Diário Eletrônico

PODER JUDICIÁRIO

TRIBUNAL REGIONAL FEDERAL DA 3ª REGIÃO
 PODER JUDICIÁRIO
Tribunal Regional Federal da 3ª Região
3ª Turma

APELAÇÃO / REMESSA NECESSÁRIA (1728) Nº 5001595-61.2022.4.03.6109

RELATOR: Gab. 07 - DES. FED. NERY JÚNIOR

APELANTE: UNIÃO FEDERAL

APELADO: JUNIE LOUIS JOSEPH

Advogado do(a) APELADO: JOAO HENRIQUE TEIXEIRA MONDIM - PR77850-A

OUTROS PARTICIPANTES:

 

 


 

  

 PODER JUDICIÁRIO
Tribunal Regional Federal da 3ª Região
3ª Turma
 

APELAÇÃO / REMESSA NECESSÁRIA (1728) Nº 5001595-61.2022.4.03.6109

RELATOR: Gab. 07 - DES. FED. NERY JÚNIOR

APELANTE: UNIÃO FEDERAL

 

APELADO: JUNIE LOUIS JOSEPH

Advogado do(a) APELADO: JOAO HENRIQUE TEIXEIRA MONDIM - PR77850-A

OUTROS PARTICIPANTES:

 

 

 

  

 

R E L A T Ó R I O

Cuida-se de apelação e remessa oficial em ação ordinária proposta por JUNIE LOUIS JOSEPH (residente no Brasil, na cidade de Pereiras/SP) contra a UNIÃO, em que pleiteia liminarmente a antecipação dos efeitos da tutela para o fim de autorizar o ingresso no Brasil dos filhos do requerente (ROMARIO JOSEPH, Passaporte PP4817783 e STAMEYCAR JOSEPH, Passaporte GV5667994), sem que lhes seja exigida a apresentação de visto, julgando-se, ao final, procedente a demanda e confirmando-se os efeitos da medida antecipatória. Requereu os benefícios da Justiça Gratuita. Atribuído à causa o valor de R$ 1.000,00.

O juízo a quo, nos termos do art. 487, I do CPC, julgou parcialmente procedente o pedido para determinar à União que, no prazo de 5 (cinco) dias, adote as providências necessárias junto à Embaixada em Porto Príncipe para que seja priorizada a recepção e respectiva análise dos requerimentos de visto de reunião familiar dos menores ROMARIO JOSEPH e STAMEYCAR JOSEPH. Custas pela União, que é isenta. Condenou a União ao pagamento de honorários advocatícios que fixo em R$ 2.000,00 (dois mil reais), nos termos do artigo 85, § 8º, do Código de Processo Civil. Sentença sujeita ao reexame necessário (ID 308072037).

Não resignada, apela a União pugnando pela reforma da sentença, julgando-se improcedente a pretensão autoral, com a inversão dos ônus sucumbenciais. Em suma, sustenta que o pedido de dispensa de visto não tem respaldo legal; que o procedimento realizado pela Embaixada brasileira no Haiti para processamento do pedido de vistos é regular; e que a procedência do pleito autoral resvalaria em violação ao princípio da isonomia em relação aos demais consulentes interessados no visto brasileiro (ID 308072040).

Com contrarrazões, subiram os autos a esta corte (ID 308072045).

É o relatório.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 


 PODER JUDICIÁRIO
Tribunal Regional Federal da 3ª Região
3ª Turma
 

APELAÇÃO / REMESSA NECESSÁRIA (1728) Nº 5001595-61.2022.4.03.6109

RELATOR: Gab. 07 - DES. FED. NERY JÚNIOR

APELANTE: UNIÃO FEDERAL

 

APELADO: JUNIE LOUIS JOSEPH

Advogado do(a) APELADO: JOAO HENRIQUE TEIXEIRA MONDIM - PR77850-A

OUTROS PARTICIPANTES:

 

 

 

 

 

V O T O

Na hipótese dos autos, pretende a União a reversão da sentença que concedeu parcial provimento jurisdicional para determinar à União que, no prazo de 5 (cinco) dias, adote as providências necessárias junto à Embaixada em Porto Príncipe para que seja priorizada a recepção e respectiva análise dos requerimentos de visto de reunião familiar dos menores ROMARIO JOSEPH e STAMEYCAR JOSEPH.

Ab initio, cumpre destacar a regra a que o Poder Judiciário se submete de não intervir no mérito dos atos administrativos, em respeito à separação dos poderes.

Não obstante, a margem de liberdade de atuação da Administração não é irrestrita, podendo o Judiciário adentrar a seara administrativa para aferir a legalidade do ato, controle este que abrange a observância dos princípios constitucionais e legais.

A esse respeito, o Superior Tribunal de Justiça foi instado a se pronunciar, no agravo interno em Suspensão Liminar de Sentença nº 3092-SC, acerca da concessão de liminares que permitiam o ingresso de haitianos no país sem a necessidade de visto.

Por ocasião do julgamento, a Corte Especial ressaltou os princípios adotados em favor da criança e do adolescente, a importância nuclear da família, a proteção aos direitos fundamentais e a cooperação entre os povos para o progresso da humanidade como fundamentos para a concessão de liminar permitindo o ingresso de haitianos no Brasil.

De outro lado, contudo, a Corte Superior ressaltou também a necessidade do exame criterioso pelo magistrado da situação concreta e de análise da comprovação do exaurimento da via administrativa. Assim sendo, os trâmites diplomáticos instituídos pelo Poder Executivo devem ser observados, cabendo ao Judiciário apenas intervir em casos excepcionais.

O caso trazido à apreciação impõe precisamente a interferência do Poder Judiciário em ato do executivo, em caráter excepcional, para dar efetividade a princípios que informam a ordem jurídica vigente.

Vejamos.

A República Federativa do Brasil é signatária da Convenção Relativa ao Estatuto dos Refugiados de 1951 e seu Protocolo de 1967, além de ratificar os principais instrumentos internacionais de direitos humanos.

A ratificação de tais normas e o status supralegal que ostentam frente à legislação doméstica evidenciam o compromisso do Estado brasileiro em erigir um amplo espectro jurídico de proteção e assistência ao refugiado, concebendo sua política migratória a partir dos princípios de direitos humanos, solidariedade e de cooperação internacional.

Neste contexto, há que se destacar também que o ordenamento pátrio reconhece a importância do direito de reunião familiar, sem distinção entre nacionais e estrangeiros, conforme a especial proteção conferida à família expressa no art. 226 da Constituição Federal.

Outrossim, a presença de menor no polo ativo da ação atrai também a aplicação da doutrina de proteção integral à infância, consagrada no art. 227 da Constituição Federal de 1988, e do princípio do melhor interesse da criança e do adolescente, conforme previsto na Convenção Internacional sobre os Direitos da Criança (incorporada pelo Decreto Legislativo 99.710/90), de sorte que não cabe desconsiderar as consequências deletérias da privação do convívio familiar para o desenvolvimento do menor.

Diante de tais premissas, portanto, é possível se cogitar da flexibilização de determinados procedimentos de controle e regularização migratórios, tendo em vista o fim de assegurar direitos fundamentais aos imigrantes, em especial, àqueles que se encontrem em situação de refúgio ou acolhida humanitária.

Nesse sentido, no plano dos instrumentos internacionais, os principais marcos relativos à proteção conferida à família estão apresentados na Declaração Universal dos Direitos Humanos (artigo 16); no Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos (artigo 23); na Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica), Convenção sobre Direitos da Criança e na Convenção relativa ao Estatuto dos Refugiados de 1951.

Confira-se:

Declaração Universal dos Direitos Humanos:

Artigo 16.

(...)

3. A família é o núcleo natural e fundamental da sociedade e tem direito à proteção da sociedade e do Estado.

Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos:

Artigo 23. A família é o elemento natural e fundamental da sociedade e tem direito à proteção desta e do Estado.

Convenção sobre os Direitos da Criança:

Artigo 9

1. Os Estados Partes garantirão que a criança não seja separada dos seus pais contra a sua vontade, exceto quando as autoridades competentes sujeitas a revisão judicial determinarem, em conformidade com a lei e os procedimentos aplicáveis, que tal separação é necessária ao interesse superior da criança. Tal determinação pode ser necessária em um caso específico, como por exemplo, um dos pais estar sujeito a medidas privativas de liberdade, devido a condenação por um delito.

2. Em qualquer procedimento enunciado no parágrafo 1 do presente artigo, todas as partes interessadas deverão ter a oportunidade de participar nele e de dar a conhecer as suas opiniões.

3. Os Estados Partes respeitarão o direito da criança de manter contato com ambos os pais, caso um ou ambos tenham sido separados da criança, salvo se for contrário ao interesse superior da criança.

(...)

Artigo 10 - Em conformidade com a obrigação dos Estados Partes, enunciada no artigo 9, parágrafo 1, os pedidos feitos por um filho ou por seus pais para entrar ou sair de um Estado Parte, com o objetivo de reunir-se à sua família, serão tratados pelos Estados Partes de forma positiva, humanitária e expedita. Os Estados Partes assegurarão ainda que a apresentação de tal pedido não implicará em conseqüências prejudiciais para os pedintes e para os membros de sua família.

Convenção Relativa ao Estatuto dos Refugiados de 1951 e seu Protocolo de 1967:

Art. 12 - Estatuto pessoal

1. O estatuto pessoal de um refugiado será regido pela lei do país de seu domicílio, ou, na falta de domicílio, pela lei do país de sua residência.

2. Os direitos adquiridos anteriormente pelo refugiado e decorrentes do estatuto pessoal, e notadamente os que resultam do casamento, serão respeitados por um Estado Contratante, ressalvado, sendo o caso, o cumprimento das formalidades previstas pela legislação do referido Estado, entendendo-se, todavia, que o direito em causa deve ser dos que seriam reconhecidos pela legislação do referido Estado se o interessado não se houvesse tornado refugiado.

Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica):

Artigo 17. A família é o núcleo natural e fundamental da sociedade e deve ser protegida pela sociedade e pelo Estado.

Na legislação pátria, o direito de reunião familiar tem seu conteúdo previsto na Constituição Federal, quando esta garante a proteção familiar, sem distinção entre nacionais e estrangeiros (arts. 226 e 227 da Constituição), na Lei de Migração (Lei n.º 13.445/2017); e na Resolução nº 108/2012 do CNIg.

Adiante, transcrição das normas previamente citadas:

Constituição Federal:

Art. 226. A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado.

(...)

§ 8º O Estado assegurará a assistência à família na pessoa de cada um dos que a integram, criando mecanismos para coibir a violência no âmbito de suas relações.

Art. 227. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.

Lei nº 13.445/2017 (Lei de Migração):

Art. 3º A política migratória brasileira rege-se pelos seguintes princípios e diretrizes:

(...)

VIII - garantia do direito à reunião familiar;

(...)

Art. 4º Ao migrante é garantida no território nacional, em condição de igualdade com os nacionais, a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, bem como são assegurados:

(...)

III - direito à reunião familiar do migrante com seu cônjuge ou companheiro e seus filhos, familiares e dependentes;

(...)

Da Reunião Familiar

Art. 37. O visto ou a autorização de residência para fins de reunião familiar será concedido ao imigrante:

(...)

III - ascendente, descendente até o segundo grau ou irmão de brasileiro ou de imigrante beneficiário de autorização de residência;

Resolução n.º 108/2012 do CNIg:

O Conselho Nacional de Imigração, instituído pela Lei nº 6.815, de 19 de agosto de 1980 e organizado pela Lei nº 10.683, de 28 de maio de 2003, no uso das atribuições que lhe confere o Decreto nº 840, de 22 de junho de 1993,

Resolve:

Art. 1º O Ministério das Relações Exteriores poderá conceder visto temporário ou permanente, a título de reunião familiar, aos dependentes de cidadão brasileiro ou de estrangeiro temporário ou permanente no Brasil.

Portanto, há robusto embasamento normativo garantindo o direito de reunião familiar pelo Estado brasileiro.

Demais disso, no caso concreto, resta caracterizada evidente situação emergencial a que os apelantes residentes no Haiti estão sujeitos, diante da grave crise humanitária e institucional que assola o país e dos inúmeros óbices relatados na exordial do feito e nas razões recursais à obtenção do visto perante a embaixada do Brasil lá instalada.

Outrossim, os documentos anexados aos autos comprovam com verossimilhança o estatuto pessoal da parte autora e seus filhos, comprovando de modo suficiente os vínculos familiares relatados.

Destarte, considerando a dificuldade de acesso ao sistema para obtenção do visto pela parte autora e tendo em vista igualmente a impossibilidade de intervenção indiscriminada do Poder Judiciário nos atos administrativos do Poder Executivo, mantenho a sentença no que diz respeito à determinação para que a União Federal, por meio dos órgãos competentes, receba e processe a documentação necessária à concessão do visto de reunião familiar. Considero, entretanto, exíguo o prazo de 5 dias para cumprimento da referida determinação, motivo pelo qual reformo parcialmente a sentença para estender o prazo para 60 (sessenta) dias, contados da intimação do presente acórdão, para implementação do quanto determinado.

Nesse sentido, é o entendimento desta Turma:

CONSTITUCIONAL. ADMINISTRATIVO. ESTRANGEIRO. HAITIANOS. INGRESSO EM TERRITÓRIO NACIONAL SEM A NECESSIDADE DE VISTO. REUNIÃO FAMILIAR. INTERESSE PROCESSUAL. EXISTÊNCIA. NULIDADE DA SENTENÇA DE ORIGEM. RECONHECIMENTO. CAUSA MADURA. ART. 1.013, §3º, I, DO CPC. APRECIAÇÃO DO MÉRITO. REQUERIMENTO ADMINISTRATIVO. NECESSIDADE. PRECEDENTE DO STJ. OBTENÇÃO DE AGENDAMENTO ELETRÔNICO PARA A CONCESSÃO DE VISTO. DIFICULDADES OPERACIONAIS. CONSTATAÇÃO. INTERVENÇÃO DO PODER JUDICIÁRIO. PRINCÍPIO DA TRIPARTIÇÃO. POSSIBILIDADE DE REQUERIMENTO, PELA PARTE AUTORA, JUNTO AOS ÓRGÃOS COMPETENTES. GARANTIA. HONORÁRIOS ADVOCATÍCIOS. RECURSO PARCIALMENTE PROVIDO. SENTENÇA ANULADA. PEDIDO INICIAL JULGADO PARCIALMENTE PROCEDENTE.

1 – Cuida-se, aqui, de demanda ajuizada tendo como objetivo a autorização de ingresso no território nacional de cidadão haitiano, independentemente da concessão de visto, com o objetivo de reunião familiar.

2 - O magistrado de origem, ao julgar extinto o feito, amparou-se na ausência de pedido administrativo prévio por parte do autor.

3 – Entende-se, entretanto, que as notórias dificuldades no agendamento de pedidos de visto, sobretudo por parte de cidadãos haitianos, noticiadas em tantos outros feitos dessa natureza, caracteriza resistência ao pedido e, corolário lógico, inequívoco interesse processual, a demandar intervenção do Poder Judiciário.

4 - De rigor a anulação da r. sentença de primeiro grau de jurisdição e, considerado o comparecimento da União Federal na lide, por meio da apresentação de contrarrazões, em que, de forma exaustiva, opôs-se ao pedido inicial, cabível a apreciação da controvérsia nesta oportunidade, eis que presente a causa madura, na exata compreensão do disposto no art. 1.013, §3º, I, do Código de Processo Civil.

5 - O visto é o documento que dá a seu titular expectativa de ingresso em território nacional, o qual pode ser concedido por embaixadas, consulados-gerais, consulados, vice-consulados e, quando habilitados pelo órgão competente do Poder Executivo, por escritórios comerciais e de representação do Brasil no exterior, na exata compreensão do disposto nos arts. 6º e 7º da Lei nº 13.445, de 24 de maio de 2017 (Lei de Migração), que institui os direitos e os deveres do migrante e do visitante, regula a sua entrada e estada no País e estabelece princípios e diretrizes para as políticas públicas para o emigrante.

6 - Tal diploma legal estabelece, ainda, que a política migratória brasileira se rege, dentre vários princípios e diretrizes, pela garantia do direito à reunião familiar (art. 3º, VIII) e, no ponto, assegura ao migrante em território nacional, em condição de igualdade com os nacionais, a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, bem como o “direito à reunião familiar do migrante com seu cônjuge ou companheiro e seus filhos, familiares e dependentes” (art. 4º, III).

7 - Conquanto a política migratória nacional seja baseada na acolhida humanitária e, bem por isso, assegurar o direito à reunião familiar, há que se cumprir procedimentos próprios constantes da legislação, no que diz com a regularização migratória, razão pela qual não se permite afastar, indiscriminadamente, a exigência a todos imposta a viabilizar a entrada e permanência do estrangeiro no país, que exigem o cumprimento de critérios específicos.

8 - A controvérsia sub examen envolve, por um lado, a delicada condição dos refugiados provenientes do Haiti – que aportam em território brasileiro com a expectativa de melhores condições de vida – e, de outro, a pretensão de trazer seus familiares próximos para junto de seu convívio, consideradas as inúmeras dificuldades enfrentadas por aquela nação, tanto nos aspectos políticos e econômicos, como na ocorrência de catástrofes naturais, como, por exemplo, terremotos que assolam diversas áreas daquela localidade.

9 - A situação não passou despercebida pelo governo brasileiro, tanto que, tendo em vista a significativa demanda de vistos por nacionais haitianos, que, até então, era da alçada de servidores afetos à Embaixada do Brasil em Porto Príncipe, cujo contingente, no entanto, era insuficiente a tal, fora celebrado acordo com a Organização Internacional para as Migrações, viabilizando a implantação de um centro de processamento de vistos, denominado “Brazil Visa Application Center – BVAC”, a dar a última palavra acerca da concessão ou negativa do visto.

10 – Existência de inúmeros relatos dando conta da impossibilidade de agendamento, por mensagens recorrentes no sítio eletrônico, acerca da inexistência de vagas. Consulta junto ao endereço eletrônico http://haiti.iom.int/bvac, de fato, resultou infrutífera, com o resultado (“Sorry. All appointments are currently booked. New slots will be available soon”).

11 - A indisponibilidade transitória de vagas para a realização do agendamento, de per se, não legitima a intervenção do Poder Judiciário para a concessão, propriamente dita, do visto, ou mesmo autorização para sua dispensa, sob pena de inequívoca usurpação da competência do Poder Executivo, a quem é atribuída, com exclusividade, a análise – de cunho discricionário - do pedido e o cumprimento dos requisitos documentais mínimos a tanto exigidos e, corolário lógico, quebra no sistema de tripartição. Precedente.

12 - Não se desconhece a notória judicialização do tema, com nefasto efeito multiplicador de demandas, a ensejar pronunciamento do Superior Tribunal de Justiça, no sentido da exigência de prévio acionamento das vias administrativas para a obtenção de visto de nacionais haitianos, com o objetivo de integrar-se ao convívio familiar (SLS nº 3092/SC, Corte Especial). Entendimento no sentido da primazia do Poder Executivo em analisar – e decidir – acerca da concessão dos vistos, devendo a intervenção judicial ser ultimada apenas em casos excepcionais.

13 – Edição da Portaria Interministerial MJSP/MRE nº 38, de 10 de abril de 2023, que disciplina a concessão de autorização de residência prévia e a respectiva concessão de visto temporário para fins de reunião familiar para nacionais haitianos e apátridas, com vínculos familiares no Brasil.

14 - Buscou-se, com tal regulamentação, criar condições para o processamento adequado e célere de vistos de reunião familiar (art. 2º), com prioridade na apreciação dos pedidos formulados por mulheres, crianças, idosos, pessoas com deficiência e seus grupos familiares (art. 1º, §3º). Ampliou-se, ainda, o rol daqueles autorizados a formular o requerimento de visto, criando-se a figura dos “chamantes”, a contento do disposto nos arts. 3º e 4º.

15 - Normatizou-se, também, o procedimento de solicitação da residência prévia – agora diretamente ao Ministério da Justiça – o qual, uma vez deferido o pedido, “enviará comunicação ao Ministério das Relações Exteriores, que poderá autorizar a Embaixada do Brasil em Porto Príncipe a conceder o visto temporário para fins de reunião familiar com base no deferimento da autorização de residência prévia” (art. 6º, §3º), seguido de solicitação, por parte do chamante, do visto temporário junto à Embaixada do Brasil em Porto Príncipe (§4º).

16 - Como se vê, o governo brasileiro, sensível à situação dos estrangeiros haitianos residentes no país - e que buscam trazer seus parentes próximos ao convívio familiar -, editou normativos que, conforme adrede mencionado, objetivam conferir mais agilidade à regularização migratória de entes familiares de nacionais haitianos.

17 - Mesmo com tais e inegáveis esforços, verifica-se a recorrência da situação de indisponibilidade para o agendamento dos pedidos de visto, ainda que sob o fundamento da significativa pletora de demandas, a impedir, por consequência lógica, o acesso dos cidadãos haitianos interessados.

18 – Nesse particular, impende registrar que o canal eletrônico criado pela chancelaria brasileira (https://ec-portoprincipe.itamaraty.gov.br) não disponibiliza, de imediato, datas para agendamento. Não bastasse, ilustrações retiradas de “prints” do endereço eletrônico mencionado, constantes de outros feitos desse jaez, revelam que, dentre as espécies de visto passíveis de requerimento através do “e-consular”, não está incluída aquela referente ao “Visto temporário para reunião familiar – espécie XI”, a demonstrar, também aqui, a significativa dificuldade de solicitação da permissão de ingresso e permanência em território nacional, pelos meios oficiais então disponibilizados.

19 - Assim, como forma de equalizar a orientação emanada pelo Superior Tribunal de Justiça, sopesando a necessidade do exaurimento da via administrativa, com a intervenção judicial apenas em casos pontuais, entende-se que a solução mais adequada passa pela determinação à União, por meio dos órgãos competentes, que receba e processe – seja por meio físico ou eletrônico - a documentação necessária à concessão do visto humanitário com base na reunião familiar, fixando, para tanto, o prazo de sessenta (60) dias a contar do recebimento da intimação para cumprimento da obrigação de fazer. Precedente desta Corte.

20 - Sucumbente a parte autora no pedido de autorização de ingresso no país, sem visto, mas exitosa na determinação de apreciação do pedido pelo Poder Executivo, de rigor a condenação de ambas as partes no pagamento de honorários advocatícios à parte adversa (art. 86/CPC), no importe de 10% (dez por cento) sobre o valor da causa, suspensa a exigibilidade da cobrança em relação à parte autora, ante a concessão dos benefícios da gratuidade de justiça.

21 – Recurso da parte autora parcialmente provido. Sentença anulada. Pedido inicial julgado parcialmente procedente.

(TRF 3ª Região, 3ª Turma, ApCiv - APELAÇÃO CÍVEL - 5000735-53.2023.4.03.6003, Rel. Desembargador Federal CARLOS EDUARDO DELGADO, julgado em 26/08/2024, DJEN DATA: 28/08/2024)

Dada a sucumbência recíproca, condeno ambas as partes ao pagamento das custas processuais e de honorários advocatícios, os quais fixo no mínimo legal de 10% sobre o valor da causa, considerada a ausência de proveito econômico, nos termos dos § 3º e 4º do art. 85 do Código de Processo Civil. Em face da concessão dos benefícios da Justiça Gratuita, suspensa a exigibilidade da cobrança no que se refere à parte autora.

Ante o exposto, dou parcial provimento à apelação e à remessa oficial para determinar que a União Federal, por meio dos órgãos competentes, receba e processe a documentação necessária à concessão do visto de reunião familiar, porém, no prazo de 60 (sessenta) dias, contados da intimação do presente acórdão.

É como voto.

 

 


A EXCELENTÍSSIMA SENHORA DOUTORA DESEMBARGADORA CONSUELO YOSHIDA:

Peço vênia para divergir.

A apelação e a remessa oficial devem ser providas.

O debate concentra-se na possibilidade de ingresso de cidadão haitiano em território nacional, independente da apresentação de visto.

Uma breve análise da situação vivenciada no Haiti aponta que o país já enfrentava diversas crises internas devido à instabilidade política e econômica, porém o quadro foi agravado após grandes terremotos. A falta de alimentos, saúde e saneamento básico e a crise socioeconômica foram intensificadas pela situação de calamidade pública que assolou a região.

Neste contexto, um fluxo considerável de Haitianos buscou como saída a tentativa de iniciar uma nova vida em outro País, tendo como um dos destinos principais o Brasil.

Diante do alto volume de interessados em ingressar em território brasileiro, foi permitida a concessão de visto humanitário aos haitinaos, em caráter especial, concedido pelo Ministério das Relações Exteriores, por intermédio da Embaixada do Brasil em Porto Príncipe, nos moldes das Resoluções Normativas do Conselho Nacional de Imigração  97/ 2012 e 102/2013, sem prejuízo das demais modalidades de ingresso previstas na legislação brasileira.

Soma-se o fato de que a política migratória brasileira é regida, dentre outros, pelos princípios da dignidade da pessoa humana, da acolhida humanitária e da garantia do direito à reunião familiar, nos termos dos arts. 3º, VI e VIII e 4º, III, da Lei 13.445/17 (Lei de Migração).

Neste sentido, o art. 37 da Lei de Migração, em concretização aos direitos e garantias do migrante, prevê a concessão de visto e autoriza a residência no Brasil com a finalidade de reunião familiar, aos descendentes até o segundo grau, cônjuge ou companheiro, dentre outros, in verbis:

 

Art. 37. O visto ou a autorização de residência para fins de reunião familiar será concedido ao imigrante:

I - cônjuge ou companheiro, sem discriminação alguma;

II - filho de imigrante beneficiário de autorização de residência, ou que tenha filho brasileiro ou imigrante beneficiário de autorização de residência;

III - ascendente, descendente até o segundo grau ou irmão de brasileiro ou de imigrante beneficiário de autorização de residência; ou

IV - que tenha brasileiro sob sua tutela ou guarda.

 

Mesmo com estes instrumentos legais à disposição, a grave crise securitária e institucional no Haiti não foi superada e vem impedindo, por razões de força maior, a regular realização de serviços diplomáticos, incluindo a concessão dos vistos de acolhida humanitária e de reunião familiar aos cidadãos haitianos.

Assim, algumas situações evidenciam a necessidade de mitigação do rito diplomático, mediante a permissão de ingresso de estrangeiro em território nacional sem a concessão de visto. Trata-se da necessidade de priorizar os princípios migratórios reconhecidos internacionalmente e constitucionalmente pela República Federativa do Brasil, em especial, à dignidade da pessoa humana (art. 1º, III, CF) e o princípio da solidariedade (art. 3º, I, da CF).

Porém, referida mitigação não pode ser feita de maneira indiscriminada. No julgamento da Suspensão de Liminar e de Sentença 3.092/SC, o STJ determinou que a análise deve ser feita de forma concreta e individualizada, exigindo-se que, com prudência, com cautela e diante da inequívoca demonstração de que foram exauridas as possibilidades administrativas e as medidas instrutórias de informação viáveis, inclusive perícia social, deliberem sobre a concessão ou não do provimento liminar almejado (grifo nosso).

Em atendimento ao disposto pelo STJ, a análise do caso concreto revela que a parte agravante traz argumentos genéricos, reforçando, por meio de notícias jornalísticas, as já conhecidas dificuldades sociais, econômicas e humanitárias enfrentadas pela população do Haiti. Porém, não há nos autos qualquer comprovação individualizada da realidade fática da parte autora. Também, não foram atendidas as medidas instrutórias de informação exigidas pelo STJ (como, por exemplo, a perícia social). Logo, nos autos inexiste prova de que a parte esgotou as possibilidades administrativas.

Além disso, por meio da criação de vias mais ágeis e simplificadas para concessão administrativa dos vistos, é notório o esforço da Administração em solucionar as dificuldades geradas pela alta demanda de requerimentos realizados pelos haitianos. Como exemplo, a edição da Portaria Interministerial MJSP/MRE 38/2023, que facilitou a tramitação dos pedidos de reunião familiar, possibilitando a concessão de autorização de residência prévia e a respectiva concessão de visto temporário aos nacionais haitianos com vínculos familiares no Brasil, sem necessidade de pagamento de taxas e com a redução dos encaminhamentos à embaixada de Porto Príncipe.

No caso vertente, não há situação pormenorizada e individualizada que permita a concessão irrestrita de entrada de imigrantes em território brasileiro sem a apresentação de visto, devendo ser provido o presente recurso. 

Invertido o ônus sucumbencial, observados os benefícios das concessão da justiça gratuita. 

Em face do exposto, dou provimento à apelação da União e à remessa oficial.

É como voto.


E M E N T A

DIREITO ADMINISTRATIVO E CONSTITUCIONAL. AÇÃO ORDINÁRIA. INGRESSO DE ESTRANGEIRO EM TERRITÓRIO NACIONAL. AUSÊNCIA DE VISTO. HAITI. ACOLHIDA HUMANITÁRIA. REUNIÃO FAMILIAR. CONCESSÃO OU DISPENSA DE VISTO. COMPETÊNCIA DO PODER EXECUTIVO. DETERMINAÇÃO PARA RECEBIMENTO E PROCESSAMENTO DO PEDIDO. POSSIBILIDADE. APELAÇÃO E REMESSA OFICIAL PARCIALMENTE PROVIDAS.

I. CASO EM EXAME

1. Apelação interposta e remessa oficial em face de sentença que julgou parcialmente procedente o pedido para determinar à União que, no prazo de 5 (cinco) dias, adote as providências necessárias junto à Embaixada em Porto Príncipe para que seja priorizada a recepção e respectiva análise dos requerimentos de visto de reunião familiar dos menores ROMARIO JOSEPH e STAMEYCAR JOSEPH.

II. QUESTÃO EM DISCUSSÃO

2. Discute-se a possibilidade de autorização do ingresso no país dos filhos do requerente, sem a necessidade de apresentação do visto de entrada, atendendo-se ao princípio da unidade da família no direito internacional.

III. RAZÕES DE DECIDIR

3. O Superior Tribunal de Justiça foi instado a se pronunciar, no agravo interno em Suspensão Liminar de Sentença nº 3092-SC, acerca da concessão de liminares que permitiam o ingresso de haitianos no país sem a necessidade de visto. Por ocasião do julgamento, a Corte Especial ressaltou os princípios adotados em favor da criança e do adolescente, a importância nuclear da família, a proteção aos direitos fundamentais e a cooperação entre os povos para o progresso da humanidade como fundamentos para a concessão de liminar permitindo o ingresso de haitianos no Brasil. De outro lado, contudo, a Corte Superior ressaltou também a necessidade do exame criterioso pelo magistrado da situação concreta e de análise da comprovação do exaurimento da via administrativa. Assim sendo, os trâmites diplomáticos instituídos pelo Poder Executivo devem ser observados, cabendo ao Judiciário apenas intervir em casos excepcionais. O caso trazido à apreciação impõe precisamente a interferência do Poder Judiciário em ato do executivo, em caráter excepcional, para dar efetividade a princípios que informam a ordem jurídica vigente.

4. A República Federativa do Brasil é signatária da Convenção Relativa ao Estatuto dos Refugiados de 1951 e seu Protocolo de 1967, além de ratificar os principais instrumentos internacionais de direitos humanos. A ratificação de tais normas e o status supralegal que ostentam frente à legislação doméstica evidenciam o compromisso do Estado brasileiro em erigir um amplo espectro jurídico de proteção e assistência ao refugiado, concebendo sua política migratória a partir dos princípios de direitos humanos, solidariedade e de cooperação internacional.

5. Outrossim, a presença de menor no polo ativo da ação atrai também a aplicação da doutrina de proteção integral à infância, consagrada no art. 227 da Constituição Federal de 1988, e do princípio do melhor interesse da criança e do adolescente, conforme previsto na Convenção Internacional sobre os Direitos da Criança (incorporada pelo Decreto Legislativo 99.710/90), de sorte que não cabe desconsiderar as consequências deletérias da privação do convívio familiar para o desenvolvimento do menor.

6. Diante de tais premissas, portanto, é possível se cogitar da flexibilização de determinados procedimentos de controle e regularização migratórios, tendo em vista o fim de assegurar direitos fundamentais aos imigrantes, em especial, àqueles que se encontrem em situação de refúgio ou acolhida humanitária. Nesse sentido, no plano dos instrumentos internacionais, os principais marcos relativos à proteção conferida à família estão apresentados na Declaração Universal dos Direitos Humanos (artigo 16); no Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos (artigo 23); na Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica), Convenção sobre Direitos da Criança e na Convenção relativa ao Estatuto dos Refugiados de 1951.

7. No caso concreto, resta caracterizada evidente situação emergencial a que os apelantes residentes no Haiti estão sujeitos, diante da grave crise humanitária e institucional que assola o país e dos inúmeros óbices relatados na exordial do feito e nas razões recursais à obtenção do visto perante a embaixada do Brasil lá instalada. Outrossim, os documentos anexados aos autos comprovam com verossimilhança o estatuto pessoal dos recorrentes, comprovando de modo suficiente os vínculos familiares relatados.

8. Destarte, considerando a dificuldade de acesso ao sistema para obtenção do visto pela parte autora e tendo em vista igualmente a impossibilidade de intervenção indiscriminada do Poder Judiciário nos atos administrativos do Poder Executivo, mantenho a sentença no que diz respeito à determinação para que a União Federal, por meio dos órgãos competentes, receba e processe a documentação necessária à concessão do visto de reunião familiar. Considero, entretanto, exíguo o prazo de 5 dias para cumprimento da referida determinação, motivo pelo qual reformo parcialmente a sentença para estender o prazo para 60 (sessenta) dias, contados da intimação do presente acórdão, para implementação do quanto determinado.

IV. DISPOSITIVO E TESE

9. Apelação e remessa oficial parcialmente providas para determinar que a União Federal, por meio dos órgãos competentes, receba e processe a documentação necessária à concessão do visto de reunião familiar, porém, no prazo de 60 (sessenta) dias, contados da intimação do presente acórdão.

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Dispositivos relevantes citados: Constituição Federal/88, arts. 226 e 227; Declaração Universal dos Direitos Humanos, art. 16; Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos, art. 23; Convenção Americana sobre Direitos Humanos, art. 17; Convenção sobre Direitos da Criança, arts. 9º, 10 e 12; Lei nº 13.445/2017, arts. 3º, 4º e 37; Resolução nº 108/2012 do CNIg, art. 1º; CPC, art. 85, §§ 3º e 4º.

Jurisprudência relevante citada: STJ, Suspensão Liminar de Sentença nº 3092-SC, TRF 3ª Região, 3ª Turma, ApCiv - APELAÇÃO CÍVEL - 5000735-53.2023.4.03.6003, Rel. Desembargador Federal CARLOS EDUARDO DELGADO, julgado em 26/08/2024.

 

 

 

 


  ACÓRDÃO

Vistos e relatados estes autos em que são partes as acima indicadas, A Turma, nos termos do artigo 942/CPC, por maioria, deu parcial provimento à apelação e à remessa oficial, nos termos do voto do Relator, com quem votaram os Des. Fed. CARLOS DELGADO e RUBENS CALIXTO, vencida a Des. Fed. CONSUELO YOSHIDA e ADRIANA PILEGGI, que lhe davam provimento, nos termos do relatório e voto que ficam fazendo parte integrante do presente julgado.
NERY JÚNIOR
DESEMBARGADOR FEDERAL