AGRAVO DE INSTRUMENTO (202) Nº 5001053-37.2022.4.03.0000
RELATOR: Gab. 08 - DES. FED. CARLOS DELGADO
AGRAVANTE: GETRO LOUIS
AGRAVADO: UNIÃO FEDERAL
OUTROS PARTICIPANTES:
AGRAVO DE INSTRUMENTO (202) Nº 5001053-37.2022.4.03.0000 RELATOR: Gab. 08 - DES. FED. CARLOS DELGADO AGRAVANTE: GETRO LOUIS AGRAVADO: UNIÃO FEDERAL OUTROS PARTICIPANTES: R E L A T Ó R I O O EXMO. SENHOR DESEMBARGADOR FEDERAL CARLOS DELGADO (RELATOR): Trata-se de agravo de instrumento interposto por GETRO LOUIS, cidadão haitianos, contra decisão do MM. Juízo da 14ª Vara Cível Federal de São Paulo que, no bojo da ação de procedimento comum intentada em face da UNIÃO FEDERAL, indeferiu o pedido de tutela antecipada que objetivava a sua permissão de ingresso em território nacional, para fins de reunião familiar, com a dispensa da apresentação de visto. Em razões recursais (ID 251963083), o agravante pugna pela reforma da decisão agravada, ao fundamento de que a CF resguarda a dignidade da pessoa humana, bem como a proteção à família, autorizando-se o seu ingresso no Brasil, independentemente da concessão de visto, considerada a situação grave por que passa o Haiti, aliado ao fato da indisponibilidade da solicitação do visto por meio eletrônico, junto à Embaixada do Brasil em Porto Príncipe. Não identificado o periculum in mora imediato, fora intimada a agravada para apresentação de contraminuta (ID 252930286). A parte agravada apresentou contraminuta (ID 255710597). Parecer do Ministério Público Federal (ID 278239974), opinando pelo provimento do agravo de instrumento. É o relatório.
AGRAVO DE INSTRUMENTO (202) Nº 5001053-37.2022.4.03.0000 RELATOR: Gab. 08 - DES. FED. CARLOS DELGADO AGRAVANTE: GETRO LOUIS AGRAVADO: UNIÃO FEDERAL OUTROS PARTICIPANTES: V O T O O EXMO. SENHOR DESEMBARGADOR FEDERAL CARLOS DELGADO (RELATOR): Cuida-se, aqui, de demanda ajuizada tendo como objetivo a autorização de ingresso do agravante em território nacional, independentemente da concessão de visto, com o objetivo de reunião familiar. Inicialmente, cumpre registrar que o visto é o documento que dá a seu titular expectativa de ingresso em território nacional, o qual pode ser concedido por embaixadas, consulados-gerais, consulados, vice-consulados e, quando habilitados pelo órgão competente do Poder Executivo, por escritórios comerciais e de representação do Brasil no exterior, na exata compreensão do disposto nos arts. 6º e 7º da Lei nº 13.445, de 24 de maio de 2017 (Lei de Migração), que institui os direitos e os deveres do migrante e do visitante, regula a sua entrada e estada no País e estabelece princípios e diretrizes para as políticas públicas para o emigrante. Tal diploma legal estabelece, ainda, que a política migratória brasileira se rege, dentre vários princípios e diretrizes, pela garantia do direito à reunião familiar (art. 3º, VIII) e, no ponto, assegura ao migrante em território nacional, em condição de igualdade com os nacionais, a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, bem como o “direito à reunião familiar do migrante com seu cônjuge ou companheiro e seus filhos, familiares e dependentes” (art. 4º, III). Tal possibilidade de ingresso no país, a fim de viabilizar a reunião familiar, possui previsão no art. 37 da norma referenciada, in verbis: “Art. 37. O visto ou a autorização de residência para fins de reunião familiar será concedido ao imigrante: I - cônjuge ou companheiro, sem discriminação alguma; II - filho de imigrante beneficiário de autorização de residência, ou que tenha filho brasileiro ou imigrante beneficiário de autorização de residência; III - ascendente, descendente até o segundo grau ou irmão de brasileiro ou de imigrante beneficiário de autorização de residência; ou IV - que tenha brasileiro sob sua tutela ou guarda”. É dizer que, conquanto a política migratória nacional seja baseada na acolhida humanitária e, bem por isso, assegurar o direito à reunião familiar, há que se cumprir procedimentos próprios constantes da legislação, no que diz com a regularização migratória, razão pela qual não se permite afastar, indiscriminadamente, a exigência a todos imposta a viabilizar a entrada e permanência do estrangeiro no país, que exigem o cumprimento de critérios específicos. Dito isso, consigno que a controvérsia sub examen envolve, por um lado, a delicada condição dos refugiados provenientes do Haiti – que aportam em território brasileiro com a expectativa de melhores condições de vida – e, de outro, a pretensão de trazer seus familiares próximos para junto de seu convívio, consideradas as inúmeras dificuldades enfrentadas por aquela nação, tanto nos aspectos políticos e econômicos, como na ocorrência de catástrofes naturais, como, por exemplo, terremotos que assolam diversas áreas daquela localidade. A situação não passou despercebida pelo governo brasileiro, tanto que, tendo em vista a significativa demanda de vistos por nacionais haitianos, que, até então, era da alçada de servidores afetos à Embaixada do Brasil em Porto Príncipe, cujo contingente, no entanto, era insuficiente a tal, fora celebrado acordo com a Organização Internacional para as Migrações, viabilizando a implantação de um centro de processamento de vistos, denominado “Brazil Visa Application Center – BVAC”, a dar a última palavra acerca da concessão ou negativa do visto. Daí que a Embaixada passou a não mais receber pedidos diretamente, por conta da criação desse canal facilitador, cujo atendimento – pessoal e intransferível – é obtido por meio de agendamento eletrônico. Ocorre que há inúmeros relatos dando conta da impossibilidade de agendamento, por mensagens recorrentes no sítio eletrônico, acerca da inexistência de vagas. No ponto, consigno que, consulta deste Gabinete junto ao endereço eletrônico http://haiti.iom.int/bvac, de fato, resultou infrutífera, com o resultado (“Sorry. All appointments are currently booked. New slots will be available soon”). A esse respeito, pondero, por oportuno, que a indisponibilidade transitória de vagas para a realização do agendamento, de per se, não legitima a intervenção do Poder Judiciário para a concessão, propriamente dita, do visto, ou mesmo autorização para sua dispensa, sob pena de inequívoca usurpação da competência do Poder Executivo, a quem é atribuída, com exclusividade, a análise – de cunho discricionário - do pedido e o cumprimento dos requisitos documentais mínimos a tanto exigidos e, corolário lógico, quebra no sistema de tripartição. Confira-se, a propósito, recente precedente desta Corte: “AGRAVO DE INSTRUMENTO. PROCESSUAL CIVIL. ESTRANGEIRO. HAITI. INGRESSO NO TERRITÓRIO NACIONAL SEM VISTO. REUNIÃO FAMILIAR. IMPOSSIBILIDADE. SEPARAÇÃO DOS PODERES. PRINCÍPIO DO DEVIDO PROCESSO LEGAL. (...) 5. O único órgão com competência para a concessão do visto é a Embaixada brasileira na capital do Haiti, mesmo porque trata-se de atribuição do Poder Executivo, de forma que a interferência do Judiciário configuraria uma violação ao Princípio da Separação dos Poderes, do devido processo legal e da isonomia com os outros estrangeiros que corretamente aguardam o desenrolar dos procedimentos administrativos, sem solicitar a interferência do Poder Judiciário. 6. A judicialização do processo de imigração realizado pela comunidade haitiana, ou por representações, acaba por interferir na fila de atendimento e também, como forma mais grave, possibilita a entrada no País de estrangeiros sem que se realize um mínimo processo de verificação de antecedentes e confirmação de cidadania, o que gera risco sistêmico na política pública de imigração. 7. Observância aos princípios da legalidade, da isonomia e do devido processo legal, resguardando a separação dos poderes como um pilar das nações democráticas. 8. Agravo de instrumento desprovido”. (AI nº 5002754-96.2023.4.03.0000, Rel. Des. Federal Marli Ferreira, 4ª Turma, DJEN 10/07/2023). Não se desconhece a notória judicialização do tema, com nefasto efeito multiplicador de demandas, a ensejar pronunciamento do Superior Tribunal de Justiça, no sentido da exigência de prévio acionamento das vias administrativas para a obtenção de visto de nacionais haitianos, com o objetivo de integrar-se ao convívio familiar. Refiro-me à Suspensão de Liminar e Sentença nº 3092, em que restou decidido: “AGRAVO INTERNO EM SUSPENSÃO DE LIMINAR E DE SENTENÇA. ESTRANGEIROS MENORES DE IDADE AFASTADOS DOS GENITORES. ACOLHIDA HUMANITÁRIA DE HAITIANOS. EFEITO MULTIPLICADOR. SUSPENSÃO GENÉRICA DE TODAS E QUALQUER MEDIDA LIMINAR SOBRE O TEMA, PRESENTE OU FUTURA. PONDERAÇÃO DE VALORES E RAZOABILIDADE. EXAME INDIVIDUALIZADO DE CADA SITUAÇÃO. 1. A intervenção do Poder Judiciário em atos executivos deve ficar restrita a hipóteses excepcionalíssimas, em observância ao postulado constitucional da divisão de poderes. 2. O indesejado efeito multiplicador deve ser sopesado e examinado em harmonia com o dever de cumprimento das estipulações constitucionais e com a proteção dos direitos fundamentais da pessoa, em ponderação de valores e sob o critério da razoabilidade, sem tolher o exercício da jurisdição e o direito de obtenção de decisões judiciais, in genere, pelos cidadãos. 3. Primazia da proteção da criança e do adolescente, da tutela da família como base da sociedade e do direito ao convívio familiar. 4. Salvaguarda da possibilidade de os cidadãos se dirigirem ao tribunal para a declaração e a efetivação dos seus direitos, obtendo o exame individual da sua situação e os remédios previstos na legislação, inclusive a obtenção de medidas liminares. Direito fundamental da pessoa que tem de receber, em Estado de Direito, a proteção jurisdicional. 5. A Segunda Turma do E. STF, ao julgar o Habeas Corpus 216.917, impetrado contra a Presidência do Superior Tribunal de Justiça em decorrência da Suspensão de Liminar e de Sentença ora em exame, concedeu, de ofício, a ordem, para restabelecer a decisão liminar proferida, com base em tratados internacionais dos quais o Brasil é signatário e na proteção de direitos fundamentais. 6. Permissão às instâncias inferiores para o exame concreto e individualizado de cada caso que lhes é trazido, exigindo-se que, com prudência e com cautela, diante da inequívoca demonstração de que foram exauridas as possibilidades administrativas e as medidas instrutórias de informação viáveis, inclusive perícia social no Brasil, deliberem sobre a concessão ou não das medidas liminares. 7. Agravos Internos providos para reformar a decisão objurgada e reestabelecer as liminares de origem”. (AgInt na SLS nº 3092/SC, Rel. Ministra Presidente, Corte Especial, DJe 15/12/2022). Depreende-se do judicioso voto da e. Ministra Relatora, o entendimento no sentido da primazia do Poder Executivo em analisar – e decidir – acerca da concessão dos vistos, devendo a intervenção judicial ser ultimada apenas em casos excepcionais. Trago o excerto: “É certo, como bem se acentuou no decisum atacado, que "não se pode permitir que seja retirada dos atos administrativos do Poder Executivo a presunção da legitimidade ou veracidade, sob pena de se desordenar a lógica de funcionamento regular do Estado na prestação dos serviços públicos de forma geral, cabendo a judicialização em casos extremos de inobservância dos preceitos legais", como também é certo que a multiplicação desenfreada e sem critério de liminares da espécie pode provocar lesão à ordem pública, notadamente quando as medidas são concedidas de forma açodada. Sem dúvida, a intervenção do Poder Judiciário em atos executivos deve ficar restrita a hipóteses excepcionalíssimas, em observância ao postulado constitucional da divisão de poderes. Disso não se discorda”. Em análise a posteriores Embargos de Declaração opostos contra referido julgamento, a Corte Especial reafirmou, uma vez mais, a necessidade do exaurimento da via administrativa, junto aos órgãos consulares, como condição ao acionamento do Poder Judiciário. Confira-se, com destaques meus: “EMBARGOS DE DECLARAÇÃO NO AGRAVO INTERNO NA SUSPENSÃO DE SEGURANÇA. OMISSÃO E CONTRADIÇÃO. INEXISTÊNCIA. PRETENSÃO DE INTEGRAÇÃO DA EMENTA. IMPOSSIBILIDADE. INEXISTÊNCIA DE VÍCIOS NO JULGADO. (...) 2. Comando contido na parte dispositiva do Voto que foi inequívoco ao estipular, de forma cogente e imperativa, que as instâncias inferiores devem exigir, antes do eventual deferimento de medidas liminares nos casos tratados na SLS — admissão da entrada de haitianos —, cumulativamente, que haja (a) o esgotamento das possibilidades administrativas; e (b) a adoção prévia das medidas instrutórias de informação viáveis, inclusive perícia social no Brasil. 3. Descumprimento dessas prescrições que poderá ensejar a propositura de Reclamação para a preservação da autoridade da decisão do Superior Tribunal de Justiça, e, eventualmente, de Reclamação Disciplinar perante os órgãos correcionais contra os recalcitrantes, mas não de Embargos de Declaração que objetivem dar destaque, na ementa, a aspectos que a parte considera relevantes. 4. A ementa é simples extrato dos pontos essenciais do Voto e não pode e nem deve conter todos os seus fundamentos e estipulações. Inviabilidade do manejo de Embargos de Declaração que objetivem a sua complementação. 5. Inexistindo omissão, obscuridade ou contradição a ser suprida, inviável o acolhimento dos Embargos de Declaração. 6. Embargos de Declaração rejeitados”. (DJen 28/04/2023). Não se olvide, como já referenciado no corpo deste voto, a vulnerável situação política e econômica do Haiti, que ainda recomenda a adoção de providências, por parte do governo brasileiro, quanto à permissão de ingresso de cidadãos haitianos no Brasil, com fins humanitários. Prova disso é a recente edição da Portaria Interministerial MJSP/MRE nº 37, de 30 de março de 2023, que dispõe sobre a concessão do visto temporário e a autorização de residência, para fins de acolhida humanitária, a nacionais haitianos e apátridas afetados por calamidade de grande proporção, por desastre ambiental ou pela situação de instabilidade institucional na República do Haiti, ratificando, no particular, os objetivos norteadores da política migratória. Na mesma seara – e para o que aqui interessa -, editou-se a Portaria Interministerial MJSP/MRE nº 38, de 10 de abril de 2023, que disciplina a concessão de autorização de residência prévia e a respectiva concessão de visto temporário para fins de reunião familiar para nacionais haitianos e apátridas, com vínculos familiares no Brasil. Buscou-se, com tal regulamentação, criar condições para o processamento adequado e célere de vistos de reunião familiar (art. 2º), com prioridade na apreciação dos pedidos formulados por mulheres, crianças, idosos, pessoas com deficiência e seus grupos familiares (art. 1º, §3º). Ampliou-se, ainda, o rol daqueles autorizados a formular o requerimento de visto, criando-se a figura dos “chamantes”, a contento do disposto nos arts. 3º e 4º, assim transcritos: “Art. 3º Poderão ser familiares chamantes, nos termos desta Portaria Interministerial, os nacionais haitianos ou apátridas residentes na República do Haiti que obtiveram autorização de residência com fundamento em acolhida humanitária, por prazo determinado ou indeterminado. Art. 4º Poderão ser chamados, nos termos desta Portaria Interministerial, os seguintes nacionais haitianos ou apátridas residentes na república do Haiti: I - cônjuge ou companheiro, sem discriminação alguma, nos termos do ordenamento jurídico brasileiro; II - filho de brasileiro ou de imigrante beneficiário de autorização de residência”. Normatizou-se, ainda, o procedimento de solicitação da residência prévia – agora diretamente ao Ministério da Justiça – o qual, uma vez deferido o pedido, “enviará comunicação ao Ministério das Relações Exteriores, que poderá autorizar a Embaixada do Brasil em Porto Príncipe a conceder o visto temporário para fins de reunião familiar com base no deferimento da autorização de residência prévia” (art. 6º, §3º), seguido de solicitação, por parte do chamante, do visto temporário junto à Embaixada do Brasil em Porto Príncipe (§4º). Como se vê, o governo brasileiro, sensível à situação dos estrangeiros haitianos residentes no país - e que buscam trazer seus parentes próximos ao convívio familiar -, editou normativos que, conforme adrede mencionado, objetivam conferir mais agilidade à regularização migratória de entes familiares de nacionais haitianos. Mesmo com tais e inegáveis esforços, verifica-se a recorrência da situação de indisponibilidade para o agendamento dos pedidos de visto, ainda que sob o fundamento da significativa pletora de demandas, a impedir, por consequência lógica, o acesso dos cidadãos haitianos interessados. Assim, como forma de equalizar a orientação emanada pelo Superior Tribunal de Justiça, sopesando a necessidade do exaurimento da via administrativa, com a intervenção judicial apenas em casos pontuais, entendo que a solução mais adequada passa pela determinação à União, por meio dos órgãos competentes, que receba e processe – seja por meio físico ou eletrônico - a documentação necessária à concessão do visto humanitário com base na reunião familiar, fixando, para tanto, o prazo de sessenta (60) dias a contar do recebimento da intimação para cumprimento da obrigação de fazer. Confira-se entendimento análogo da 4ª Turma deste Tribunal: “ADMINISTRATIVO. APELAÇÃO. ESTRANGEIRO. HAITI. AUTORIZAÇÃO DE VIAGEM. VISTO HUMANITÁRIO PARA REUNIÃO FAMILIAR. RECURSO PARCIALMENTE PROVIDO. - A questão do ingresso dos haitianos com vista à reunião familiar, consoante decisão proferida pelo STJ, no SLS 3092-SC não está suspensa, tendo sido autorizada às instâncias inferiores a análise das liminares e tutelas com critério e cautela, desde que se observem se houve exaurimento das possibilidades administrativas de e medidas instrutórias de informação viáveis. A análise do pleito, em sede de apelação, é possível. - O autor busca o ingresso em território nacional da esposa e do filho menor, provenientes do Haiti, por via aérea, para reunião com o pai. Requer a acolhida humanitária, tendo em vista a grave crise que acomete o Haiti, relatando, inclusive a impossibilidade de obtenção de visto perante a embaixada do Brasil em Porto Príncipe. - Ademais, em 14 de agosto de 2021, o Haiti foi atingido por um terremoto de grandes proporções, causando destruição extrema, várias vítimas fatais e centenas de feridos. O agravamento da crise no Haiti ocasionou a suspensão de serviços como energia, água potável, transporte, telefone e internet, atingindo inclusive o funcionamento da própria embaixada do Brasil, segundo relatos. Desta forma, a crise no país atinge patamares exorbitantes, motivo pelo qual a única saída para os haitianos que desejam ingressar no Brasil é a judicial. - SANTCHESSE CHARLES tem CPF (ID 260496924, páginas 9/10), carteira de registro nacional migratório com validade até 27/02/2029 (ID 260496924, páginas 11/12), endereço fixo na cidade de Várzea Paulista/SP (ID 260496924, páginas 1 e 13) e carteira de trabalho com anotação de emprego (ID 260496924, páginas 14/16), o que demonstra que está inserida na vida nacional. - O vínculo de companheira de CHRISTELA JOSEPH, qualificada por meio de seu passaporte haitiano anexado aos autos (ID 260496924, página 2), para com o residente no Brasil está descrito no documento ID 260496924, página 7. A comprovação de que STEEVEN CHARLES (S. C.), menor de idade, é filho de ambos está no passaporte haitiano da criança (ID 260496924, página 3) e em sua certidão de nascimento (ID 260496924, página 6). - Não se afigura razoável, nem proporcional, o não recebimento do pedido dos vistos, mormente quando a parte se propuser a regularizar os documentos, nos termos do art. 37, da Lei de Imigração nº 13.445/2017. Precedente jurisprudencial. - Por outro lado, a União não está inerte quanto à situação dos haitianos que objetivam acolhida humanitária, tanto que foi editada a Portaria Interministerial MJSP/MRE nº 33, de 29 de dezembro de 2022, que dispõe sobre a concessão do visto temporário e a autorização de residência, para fins de acolhida humanitária, a nacionais haitianos e apátridas afetados por calamidade de grande proporção ou situação de desastre ambiental na República do Haiti, ratificando os objetivos norteadores da política migratória. - Cabe destacar que o Superior Tribunal de Justiça, no precedente supracitado (SLS Nº 3092-SC) ponderou que a intervenção do Poder Judiciário deve ficar restrita a hipóteses excepcionalíssimas e reforçou a necessidade de demonstração de que foram exauridas as possibilidades administrativas e as medidas instrutórias de informação viáveis inclusive perícia social no Brasil, para que sejam deferidas as liminares e tutelas nos casos de ingresso sem visto dos haitianos. - Desta forma, levando-se em conta todas estas considerações, bem como o acervo probatório constante nos autos, que não traz elementos que comprovem o exaurimento da via administrativa, a melhor solução é o deferimento parcial do pedido, para determinar à União que receba e processe a documentação necessária à concessão do visto humanitário com base na reunião familiar. - Apelação parcialmente provida para determinar que a União Federal receba a documentação necessária à concessão dos vistos humanitários com base na reunião familiar e providencie, com celeridade, a expedição dos mesmos”. (AC nº 5033337-68.2021.4.03.6100, Rel. para o acórdão Des. Federal Mônica Nobre, 4ª Turma, p. 04/07/2023). Ante o exposto, dou parcial provimento ao agravo de instrumento, a fim de determinar que a União Federal, por meio dos órgãos competentes, receba e processe – seja por meio físico ou eletrônico – a documentação necessária à concessão do visto humanitário com base na reunião familiar, no prazo de 60 (sessenta) dias a contar do recebimento da intimação para cumprimento. É como voto. Q U E S T Ã O D E O R D E M O EXMO. SENHOR DESEMBARGADOR FEDERAL CARLOS DELGADO (RELATOR): Trata-se de Agravo de Instrumento interposto por GETRO LOUIS, cidadão haitiano, contra a r. decisão proferida pelo Juízo Federal da 14ª Vara Cível de São Paulo/SP que, em procedimento comum ajuizado em face da UNIÃO FEDERAL, objetivando o reconhecimento da ilegalidade das sanções previstas na Portaria nº 658/2021, abstendo-se de qualquer medida tendente à retirada compulsória do território nacional, e o direito à regularização migratória, sob a forma de solicitação do reconhecimento da condição de pessoa refugiada, com a concessão de autorização de residência provisória, indeferiu o pedido de concessão de tutela de urgência. Devidamente processado, o feito fora incluído na pauta desta 3ª Turma, em assentada realizada aos 04 de outubro de 2023, oportunidade em que o julgamento fora suspenso, em razão de pedido de vista formulado pela e. Desembargadora Federal Adriana Pileggi (ID 280851116). É o sucinto relato. De acordo com o voto de minha lavra proposto no julgamento já iniciado, a questão ali tratada está afeta à possibilidade de ingresso, em território nacional, de cidadão haitiano, com a dispensa de visto, para fins de autorização de residência com base em reunião familiar. Constato, no entanto, em melhor análise da controvérsia posta a julgamento, que o pano de fundo do presente agravo diz, em verdade, com o reconhecimento da ilegalidade de atos normativos editados pelo Poder Executivo durante o período da pandemia da Covid-19, em relação aos imigrantes ingressos por fronteira terrestre, no sentido da aplicação de multa pecuniária e possibilidade de imediata deportação, considerada a irregularidade da situação migratória. Nessa ordem de ideias, resta inequívoca a caracterização de “erro material”, o qual pode ser corrigido inclusive de ofício, a contento do disposto no art. 494 do Código de Processo Civil. Daí que, detectado, a tempo, o lapso verificado, suscito a presente questão de ordem para apreciação deste colegiado, no sentido de anular o julgamento anterior, em razão da declinação de proposta dissonante com a matéria dos autos, passando o voto de minha relatoria a constar nos seguintes termos: Consigno que a Lei nº 13.445/2017 estabelece que a política migratória brasileira se rege, dentre vários princípios e diretrizes, pela garantia da promoção de entrada regular e de regularização documental (art. 3º, V) e, no ponto, assegura ao migrante em território nacional, a autorização de residência em diversas hipóteses elencadas no art. 30, destacando-se, para o que aqui interessa, a situação na qual o estrangeiro seja beneficiário de refúgio. Confira-se: “Art. 30: A residência poderá ser autorizada, mediante registro, ao imigrante, ao residente fronteiriço ou ao visitante que se enquadre em uma das seguintes hipóteses: II - a pessoa: (...) e) seja beneficiária de refúgio, de asilo ou de proteção ao apátrida”. O artigo 31, caput, da Lei nº 13.445/17, ao tempo em que estabeleceu que o procedimento e os prazos para a autorização de residência serão disciplinados pela norma regulamentadora, assegurou que “o solicitante de refúgio, de asilo ou de proteção ao apátrida fará jus a autorização provisória de residência até a obtenção de resposta ao seu pedido” (§4º). Tal normativo, ao cuidar das “infrações e penalidades administrativas”, caracteriza como infração, dentre outras condutas, a entrada em território nacional sem autorização (apenado com deportação, caso não regularize a situação migratória no prazo fixado), permanência depois de esgotado o prazo legal da documentação migratória, e furtar-se ao controle migratório, na entrada ou saída do território nacional (art. 109, I, II e VII). Há expressa previsão de penalidade pecuniária, cuja aplicação deve observância, pelo agente público, da condição econômica do infrator, a reincidência e a gravidade da infração, com valor mínimo individualizado de R$100,00 (cem reais), em se tratando de pessoa física, limitado a R$10.000,00 (dez mil reais), consoante art. 108, II, IV e V. A seu turno, o Decreto nº 9.199/2017, ao tratar do reconhecimento da condição de refugiado, garante ao solicitante a emissão do “Documento Provisório de Registro Nacional Migratório”, e enseja, com isso, vários direitos ao imigrante, tais como expedição de carteira de trabalho provisória, inclusão no Cadastro de Pessoa Física e abertura de conta bancária em instituição financeira supervisionada pelo Banco Central do Brasil (art. 119). E, ainda, o decreto regulamentador é expresso ao dispor que “o ingresso irregular no território nacional não constituirá impedimento para a solicitação de reconhecimento da condição de refugiado e para a aplicação dos mecanismos de proteção da pessoa refugiada, hipótese em que não incidirá o disposto no art. 307, desde que, ao final do procedimento, a condição de refugiado seja reconhecida”, na exata compreensão de seu art. 120, lembrando que as penalidades constantes no citado art. 307, são as mesmas elencadas no já citado art. 109 da Lei de Migração. Por outro lado, e para o que aqui interessa, durante o lapso temporal no qual o mundo fora assolado pela pandemia da Covid-19, o Governo Federal editou a Lei nº 13.979/2020, estabelecendo medidas para seu enfrentamento, dentre as quais a restrição de ingresso em território nacional, com o escopo de impedir a entrada de viajantes e, com isso, acarretar potencial aumento dos riscos de contaminação e disseminação do vírus. Confira-se: “Art. 3º: Para enfrentamento da emergência de saúde pública de importância internacional de que trata esta Lei, as autoridades poderão adotar, no âmbito de suas competências, entre outras, as seguintes medidas: (...) VI – restrição excepcional e temporária, por rodovias, portos ou aeroportos, de: a) entrada e saída do País; b) locomoção interestadual e intermunicipal”. A tanto, diversas portarias regulamentaram a restrição mencionada, valendo menção a Portaria nº 658, de 05 de outubro de 2021, que, durante sua vigência, dispôs, em seu art. 4º, acerca da proibição da entrada no país de estrangeiros, de qualquer nacionalidade, por rodovias ou quaisquer outros meios terrestres, sujeitando o infrator à responsabilização civil, administrativa e penal, repatriação ou deportação imediata e inabilitação do pedido de refúgio (art. 7º). A Portaria em questão fora revogada pela de nº 660, e assim sucessivamente, sobrevieram Portarias revocatórias das anteriores (nº 661, revogada pela de nº 663, que, por sua vez, fora revogada pela de nº 666), passando esta última a autorizar a entrada no país, por via terrestre, do viajante de procedência internacional, brasileiro ou estrangeiro, desde que apresentado, nos pontos de controle, comprovante de vacinação (art. 7º). O texto fora repetido na Portaria nº 670 e, finalmente, na Portaria nº 678, de 12 de setembro de 2022, desta feita ampliando a autorização de ingresso desde que apresentado, alternativamente (art. 3º) “I - o comprovante de vacinação COVID-19, nos termos do art. 4º, impresso ou em meio eletrônico; ou II - o comprovante de realização de teste para rastreio da infecção pelo SARS-CoV2 (covid-19), com resultado negativo ou não detectável, do tipo teste de antígeno ou laboratorial RT-PCR realizados em um dia antes do momento do embarque”, mas mantendo, no entanto, as sanções originalmente estabelecidas, inclusive a possibilidade de deportação. Dito isso, verifica-se, de forma inequívoca, que as penalidades aplicadas àqueles imigrantes com entrada irregular em território nacional, durante o período de restrição sanitária, constaram tão somente das Portarias mencionadas, na medida em que a própria lei não traz, em seu bojo, a previsão de qualquer sanção decorrente do ingresso irregular. Disso resulta que os normativos em questão (Portarias Interministeriais) desbordaram, a mais não poder, dos limites definidos pela lei que lhes serviu de fundamento, já que esta apenas possibilitou a imposição de restrições de entrada, saída e locomoção em solo brasileiro, passando ao largo de qualquer medida punitiva. Outro não é o entendimento pacífico deste Tribunal, incluindo precedente desta 3ª Turma, assim ementado: “PROCESSUAL CIVIL. ADMINISTRATIVO. ESTRANGEIRO. TUTELA PROVISÓRIA DE URGÊNCIA ANTECIPADA. PORTARIA INTERMINISTERIAL 652/2021. PANDEMIA DE COVID-19. ABSTENÇÃO DE RETIRADA COMPULSÓRIA DE ESTRANGEIRO. AGRAVO DE INSTRUMENTO DESPROVIDO. 1. A questão posta nos autos diz respeito à permanência de estrangeiro em território nacional, em contrariedade com as normas previstas na Portaria Interministerial nº 652/2021. 2. A tutela provisória de urgência, em sua modalidade antecipada, objetiva adiantar a satisfação da medida pleiteada, garantindo a efetividade do direito material discutido. Para tanto, nos termos do art. 300 do atual Código de Processo Civil, exige-se, cumulativamente, a demonstração da probabilidade do direito (fumus boni iuris) e do perigo de dano ou risco ao resultado útil do processo (periculum in mora). 3. A Portaria Interministerial nº 652/2021, publicada no contexto de agravamento da crise sanitária decorrente da pandemia de COVID-19, buscou impedir a entrada de estrangeiros possivelmente infectos com o vírus no Brasil, como forma de evitar a disseminação da doença em território nacional. Ademais, seu art. 8º prevê a possibilidade de imposição de responsabilização civil, administrativa e penal, repatriação ou deportação imediata ou inabilitação de pedido de refúgio àqueles que descumprirem suas disposições. 4. A inabilitação ao pedido de refúgio prevista no ato normativo em tela viola o princípio da proibição de rechaço a refugiado, contemplado na Convenção das Nações Unidas sobre o Estatuto dos Refugiados (1951), internalizada no ordenamento jurídico brasileiro por meio do Decreto 50.215/61. 5. Nos termos da Lei 9.474/97, a irregularidade do ingresso de estrangeiro no território nacional não pode constituir óbice à solicitação de refúgio. Verifica-se, portanto, que a Portaria Interministerial nº 652/2021 extrapolou os limites que lhe cabiam, enquanto ato regulamentar, notadamente porque no âmbito da Lei 13.979/20, editada especialmente para disciplinar sobre medidas de enfrentamento da pandemia de COVID-19, nada foi disposto quanto à solicitação de refúgio. 6. Em que pesem as alegações do demandante, verifica-se que o pronunciamento judicial agravado foi suficiente à tutela do direito pretendido, na medida em que impôs a abstenção de qualquer ato que pudesse promover a retirada compulsória do recorrente do País, ou que pudesse lhe acarretar limitações em seu direito ambulatorial por razões migratórias. Entende-se que, ao menos em sede de cognição sumária, há resguardo suficiente e proporcional de suas garantias. 7. Agravo de instrumento desprovido”. (AI nº 5012134-17.2021.4.03.0000, Rel. Des. Federal Antonio Cedenho, 3ª Turma, p. 10/02/2022). E, ainda: “MANDADO DE SEGURANÇA. ADMINISTRATIVO. ESTRANGEIRO. SOLICITAÇÃO DE REFÚGIO. INGRESSO IRREGULAR EM TERRITÓRIO NACIONAL DURANTE A PANDEMIA DE COVID-19. RESTRIÇÕES IMPOSTAS POR ATO INFRALEGAL. LEI 13.979/2020. PORTARIAS 652/21 E 655/21. APELAÇÃO E REMESSA NECESSÁRIA DESPROVIDAS. 1. Trata-se de mandado de segurança impetrado por estrangeiro com o fito de obter o processamento do seu pedido de reconhecimento da condição de refugiado. 2. Segundo o artigo 8º da Lei nº 9.474/97 (Estatuto dos Refugiados), a irregularidade do ingresso de estrangeiro no território nacional não pode constituir óbice à solicitação de refúgio. 3. O Decreto nº 9.199/17, ao regulamentar a Lei nº 13.445/2017 (Lei de Migração), também dispõe em seu artigo 120 que "o ingresso irregular no território nacional não constituirá impedimento para a solicitação de reconhecimento da condição de refugiado e para a aplicação dos mecanismos de proteção da pessoa refugiada, hipótese em que não incidirá o disposto no art. 307, desde que, ao final do procedimento, a condição de refugiado seja reconhecida". 4. A Lei nº 13.979/2020, que trata das medidas para enfrentamento da emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do coronavírus responsável pelo surto de 2019, nada estabelece acerca de estrangeiros que adentrem o território brasileiro em busca de refúgio durante a pandemia. 5. Assim, tanto a Portaria Interministerial nº 652/2021, de 25 de janeiro de 2021, quanto a Portaria nº 655, de 23 de junho de 2021, extrapolaram os limites que lhes cabiam, enquanto ato regulamentar, ao preverem, no artigo 8º, III, que o descumprimento desses atos administrativos, implicaria para o agente infrator a inabilitação de pedido de refúgio, mormente porque no âmbito da Lei 13.979/20 nada foi disposto nesse sentido. Precedente. 6. Apelação e remessa necessária desprovidas” (AC nº 5009838-55.2021.4.03.6100, Rel. Des. Federal Nelton dos Santos, 3ª Turma, p. 25/05/2022). Pois bem. No caso dos autos, o autor, natural do Haiti, teria ingressado em território nacional no mês de novembro de 2020, por meio da fronteira terrestre com o Amapá, portando passaporte válido (ID 169768238), sem, no entanto, carimbo de entrada. Tal situação enseja ao imigrante não só a autorização provisória de residência até a obtenção de resposta ao seu pedido de acolhida, quando solicitado, a contento do disposto no art. 31, §4º, da Lei de Migração, como a isenção da imposição de qualquer penalidade, nos precisos termos do já citado art. 120 do Decreto nº 9.199/2017, incluindo aí a multa pecuniária e inabilitação do pedido de refúgio. Não bastasse, oportuno consignar que, para além de extrapolar seu poder regulamentar, os efeitos das Portarias Interministeriais citadas, já não mais se protraem no tempo, em razão do arrefecimento dos casos de contaminação pelo coronavírus, sobretudo em decorrência da significativa cobertura vacinal implantada no país. Ante o exposto, suscito questão de ordem no sentido de anular o julgamento constante da assentada ID 280851116 e, em novo pronunciamento dou provimento ao agravo de instrumento interposto pelo autor, a fim de determinar que as autoridades migratórias se abstenham de qualquer ato tendente à imposição de penalidade pecuniária ou restritiva de locomoção ou permanência em território nacional, exclusivamente com base na Portaria nº 658/2021 e sucessivas reedições, até exame de cognição exauriente da demanda subjacente. É como voto.
AGRAVO DE INSTRUMENTO (202) Nº 5001053-37.2022.4.03.0000
RELATOR: Gab. 08 - DES. FED. CARLOS DELGADO
AGRAVANTE: GETRO LOUIS
AGRAVADO: UNIÃO FEDERAL
OUTROS PARTICIPANTES:
V O T O - V I S T A
A Excelentíssima Senhora Desembargadora Federal ADRIANA PILEGGI:
Diante do voto inicialmente proferido pelo eminente Relator, pedi vista para melhor analisar as questões discutidas nos autos.
No entanto, sobreveio questão de ordem para anular o julgamento anterior em razão de erro material, ensejando o novo voto apresentado pelo e. Relator dando provimento ao agravo de instrumento, “a fim de determinar que as autoridades migratórias se abstenham de qualquer ato tendente à imposição de penalidade pecuniária ou restritiva de locomoção ou permanência em território nacional, exclusivamente com base na Portaria nº 658/2021 e sucessivas reedições, até exame de cognição exauriente da demanda subjacente”.
Desta forma, acompanho integralmente o E. Relator quanto à Questão de Ordem apresentada, bem como, refletindo sobre todo o processado, entendo por bem acompanhar a relatoria na integralidade do seu novo pronunciamento judicial, para dar provimento ao agravo de instrumento.
É como voto.
E M E N T A
CONSTITUCIONAL. ADMINISTRATIVO. PROCESSUAL CIVIL. AGRAVO DE INSTRUMENTO. QUESTÃO DE ORDEM. PROPOSTA DE VOTO DIVERSA DA MATÉRIA TRATADA NOS AUTOS. NULIDADE DO JULGAMENTO ANTERIOR. ESTRANGEIRO. PEDIDO DE REFÚGIO. LEI Nº 13.979/2020. RESTRIÇÃO DE ENTRADA, SAÍDA E LOCOMOÇÃO EM TERRITÓRIO NACIONAL. PANDEMIA DA COVID-19. PORTARIAS INTERMINISTERIAIS. PREVISÃO DE SANÇÕES POR ENTRADA IRREGULAR DE IMIGRANTE. PODER REGULAMENTAR EXTRAPOLADO. PRECEDENTES. AGRAVO DE INSTRUMENTO PROVIDO.
1 – De acordo com o voto de minha lavra proposto no julgamento já iniciado, a questão ali tratada está afeta à possibilidade de ingresso, em território nacional, de cidadão haitiano, com a dispensa de visto, para fins de autorização de residência com base em reunião familiar.
2 – Constata-se, no entanto, em melhor análise da controvérsia posta a julgamento, que o pano de fundo do presente agravo diz, em verdade, com o reconhecimento da ilegalidade de atos normativos editados pelo Poder Executivo durante o período da pandemia da Covid-19, em relação aos imigrantes ingressos por fronteira terrestre, no sentido da aplicação de multa pecuniária e possibilidade de imediata deportação, considerada a irregularidade da situação migratória.
3 - Nessa ordem de ideias, resta inequívoca a caracterização de “erro material”, o qual pode ser corrigido inclusive de ofício, a contento do disposto no art. 494 do Código de Processo Civil.
4 - Daí que, detectado, a tempo, o lapso verificado, suscita-se a presente questão de ordem para apreciação deste colegiado, no sentido de anular o julgamento anterior, em razão da declinação de proposta dissonante com a matéria dos autos, passando o voto a constar nos seguintes termos, ora ementados:
5 - O artigo 31, caput, da Lei nº 13.445/17, ao tempo em que estabeleceu que o procedimento e os prazos para a autorização de residência serão disciplinados pela norma regulamentadora, assegurou que “o solicitante de refúgio, de asilo ou de proteção ao apátrida fará jus a autorização provisória de residência até a obtenção de resposta ao seu pedido” (§4º).
6 - A seu turno, o Decreto nº 9.199/2017, ao tratar do reconhecimento da condição de refugiado, garante ao solicitante a emissão do “Documento Provisório de Registro Nacional Migratório”, e enseja, com isso, vários direitos ao imigrante, tais como expedição de carteira de trabalho provisória, inclusão no Cadastro de Pessoa Física e abertura de conta bancária em instituição financeira supervisionada pelo Banco Central do Brasil (art. 119).
7 - E, ainda, o decreto regulamentador é expresso ao dispor que “o ingresso irregular no território nacional não constituirá impedimento para a solicitação de reconhecimento da condição de refugiado e para a aplicação dos mecanismos de proteção da pessoa refugiada, hipótese em que não incidirá o disposto no art. 307, desde que, ao final do procedimento, a condição de refugiado seja reconhecida”, na exata compreensão de seu art. 120, lembrando que as penalidades constantes no citado art. 307, são as mesmas elencadas no já citado art. 109 da Lei de Migração.
8 - Por outro lado, e para o que aqui interessa, durante o lapso temporal no qual o mundo fora assolado pela pandemia da Covid-19, o Governo Federal editou a Lei nº 13.979/2020, estabelecendo medidas para seu enfrentamento, dentre as quais a restrição de ingresso em território nacional, com o escopo de impedir a entrada de viajantes e, com isso, acarretar potencial aumento dos riscos de contaminação e disseminação do vírus.
9 - A tanto, diversas portarias regulamentaram a restrição mencionada, valendo menção a Portaria nº 658, de 05 de outubro de 2021, que, durante sua vigência, dispôs, em seu art. 4º, acerca da proibição da entrada no país de estrangeiros, de qualquer nacionalidade, por rodovias ou quaisquer outros meios terrestres, sujeitando o infrator à responsabilização civil, administrativa e penal, repatriação ou deportação imediata e inabilitação do pedido de refúgio (art. 7º).
10 - Verifica-se, de forma inequívoca, que as penalidades aplicadas àqueles imigrantes com entrada irregular em território nacional, durante o período de restrição sanitária, constaram tão somente das Portarias mencionadas, na medida em que a própria lei não traz, em seu bojo, a previsão de qualquer sanção decorrente do ingresso irregular.
11 - Disso resulta que os normativos em questão (Portarias Interministeriais) desbordaram, a mais não poder, dos limites definidos pela lei que lhes serviu de fundamento, já que esta apenas possibilitou a imposição de restrições de entrada, saída e locomoção em solo brasileiro, passando ao largo de qualquer medida punitiva. Precedentes deste Tribunal.
12 - No caso dos autos, o autor, natural do Haiti, teria ingressado em território nacional no mês de novembro de 2020, por meio da fronteira terrestre com o Amapá, portando passaporte válido, sem, no entanto, carimbo de entrada.
13 - Tal situação enseja ao imigrante não só a autorização provisória de residência até a obtenção de resposta ao seu pedido de acolhida, quando solicitado, a contento do disposto no art. 31, §4º, da Lei de Migração, como a isenção da imposição de qualquer penalidade, nos precisos termos do já citado art. 120 do Decreto nº 9.199/2017, incluindo aí a multa pecuniária e inabilitação do pedido de refúgio.
14 - Não bastasse, oportuno consignar que, para além de extrapolar seu poder regulamentar, os efeitos das Portarias Interministeriais citadas, já não mais se protraem no tempo, em razão do arrefecimento dos casos de contaminação pelo coronavírus, sobretudo em decorrência da significativa cobertura vacinal implantada no país.
15 – Questão de ordem suscitada para anular-se o julgamento anterior. Em novo pronunciamento, agravo de instrumento interposto pelo autor provido.