho de 2008. (Incluído pela Lei nº 12.727, de 2012). (Vide ADIN Nº 4.937) (Vide ADC Nº 42) (Vide ADIN Nº 4.902)
§ 1º Para os imóveis rurais com área de até 1 (um) módulo fiscal que possuam áreas consolidadas em Áreas de Preservação Permanente ao longo de cursos d’água naturais, será obrigatória a recomposição das respectivas faixas marginais em 5 (cinco) metros, contados da borda da calha do leito regular, independentemente da largura do curso d´água. (Incluído pela Lei nº 12.727, de 2012).
§ 2º Para os imóveis rurais com área superior a 1 (um) módulo fiscal e de até 2 (dois) módulos fiscais que possuam áreas consolidadas em Áreas de Preservação Permanente ao longo de cursos d’água naturais, será obrigatória a recomposição das respectivas faixas marginais em 8 (oito) metros, contados da borda da calha do leito regular, independentemente da largura do curso d´água. (Incluído pela Lei nº 12.727, de 2012).
§ 3º Para os imóveis rurais com área superior a 2 (dois) módulos fiscais e de até 4 (quatro) módulos fiscais que possuam áreas consolidadas em Áreas de Preservação Permanente ao longo de cursos d’água naturais, será obrigatória a recomposição das respectivas faixas marginais em 15 (quinze) metros, contados da borda da calha do leito regular, independentemente da largura do curso d’água. (Incluído pela Lei nº 12.727, de 2012).
§ 4º Para os imóveis rurais com área superior a 4 (quatro) módulos fiscais que possuam áreas consolidadas em Áreas de Preservação Permanente ao longo de cursos d’água naturais, será obrigatória a recomposição das respectivas faixas marginais: (Incluído pela Lei nº 12.727, de 2012).
I - (VETADO); e (Incluído pela Lei nº 12.727, de 2012).
II - nos demais casos, conforme determinação do PRA, observado o mínimo de 20 (vinte) e o máximo de 100 (cem) metros, contados da borda da calha do leito regular. (Incluído pela Lei nº 12.727, de 2012).
(...)
§ 12. Será admitida a manutenção de residências e da infraestrutura associada às atividades agrossilvipastoris, de ecoturismo e de turismo rural, inclusive o acesso a essas atividades, independentemente das determinações contidas no caput e nos §§ 1º a 7º, desde que não estejam em área que ofereça risco à vida ou à integridade física das pessoas. (Incluído pela Lei nº 12.727, de 2012).
(...)” (destaquei).
Tenho que referido dispositivo merece uma interpretação sistemática, à luz das demais disposições do próprio Código Florestal e, principalmente, da Constituição Federal de 1988.
Isto porque a mera interpretação literal do caput do art. 61-A poderia levar à conclusão de que apenas as “atividades agrossilvipastoris, de ecoturismo e de turismo rural em áreas rurais consolidadas até 22 de julho de 2008” é que poderiam ter continuidade.
Contudo, o § 12 deste artigo não deixa dúvidas de que as residências em áreas rurais consolidadas também podem ser mantidas, independentemente de estarem associadas a tais atividades.
Se assim não fosse, o legislador teria optado por outra redação, que deixaria claro que somente residências em imóveis vinculados àquelas atividades é que poderiam ser mantidas.
Nesse sentido, já decidiu a Quarta Turma deste Tribunal:
“PROCESSO CIVIL. DIREITO AMBIENTAL. PROTEÇÃO AO MEIO AMBIENTE. ÁREA DE PROTEÇÃO PERMANENTE. DELIMITAÇÃO. MUNICÍPIO DE ROSANA. EXCEPCIONALIDADE.
1. O Município de Rosana foi desmembrado do Município de Teodoro Sampaio e o Bairro Beira Rio surgiu na década de 1960, sendo certo que, anteriormente ao aludido desmembramento, era ocupado por ribeirinhos e pescadores, que tiravam seu sustento do Rio Paraná e, posteriormente, por pescadores amadores e pequenos comerciantes, que aproveitavam o movimento de cruzamento do rio Paraná em direção ao Estado de Mato Grosso do Sul que era feito por uma balsa. Isto até enchimento da represa da Hidrelétrica Sérgio Motta. Portanto, o bairro surgiu antes do próprio Município de Rosana, há mais de 50 anos, sendo que referido bairro foi inserido no perímetro urbano do Município de Rosana por meio da LC 020/2007.
2. Em cumprimento ao que determina o artigo 182 da Constituição Federal e a Lei Federal nº 10.257/2001 (Estatuto da Cidade), o Município de Rosana promulgou, ainda, a Lei Complementar nº 45/2015, instituindo o seu Plano Diretor Participativo. Diante do peculiar interesse do Município, e considerando a certificação legal de que o bairro onde se localiza o imóvel dos réus está dentro do perímetro urbano da cidade, estabeleceu-se um zoneamento municipal e o território de Rosana foi ordenado a partir de macrozonas, dentre as quais ressalta o art. 29, II, a Macrozona de Interesse Turístico e Ambiental (MZITA). Restou disposto, ainda, no parágrafo único do artigo 31 do referido regramento que são diretrizes específicas da MZITA, "Estimular e promover a regularização ambiental das ocupações situadas em APPs e nas ilhas do Rio Paraná, observando a Lei Federal nº 12.651/2012, em especial as disposições contidas no Capítulo XIII, Seção II que trata das áreas consolidadas em APP."
3. Assim, dentro do regramento do novo Código Florestal, e com fundamento em seu interesse local, é direito e dever do Município de Rosana, ordenar seu território e proceder, como, aliás, expressamente autoriza referida norma, a regularização dessas ocupações antrópicas ao longo do rio Paraná. Pouco importa se o Ministério Público concorda ou não com a inserção do bairro Beira Rio como perímetro urbano (zona urbana). O problema é do Município e não da União Federal. Nenhum Poder Judiciário poderá dizer que a lei municipal é inconstitucional, eis que sua edição e promulgação encontra fundamento constitucional e também no Estatuto das Cidades. Destaque-se que os dispositivos legais mencionados, por mais que alguns entendam que não devem ser assim aplicados, foram declarados constitucionais pelo Colendo STF, e cuida das Áreas Consolidadas em Áreas de Preservação Permanente.
4. Quanto às denominadas áreas urbanas e urbanas consolidadas, o próprio Código Florestal remete ao Estatuto das Cidades, e nesse sentido foi que o Município de Rosana dispôs no § 2º do artigo 80 do Plano Diretor que: "§ 2º- Para fins de regularização ambiental prevista no caput, ao longo dos rios ou de qualquer curso d'água, deverá ser mantida Área de Preservação Permanente (APP) com largura mínima de 5 (cinco) metros de cada lado." (destaquei)
5. A compatibilização do novo Código Florestal com os interesses do Município, igualmente protegidos, devem levar em consideração a dignidade da pessoa humana, e a Lei nº 12.651/2012 faz uma diferenciação entre a área rural consolidada e área urbana ou urbana consolidada, para fixar limites diferenciados para observância de APP, sendo absurda e divorciada totalmente da realidade exigir-se em área urbana ou urbana consolidada APP de 500 (quinhentos) metros, pena de se inviabilizar totalmente o pequenino Município de Rosana, que conta com um população de pouco mais de 19.600 habitantes, pelo último censo, cerca de 26,5 habitantes por km2 e um PIB de R$ 778.538,00, comparativamente com a cidade de Presidente Prudente, que lhe é próxima e conta com um PIB de R$ 24,8 bilhões.
6. Evidente que o magistrado há de julgar os feitos que lhe são submetidos com a ponderação e razoabilidade nas decisões. Aliás, é assim que determina o art. 20 da Lei nº 13.655/2018 que instituiu a Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro, determinando que a decisão judicial considere as consequências práticas de sua decisão.
7. Na espécie, a legislação ambiental prevê expressamente a possibilidade de regularização da área, sem ampliação ou modificação do status quo, devendo os ribeirinhos se submeter ao PRA, nos termos do art. 4º do Código Florestal. Aliás, bem por isso o Plano Diretor do Município já prevê o PRA (Plano de Recuperação Ambiental). Os imóveis, quer rurais, quer urbanos, devem, na hipótese alinhavada, se submeter à Regularização Ambiental, em especial se considerarmos que nenhum deles tem área superior a 1(hum) hectare. É nesse sentido, aliás, o § 12 do art. 61-A do Código Florestal, cuja constitucionalidade veio de ser reconhecida pelo C. STF, e que, expressamente, admite a manutenção das residências. Assim não fosse, o artigo em análise não teria afirmado "e da infra estrutura associada". Teria o legislador escrito residências "e infraestrutura associadas", o que não ocorreu.
8. Destaque que a ocupação antrópica que o Código admite, não é qualquer ocupação. Há de ser aquela preexistente a 22 de julho de 2008, como é o caso dos autos. Acrescenta-se, por oportuno, que a dignidade da pessoa humana e os direitos que lhe foram garantidos pelo texto constitucional, explicitados no "caput" do art. 6º, arrolam, ao lado da educação e da saúde, dentre outros, o trabalho, a moradia e o lazer. Aliás, leciona o Prof. Celso Antonio Fiorillo que: "... a nova legislação instrumental ratifica no plano infraconstitucional que lesões ou ameaça aos bens ambientais/direito ambiental (patrimônio genético, meio ambiente cultural, meio ambiente digital, meio ambiente artificial, saúde ambiental, meio ambiente do trabalho e meio ambiente natural) serão apreciadas pelo Poder Judiciário, conforme os princípios fundamentais indicados nos arts. 1º a 3º da Carta Magna, bem como em face das garantias e direitos individuais fundamentais indicados no art. 5º e seguintes da Constituição Federal." (Direito Processual Ambiental Brasileiro-Saraiva, 2018, p. 25)
9. Por fim, cabe deixar consignado que o C. STF, nas inúmeras reclamações recebidas contra a autoridade dos julgamentos proferidos nas ADI's 4901, 4902, 4903, 4937 e ADC 42, apreciadas em 28/02/2018, tem suspendido os efeitos dos julgamentos proferidos com fundamento nas disposições do Código Florestal (Lei nº 4.771/1965), inclusive desta E. Corte (v. Rcl 51472 MC/SP - Relator Min. DIAS TOFFOLI - j. 18/02/2022 - Publicação DJe-s/n DIVULG 21/02/2022 PUBLIC 22/02/2022). Registre-se que, como consequência do julgamento do mérito da Reclamação, a Vice Presidência deste E. Tribunal proferiu a decisão, determinando o retorno dos autos à E. 6ª Turma para rejulgamento da Apelação nº 0004931-67.22013.403.6112, com observância das disposições do Código Florestal (Lei nº 12.651/2012) ao caso concreto (Área de Preservação Permanente localizada no Rio Paraná, Município de Rosana/SP), afastando-se a incidência do princípio tempus regit actum, expressamente adotado pelo e. Relator neste julgamento.
10. De rigor o provimento, parcial, do apelo dos réus, para limitar as obrigações impostas na r. sentença – demolição e remoção de entulho - às edificações inseridas nas faixas marginais previstas no art. 61-A da Lei 12.651/2012, impondo-se a recuperação ambiental nos limites estabelecidos, seguindo-se as diretrizes estabelecidas no Plano Diretor, bem assim para reduzir o valor da indenização para R$ 1.000,00.
11. Apelação provida, em parte” (destaquei).
(TRF da 3ª Região, Apelação Cível nº 0007948-14.2013.4.03.6112/SP, Rel. Desembargador Federal Marcelo Saraiva, Rel. p/ Acórdão Desembargadora Federal Marli Ferreira, Quarta Turma, julgamento em 16/11/2023, DJEN: 16/02/2024).
E não poderia ser diferente, já que o direito à moradia tem assento constitucional (art. 6º da Constituição Federal).
Não seria compatível com a Constituição uma interpretação que autorizasse apenas a manutenção de imóveis vinculados a determinadas atividades econômicas e negasse tal possibilidade às residências, sob pena de se menosprezar o direito à moradia, colocando-o como menos importante do que aquelas atividades.
Tal entendimento levaria a situações paradoxais em que a decisão sobre a manutenção ou demolição das intervenções em APP dependeria do exercício, ou não, dessas atividades, independentemente do uso do imóvel como moradia, tudo isso sem previsão legal, como visto até aqui.
Registre-se que, ao utilizar o termo “residências”, o legislador não exigiu que fossem elas residências permanentes, não cabendo ao intérprete incluir esse requisito não previsto em lei, sob pena de se restringir indevidamente uma garantia constitucional.
Além disso, cabe consignar que o uso que se dá a um determinado imóvel é algo mutável ao longo do tempo, já que nada impede que o lugar que hoje é usado como “casa de veraneio” venha a se tornar a residência permanente de seu proprietário, possuidor ou mesmo detentor.
Daí porque, embora não desconheça julgados do STJ nos quais se decidiu que o art. 61-A do Código Florestal não seria aplicável a “casas de veraneio”, sem eficácia vinculante, não me filio a esse entendimento.
Diversamente, penso que a possibilidade de o imóvel servir de moradia, intermitente ou permanente, atrai a incidência do § 12 do art. 61-A do Código Florestal.
Da possibilidade de regularização fundiária
Assim está disciplinada a matéria pelo Código Florestal, com as alterações da Lei nº 14.285/2021:
“Art. 4º Considera-se Área de Preservação Permanente, em zonas rurais ou urbanas, para os efeitos desta Lei:
(...)
§ 10. Em áreas urbanas consolidadas, ouvidos os conselhos estaduais, municipais ou distrital de meio ambiente, lei municipal ou distrital poderá definir faixas marginais distintas daquelas estabelecidas no inciso I do caput deste artigo, com regras que estabeleçam: (Incluído pela Lei nº 14.285, de 2021)
I – a não ocupação de áreas com risco de desastres; (Incluído pela Lei nº 14.285, de 2021)
II – a observância das diretrizes do plano de recursos hídricos, do plano de bacia, do plano de drenagem ou do plano de saneamento básico, se houver; e (Incluído pela Lei nº 14.285, de 2021)
III – a previsão de que as atividades ou os empreendimentos a serem instalados nas áreas de preservação permanente urbanas devem observar os casos de utilidade pública, de interesse social ou de baixo impacto ambiental fixados nesta Lei. (Incluído pela Lei nº 14.285, de 2021).
(...)” (destaquei).
Como se vê, há expressa previsão legal de que os municípios estipulem faixas de área de preservação permanente para áreas urbanas consolidadas distintas das previstas no Código Florestal, observadas certas condicionantes.
A Lei nº 14.285/2021 é posterior ao julgamento conjunto da ADC 42/DF e das ADI 4901/DF, ADI 4902/DF, ADI 4903/DF e ADI 4937/DF e não consta que o Supremo Tribunal Federal tenha decidido pela sua invalidade, estando em plena vigência, portanto.
Desta forma, se acaso o imóvel estiver inserido em áreas urbanas consolidadas, será necessário examinar se o município estipulou faixas de áreas de preservação permanente diversas das previstas no Código Florestal.
Conclusão
De tudo o quanto visto até aqui, conclui-se que o art. 61-A do Código Florestal é aplicável às residências localizadas em áreas rurais consolidadas até 22 de julho de 2008, independentemente de estarem associadas a atividades agrossilvipastoris, de ecoturismo e de turismo rural.
Conclui-se, ainda, que, em se tratando de imóvel localizado em áreas urbanas consolidadas, lei municipal pode definir faixas marginais de área de preservação permanente distintas das previstas no art. 4º do Código Florestal, conforme o § 10 deste artigo, incluído pela Lei nº 14.285/2021, o que deve ser analisado caso a caso.
Do caso concreto
Discute-se nestes autos a extensão da faixa de APP relativa a imóvel localizado nas proximidades do Rio Paraguai.
Verifico que o Juízo Sentenciante deixou de aplicar o art. 61-A do atual Código Florestal por entender que o imóvel em questão, que funciona como uma pousada, não poderia ser classificado como atividade agropastoril, ecoturismo ou turismo rural, in verbis (ID 281246654):
“(...)
Também não comprovaram que a área se insere em alguma das exceções previstas no Código Florestal para fins de incidência do art. 61-A da Lei nº 12.727/2012. Apesar de ser uma pousada, o empreendimento não pode ser classificado como atividade agropastoril, ecoturismo ou turismo rural. Não é o caso de se confundir esse tipo de atividade, voltada para uma compatibilização entre o meio ambiente e atividades turísticas, com o turismo simplesmente localizado em área selvagem.
Como consignado pelo i. Des. Fed. Johonsom Di Salvo, este tipo de atividade “não fomenta o ecoturismo, que se baseia na relação sustentável com a natureza, comprometida com a conservação e a educação ambiental; ou o turismo rural, focado nas práticas agrícolas e na promoção do patrimônio cultural e natural das comunidades rurícola. Também não desenvolve atividade agrossilvipastoril, genericamente entendida como a reunião sustentável de agricultura, pecuária e floresta.” (TRF 3ª Região, 6ª Turma, ApCiv - APELAÇÃO CÍVEL - 0002504-97.2013.4.03.6112, Rel. Desembargador Federal LUIS ANTONIO JOHONSOM DI SALVO, julgado em 05/02/2021, Intimação via sistema DATA: 18/02/2021).
Trata-se, ao revés, de um turismo que, ao que tudo indica, gera impacto ambiental. A este respeito, trago os seguintes argumentos do MPF (Id. 187119319):
Nesse sentido, apesar de LEVINO PIO DA SILVA sempre reiterar sua suposta condição de ribeirinho, as fotografias do empreendimento apontam para atividade de porte que contraria o modo de vida próprio de população tradicional que vive, primariamente, da pesca para subsistência. Corrobora tal compreensão a própria declaração do réu, em sede policial, no bojo do IPL n. 195/2010-DPF/CRA/MS, em 14/09/2012, quando comparada com aquelas prestadas em reunião realizada, no dia 07/07/2011, na sede da Procuradoria da República no Município de Corumbá/MS no interesse do inquérito civil que deu origem a esta ação: enquanto, em 2011, o requerido afirma que o “RANCHO DO GORDO” possuía apenas quatro quartos para alugar para turistas, em 2012, o empreendimento já contava com dez quartos, demonstrando o crescimento da atividade desenvolvida pelos demandados em detrimento do meio ambiente local, sem as devidas licenças ambientais.
Assim, suficientemente demonstrada a ilegalidade da ocupação, a qual causou danos ambientais.
(...)” (destaquei).
Contudo, antes de ser uma pousada, referido imóvel também serve de moradia ao corréu Levino e sua família.
Esse fato é incontroverso, tanto que noticiado pelo próprio MPF em sua inicial e admitido pelo Parquet Federal na Recomendação nº 15/2017, exarada nos autos do Inquérito Civil nº 1.21.004.000093/2010-37 (ID 281246109 - pág. 05 e 11 e ID 281246241 - pág. 02):
“(...)
Considerando que LEVINO vive na área com sua esposa, filhos, noras e netos e que buscou se regularizar perante a Superintendência do Patrimônio da União desde 12/12/1994, conforme consta do Processo SPU nº 10176.000382/94-11 (fl. 75/76);
(...)”.
Referido documento também não deixa dúvidas de que o imóvel é anterior a 2008.
Quanto a um possível risco à vida ou à integridade física das pessoas, não houve qualquer menção no laudo elaborado pela Polícia Federal após vistoria realizada em 22/03/2011 (ID 281246236 - pág. 12/20).
Mesmo que ocorram inundações em algum momento, é certo que não representam risco à vida ou integridade física das pessoas, porque do contrário o imóvel em questão não estaria instalado ali há tantas décadas.
Desta forma, a manutenção do imóvel encontra amparo no § 12 do art. 61-A do Código Florestal.
Dispositivo
Ante o exposto, voto por rejeitar a preliminar suscitada, dar provimento à apelação dos réus para julgar improcedente o pedido, negar provimento ao reexame necessário e julgar prejudicado o recurso interposto pelo MPF.
É como voto.
WILSON ZAUHY
Desembargador Federal.
E M E N T A
CONSTITUCIONAL, ADMINISTRATIVO, CIVIL E PROCESSUAL CIVIL. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. REEXAME NECESSÁRIO. CABIMENTO. PROTEÇÃO AO MEIO AMBIENTE. ARTIGO 225, CF/88. LEIS 4.771/1965, 6.938/1981, 7.347/1985, 12.651/2012. OCUPAÇÃO E EDIFICAÇÃO EM ÁREA DE PRESERVAÇÃO PERMANENTE. DANO AMBIENTAL IN RE IPSA. RESPONSABILIDADE CIVIL OBJETIVA E PROPTER REM. TEORIA DO RISCO INTEGRAL. CONDUTA, NEXO E DANO COMPROVADOS. CONDENAÇÃO A OBRIGAÇÕES DE FAZER, NÃO FAZER E À RESTAURAÇÃO AMBIENTAL. INDENIZAÇÃO NÃO APLICADA. AUSÊNCIA DE RESISTÊNCIA. REMESSA OFICIAL E APELAÇÕES NÃO PROVIDAS.
- Apelações interpostas pelo MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL, LEVINO PIO DA SILVA e RANCHO BOA SORTE EIRELI-ME contra sentença por meio da qual foi julgada procedente em parte ação civil pública ambiental ajuizada pelo Parquet.
- A preliminar de prescrição suscitada ao argumento de que os crimes ambientais decorrentes da edificação em área de preservação permanente prescrevem em quatro anos (REsp nº 1.402.984-DF) não prospera. Obviamente, a presente ação não pretende a responsabilização dos réus no âmbito penal. Assim, não há que se confundir as instâncias civil, penal e administrativa, dada sua completa independência. Ademais, o STF assentou que é imprescritível a pretensão de reparação civil de dano ambiental (Tema 999), tese de repercussão geral.
- Em sede de ação civil pública, é cabível o reexame necessário, à semelhança do que se verifica no manejo da ação popular, aplicando-se por analogia o art. 19 da Lei nº 4.717/65, em decorrência da interpretação harmônica do microssistema de tutela dos interesses difusos e coletivos. Precedentes do STJ.
- A proteção ambiental detém status constitucional e os agentes infratores, pessoas físicas ou jurídicas, estão sujeitos a sanções civis, penais e administrativas, cuja incidência pode ser cumulativa, ante sua autonomia (art. 225, CF/88).
- A Lei Maior recepcionou a proteção anteriormente existente na esfera da legislação ordinária. Vale destacar as Leis nº 4.771/1965 e nº 6.938/1981 com suas posteriores alterações (e regulamentação pelo Decreto nº 99.274/1990), ressaltada a recente revogação do Código de 1965 com o advento da Lei nº 12.651/2012. Tais diplomas também preceituam a obrigação de toda a sociedade e do poder público quanto à defesa do meio ambiente, além da promoção das correlatas ações necessárias à sua preservação (artigos 1º e 2º, Lei nº 6.938/1981). A novel legislação ambiental também é aplicável a situações de transição por incrementar a defesa do meio ambiente (e.g. artigo 61-A da Lei nº 12.651/2012). Frise-se ser princípio norteador do microssistema dos direitos coletivos a aplicação da norma mais protetiva para sua efetiva tutela, em razão de seu alcance e importância.
- Da legislação em comento decorre a obrigatoriedade do uso consciente da propriedade, consoante sua função social em amplo aspecto, sob pena de se impor ao agente causador do dano ambiental o dever de reparar ou indenizar pelos prejuízos sucedidos independentemente de culpa. São suficientes, assim, a comprovação de ação ou omissão, a ocorrência do dano e o nexo causal entre ambos. Despiciendo, inclusive, perquirir a respeito da licitude da atividade desenvolvida, porquanto incide na espécie a teoria do risco integral, a fim de coibir a atividade nociva e impor a reparação tanto in natura quanto em pecúnia.
- O direito ambiental brasileiro igualmente não socorre o agente que ocupa determinada área depois de sua degradação, para de tal fato pretender beneficiar-se, pois as obrigações ambientais são propter rem. O atual Código Florestal, a citada Lei nº 12.651/2012, foi ainda mais longe em seu escopo protecionista, ao preceituar, em seu artigo 2º, § 2º, que "as obrigações previstas nesta Lei têm natureza real e são transmitidas ao sucessor, de qualquer natureza, no caso de transferência de domínio ou posse do imóvel rural". Configuram, assim, "limitações administrativas reais" por estatuir as hipóteses legais de uso permitido em numerus clausus e, portanto, não passíveis de ampliação pela via administrativa ou judicial.
- As normas mencionadas se aplicam tanto às áreas rurais como urbanas, contemplam como regra a vedação a qualquer tipo de intervenção em áreas de preservação permanente. Permitem, excepcionalmente, algumas ações e manutenção de construções eventualmente já erigidas em determinadas situações, seja à luz da legislação vigente à época dos fatos, seja nos termos dos permissivos dos atuais regramentos. No entanto, por serem excepcionais configuram rol taxativo e devem ser interpretadas de modo restritivo. Não se fala em prevalência de eventual direito adquirido ou ato jurídico perfeito quando se afere afronta ao próprio ordenamento à época existente. Prepondera o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, em interpretação harmoniosa dos primados constitucionais, inclusive porque a "anterioridade" que deve ser considerada é a da boa qualidade ambiental, o que não implica equívoco interpretativo que gere insegurança jurídica ou injustiça.
- O desmatamento, ocupação ou exploração em área de preservação permanente, bem como a supressão de vegetação ou impedimento à sua regeneração em tais terrenos, configuram dano ecológico in re ipsa, o qual dispensa prova técnica de lesividade específica e enseja a obrigação propter rem de restaurar a plenitude ambiental, indenizar pela degradação, sob a sistemática da responsabilidade civil objetiva, entendimento pacífico em nossa jurisprudência pátria. Significa, assim, que responde pelo dano não somente aquele que perpetra a ação lesiva como, de igual forma, quem contribui para sua manutenção. Precedentes do STJ.
- Os exames técnicos constataram que as construções estão em APP. Por outro lado, a conclusão do laudo de perícia criminal id 281246236 (pág. 12/20), que considerou que as construções existentes nos terrenos não estariam nessa área, porquanto foram erguidas na faixa sujeita à cheia ordinária do Rio Paraguai, conceituado pelo Código de Águas como Álveo (resposta ao quesito nº2), considerado o disposto no artigo 2º, “a”, da Lei nº 4.771/65, fundou-se na legislação revogada, que previa que a área protegida seria contada a partir do nível mais alto do rio. Entretanto, é aplicável ao caso o Código Florestal vigente, não apenas em razão de a ação ter sido proposta já na sua vigência, mas também porque, como bem pontuou o magistrado, é o que deflui das Ações Diretas de Inconstitucionalidade n. 4.937, 4.903 e 4.902 e da Ação Declaratória de Constitucionalidade n. 42, bem como em observância da Súmula Vinculante nº 10” (STF, Rcl nº 49147, Relator Edson Fachin, Julgado em 29/04/2022).
- Com relação à invocação da possibilidade de regularização do local com base nos artigos 61-A do Código Florestal vigente, de acordo com os elementos constantes dos autos o imóvel é destinado à moradia dos possuidores e suas famílias, bem como à locação de quartos para turistas. Tais atividades que não podem ser classificadas como turismo rural ou ecoturismo, para os fins do mencionado dispositivo, consoante destacou o Parquet em seu parecer.
- Relativamente ao argumento dos réus apelantes de que o imóvel estaria em zona urbana e deve ser considerado como intervenção consolidada, diga-se, primeiramente, que as imagens e todos os pareceres técnicos existentes no feito deixam fora de dúvida de que o local é rural. Porém, ainda que assim admitido, não poderia ser qualificado “área urbana consolidada”, nos moldes do artigo 3º do Código Florestal, na medida em que não atende aos seus requisitos.
- É incontroverso nos autos que a área é de risco de inundações sazonais, de modo que é incontornável que a área não é passível de regularização fundiária.
- Ainda que se admitisse a área ora questionada como urbana consolidada, como defendem os réus, nos termos do Código Florestal vigente, haveria que se respeitar a APP delimitada no seu art. 4º, caput, inciso I, alíneas a, b, c, d e e, vale dizer a faixa que varia de 30 a 500 metros, segundo a largura do curso d’água, consoante estabeleceu o STJ no tema vinculante 1010: “na vigência do novo Código Florestal (Lei n. 12.651/2012), a extensão não edificável nas Áreas de Preservação Permanente de qualquer curso d’água, perene ou intermitente, em trechos caracterizados como área urbana consolidada, deve respeitar o que disciplinado pelo seu art. 4º, caput, inciso I, alíneas a, b, c, d e e, a fim de assegurar a mais ampla garantia ambiental a esses espaços territoriais especialmente protegidos e, por conseguinte, à coletividade. “
- Descabida a invocação do artigo 8º do Código Florestal, que possibilita a intervenção ou supressão de vegetação e APP em casos de baixo impacto ambiental, porquanto não encontra suporte na prova dos autos.
- No tocante ao pedido de indenização, a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça tem adotado o princípio in dubio pro natura como fundamento na solução de conflitos e na interpretação das leis que regem a matéria. Amparada no referido princípio, o STJ estabeleceu que é possível, em alguns casos, condenar o responsável pela degradação ambiental ao pagamento de indenização relativa ao dano extrapatrimonial ou dano moral coletivo.
- Todavia, os proprietários já foram condenados, às suas expensas, a efetivarem a demolição e remoção das construções de sua autoria, a elaborarem Projeto de Recuperação de Área Degradada – PRAD, dentre outras obrigações.
- Ademais, como observado na r. sentença: “De fato, a prova trazida aos autos, em que pese revele que há construções e, consequentemente, dano ambiental, revela que não se trata de uma estrutura expressiva. Desse modo, não verifico o abalo social suficiente para ensejar a condenação por danos morais”.
- Como se vê, a condenação imposta será suficiente à recomposição integral do dano. Ademais, não há notícia nos autos de resistência fática dos proprietários acerca das obrigações impostas na r. sentença.
- A construção que se mostra desde sua concepção em desacordo à correlata normatização não pode ser beneficiada pela complacência do poder público mediante autorização de sua manutenção, justamente por violar ab initio o interesse público. Logo, verifica-se caracterizada a atuação ilegítima dos requeridos, consistente na manutenção de terreno e respectiva estrutura em violação aos normativos de proteção ao meio ambiente apontados, bem como estabelecido o nexo de causalidade entre sua conduta e o resultado lesivo, de maneira que é imperiosa a correspondente responsabilização pelo dano ambiental causado, com a imposição de demolição e restauração.
- Preliminar rejeitada. Remessa necessária e apelações não providas.