APELAÇÃO CÍVEL (198) Nº 5000021-93.2023.4.03.6003
RELATOR: Gab. 33 - DES. FED. GILBERTO JORDAN
APELANTE: INSTITUTO NACIONAL DO SEGURO SOCIAL - INSS
APELADO: VANDERLEI JOSE DA SILVA
Advogado do(a) APELADO: MATEUS HENRICO DA SILVA LIMA - MS18117-A
OUTROS PARTICIPANTES:
FISCAL DA LEI: MINISTERIO PUBLICO FEDERAL - PR/SP
APELAÇÃO CÍVEL (198) Nº 5000021-93.2023.4.03.6003 RELATOR: Gab. 33 - DES. FED. GILBERTO JORDAN APELANTE: INSTITUTO NACIONAL DO SEGURO SOCIAL - INSS APELADO: VANDERLEI JOSE DA SILVA Advogado do(a) APELADO: MATEUS HENRICO DA SILVA LIMA - MS18117-A OUTROS PARTICIPANTES: R E L A T Ó R I O Trata-se de apelação em ação ajuizada em face do INSTITUTO NACIONAL DO SEGURO SOCIAL - INSS, objetivando a declaração de inexigibilidade de débito dos valores descontados em 30% sobre o benefício do Autor decorrentes de recebimento do benefício por período considerado indevido pela Autarquia, bem como obrigação de não incluir o nome da parte autora no Cadastro Informativo de Créditos Não Quitados – CADIN. A r. sentença (Id. 317529325) julgou parcialmente procedente o pedido, apenas para cessar os descontos de 30% sobre o benefício de um salário-mínimo do Autor e determinar a restituição de eventuais valores já descontados, mas improcedente o pedido de não inclusão do nome do Autor no CADIN. Dada a sucumbência recíproca, ambas as partes foram condenadas em consectários. Apelação apenas do INSS. Em suas razões recursais (Id. 317529330), a Autarquia requer a reforma da sentença, para que sejam julgados improcedentes todos os pedidos da inicial. Contrarrazões (Id. 317529383). Subiram a esta instância. Parecer do Ministério Público Federal (Id. 319309097) no sentido de desprovimento da apelação. É o sucinto relato. pc
APELAÇÃO CÍVEL (198) Nº 5000021-93.2023.4.03.6003 RELATOR: Gab. 33 - DES. FED. GILBERTO JORDAN APELANTE: INSTITUTO NACIONAL DO SEGURO SOCIAL - INSS APELADO: VANDERLEI JOSE DA SILVA Advogado do(a) APELADO: MATEUS HENRICO DA SILVA LIMA - MS18117-A OUTROS PARTICIPANTES: V O T O Tempestivo o recurso e presentes os demais requisitos de admissibilidade, passo ao exame da matéria objeto de devolução. PODER DEVER DE AUTOTUTELA DA ADMINISTRAÇÃO É assegurada à Administração Pública a possibilidade de revisão dos atos por ela praticados, com base no seu poder de autotutela, conforme se observa, respectivamente, das Súmulas n.º 346 e 473 do Supremo Tribunal Federal: "A administração pública pode declarar a nulidade de seus próprios atos". "A administração pode anular seus próprios atos, quando eivados de vícios que os tornam ilegais, porque deles não se originam direitos; ou revogá-los, por motivo de conveniência ou oportunidade, respeitados os direitos adquiridos, e ressalvada, em todos os casos, a apreciação judicial". Também é pacífico o entendimento de que a mera suspeita de irregularidade, sem o regular procedimento administrativo, não implica suspensão ou cancelamento unilateral do benefício, por ser um ato perfeito e acabado. Aliás, é o que preceitua o artigo 5º, LV, da Constituição Federal, ao consagrar como direito e garantia fundamental, o princípio do contraditório e da ampla defesa, in verbis: "Aos litigantes em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes". Ainda, o art. 115, II, da lei 8213/91 impõe à autarquia a cobrança dos valores pagos indevidamente, identificados em regular processo administrativo, sem comprovação na CTPS e no CNIS. DO ATO ILÍCITO Todo aquele que cometer ato ilícito, fica obrigado a reparar o dano proveniente de sua conduta ou omissão. Confira-se o disposto no art. 186, do Código Civil: “Art. 186. Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito.” Ainda sobre o tema objeto da ação, dispõem os artigos 876, 884 e 927 do Código Civil de 2002: “Art. 876. Todo aquele que recebeu o que lhe não era devido fica obrigado a restituir; obrigação que incumbe àquele que recebe dívida condicional antes de cumprida a condição.” “Art. 884. Aquele que, sem justa causa, se enriquecer à custa de outrem, será obrigado a restituir o indevidamente auferido, feita a atualização dos valores monetários.” “Art. 927. Aquele que, por ato ilícito (arts. 186 e 187). causar dano a outrem. fica obrigado a repará-lo.” No que concerne à Previdência Social, é prevista no artigo 115 da Lei n. 8.213/91 a autorização do INSS para descontar de benefícios os valores outrora pagos indevidamente: "Art. 115. Podem ser descontados dos benefícios: [...] II – pagamento de benefício além do devido; [...] § 1º Na hipótese do inciso II, o desconto será feito em parcelas, conforme dispuser o regulamento, salvo má-fé”. Também, no Decreto n. 3.048/99: “Art. 154. O Instituto Nacional do Seguro Social pode descontar da renda mensal do benefício: [...] II – pagamentos de benefícios além do devido, observado o disposto nos §§ 2º ao 5º; [...] § 2º A restituição de importância recebida indevidamente por beneficiário da previdência so-cial, nos casos comprovados de dolo, fraude ou má-fé, deverá ser atualizada nos moldes do art. 175, e feita de uma só vez ou mediante acordo de parcelamento na forma do art. 244, independentemente de outras penalidades legais. (Redação dada pelo Decreto n. 5.699/06).” DEVOLUÇÃO OU NÃO DE VALORES RECEBIDOS DE BOA-FÉ O e. Superior Tribunal de Justiça, ao analisar o Tema 979 (REsp 1.381.734/RN), cuja questão levada a julgamento foi a “Devolução ou não de valores recebidos de boa-fé, a título de benefício previdenciário, por força de interpretação errônea, má aplicação da lei ou erro da Administração da Previdência Social”, fixou a seguinte tese: "Com relação aos pagamentos indevidos aos segurados, decorrentes de erro administrativo (material ou operacional) não embasado em interpretação errônea ou equivocada da lei pela administração, são repetíveis, sendo legítimo o desconto no percentual de até 30% do valor do benefício pago ao segurado/beneficiário, ressalvada a hipótese em que o segurado, diante do caso concreto, comprove sua boa-fé objetiva, sobretudo com demonstração de que não lhe era possível constatar o pagamento indevido." Extrai-se da tese fixada, portanto, que, para a eventual determinação de devolução de valores recebidos indevidamente, decorrente de erro administrativo diverso de interpretação errônea ou equivocada da lei, faz-se necessária a análise da presença, ou não, de boa-fé objetiva em sua percepção. A respeito especificamente do conceito de boa-fé objetiva, conforme definido pela Exma. Ministra Nancy Andrighi no julgamento do Recurso Especial nº 803.481/GO, “esta se apresenta como uma exigência de lealdade, modelo objetivo de conduta, arquétipo social pelo qual impõe o poder-dever de que cada pessoa ajuste a própria conduta a esse arquétipo, agindo como agiria uma pessoa honesta, escorreita e leal” (REsp 803.481/GO, Terceira Turma, julgado em 28/06/2007). Por seu turno, leciona Carlos Roberto Gonçalves que “Guarda relação com o princípio de direito segundo o qual ninguém pode beneficiar-se da própria torpeza. Recomenda ao juiz que presuma a boa-fé, devendo a má-fé, ao contrário, ser provada por quem a alega. Deve este, ao julgar demanda na qual se discuta a relação contratual, dar por pressuposta a boa-fé objetiva, que impõe ao contratante um padrão de conduta, de agir com retidão, ou seja, com probidade, honestidade e lealdade, nos moldes do homem comum, atendidas as peculiaridades dos usos e costumes do lugar” (Direito Civil Brasileiro, volume 3: contratos e atos unilaterais, Saraiva, 2013, 10ª ed., p. 54/61). CASO DOS AUTOS A devolução recursal cinge-se apenas aos pedidos do INSS em ver declarada a exigibilidade do débito discutido nos autos, para possibilitar os descontos de 30% sobre o valor do benefício assistencial de prestação continuada atualmente recebido pela parte Autora, bem como para que seja afastada a condenação da Autarquia na obrigação de devolução dos valores já descontados até então. Não houve apelação por parte da Autora. Assim, em respeito aos princípios non reformatio in pejus e tantum devolutum quantum appellatum, a não inclusão do nome do Autor no CADIN não é objeto de devolução. In casu, tendo a ação sido distribuída após 23/04/2021, já vigorava o entendimento fixado no Tema 979, competindo à parte autora a comprovação de sua boa-fé. APLICAÇÃO DO TEMA 979 DO STJ Do exame da documentação acostada aos autos, não antevejo o elemento substancial para verificação de ânimo da parte autora em obter benefício previdenciário de forma fraudulenta. Com efeito, extrai-se dos documentos juntados ao feito que o INSS, nos autos do processo MOB de 12/03/2021, protocolo 32731848 (Id. 317529303), notificou a parte autora sobre a existência de irregularidade na manutenção de seu benefício assistencial de 2014 a 2020, uma vez que o Autor teria iniciado vínculo empregatício com a empregadora Lidiane Freitas de Oliveira Souza, iniciado em 01/10/2014 e encerrado em 21/02/2020, com remuneração de um salário-mínimo (Id. 317529306). O Autor, titular do benefício assistencial da pessoa com deficiência desde 13/03/1996, NB 87/100.264.175-3, foi comunicado sobre a irregularidade em 2021, após a cessação da relação empregatícia. Ao final do processo administrativo de apuração de irregularidade, foi considerado irregular o recebimento do benefício assistencial do interregno de 01/10/2014 até 21/02/2020, apurando-se um débito de R$ 79.100,63 (setenta e nove mil e cem reais e sessenta e três centavos). Em suma, alega o INSS que o Autor recebeu rendimentos que superariam o limite legal de renda permitida e indicou necessidade de devolução dos valores apurados, ao argumento de “(...) restar comprovada a materialidade da conduta de má-fé por parte do beneficiário (...)” (Id. 317529303, pág. 46). Contudo, observo que o pedido administrativo de concessão do benefício assistencial foi formulado pela parte autora em 13/03/1996, data longínqua, e que o único registro do E-Social, que é de responsabilidade da empregadora, consta devidamente no sistema Dataprev do INSS, viabilizando ação de suspensão por parte do INSS, não havendo qualquer conduta de tentar omitir a renda por parte do Autor que configure sua má-fé. Assim, descabe eventual alegação de omissão de informação pela parte autora, visto que as informações constam devidamente no sistema e foram inseridas mensalmente pela empregadora, de 2014 até 2020, demonstrando notória desídia do INSS em dar cumprimento à reavaliação da continuidade das condições que originaram a concessão do benefício assistencial a cada 2 (dois) anos, nos termos do art. 21 da Lei de Assistência e art. 42 do Decreto nº 6.214, fugindo à razoabilidade a tentativa de cobrar do Autor o pagamento de quantia que alcançou monta vultosa, em consequência do extenso lapso temporal em que auferiu o benefício assistencial concomitantemente ao contrato de trabalho, sem que a Autarquia cumprisse a revisão imposta por lei. A configuração da boa-fé é mantida quando ausentes omissões, práticas fraudulentas ou em desacordo com a realidade dos fatos intentada pelo titular do benefício com vistas a ludibriar a Administração Pública. Não há nos autos qualquer indício de fraude ou ato ilícito praticado com dolo pelo Autor para ocultar o rendimento auferido, tendo as informações de remuneração em seu nome constado devidamente registradas nos sistemas previdenciários, o que pressupõe a boa-fé objetiva da parte autora no caso concreto. Por fim, cabe ressaltar que o exercício de atividade remunerada por titular do benefício assistencial apenas suspende seu pagamento enquanto durar o vínculo empregatício, sendo, outrossim, mais uma norma cogente descumprida pelo INSS, a saber: “Art. 21-A. O benefício de prestação continuada será suspenso pelo órgão concedente quando a pessoa com deficiência exercer atividade remunerada, inclusive na condição de microempreendedor individual. (Incluído pela Lei nº 12.470, de 2011) §1º Extinta a relação trabalhista ou a atividade empreendedora de que trata o caput deste artigo e, quando for o caso, encerrado o prazo de pagamento do seguro-desemprego e não tendo o beneficiário adquirido direito a qualquer benefício previdenciário, poderá ser requerida a continuidade do pagamento do benefício suspenso, sem necessidade de realização de perícia médica ou reavaliação da deficiência e do grau de incapacidade para esse fim, respeitado o período de revisão previsto no caput do art. 21”. Nesse consoar, ante conteúdo probatório, ausente a comprovação de má-fé, restando mantida a presunção da boa-fé do Autor e, corolário lógico, tornando inexigível a devolução dos valores pagos no interregno a título de benefício assistencial no período de 01/10/2014 até 21/02/2020, apurado em R$ 79.100,63 (setenta e nove mil e cem reais e sessenta e três centavos) e permanecendo inalterada a condenação do INSS em proceder à devolução dos valores eventualmente descontados do Autor referente ao débito em comento. HONORÁRIOS ADVOCATÍCIOS Considerando o quanto decidido nesta instância, verifico que a parte autora obteve provimento judicial de maior parte dos pedidos. Logo, sucumbentes as partes, a reforma parcial da decisão recorrida quanto aos honorários sucumbenciais se impõe. Assim, em razão da sucumbência recursal, majoro os honorários do INSS para 12% sobre o valor do débito que estava sendo exigido pelo INSS a título de restituição das prestações do benefício assistencial de que o autor é titular, devidamente atualizado monetariamente. DISPOSITIVO Ante o exposto, nego provimento ao apelo do INSS, observados os honorários advocatícios, na forma acima fundamentada. É o voto.
Autos: | APELAÇÃO CÍVEL - 5000021-93.2023.4.03.6003 |
Requerente: | INSTITUTO NACIONAL DO SEGURO SOCIAL - INSS |
Requerido: | VANDERLEI JOSE DA SILVA |
EMENTA DIREITO PREVIDENCIÁRIO. APELAÇÃO CÍVEL. BENEFÍCIO ASSISTENCIAL. DEVOLUÇÃO DE VALORES PAGOS INDEVIDAMENTE. TEMA 979 DO STJ. AUSÊNCIA DE MÁ-FÉ. IMPOSSIBILIDADE. RECURSO DESPROVIDO.
I. Caso em exame
Trata-se de apelação cível interposta pelo INSS contra sentença que reconheceu a inexigibilidade de débito referente à devolução de valores recebidos a título de benefício assistencial de prestação continuada, determinando a devolução dos valores já descontados.
II. Questão em discussão
A questão em discussão consiste em saber se é devida a devolução de valores pagos a título de benefício assistencial quando inexistente comprovação de má-fé do beneficiário, à luz do Tema 979 do STJ, bem como se há direito à restituição dos valores já descontados.
III. Razões de decidir
A Administração Pública possui poder-dever de autotutela, podendo anular atos ilegais, conforme as Súmulas 346 e 473 do STF, desde que assegurados o contraditório e a ampla defesa.
A existência de vínculo empregatício informado nos sistemas oficiais implica em suspensão do benefício, conforme art. 21-A da Lei 8.742/93.
Compete ao INSS proceder a reavaliação da continuidade das condições que originaram a concessão do benefício assistencial a cada 2 (dois) anos, nos termos do art. 21 da Lei de Assistência e art. 42 do Decreto nº 6.214.
Nos termos do Tema 979 do STJ, para exigir a devolução de valores pagos indevidamente por erro administrativo, é necessária a comprovação da ausência de boa-fé objetiva.
Instrução probatória no sentido de inexistência de conduta de má-fé do Autor.
Ausente dolo ou omissão voluntária por parte do beneficiário, presume-se sua boa-fé, sendo indevida a restituição dos valores recebidos, especialmente diante da falha da autarquia em realizar as revisões periódicas legais, cabendo à autarquia cumprir com o dever legal de reavaliação bienal.
IV. Dispositivo e tese
Recurso desprovido.
Tese de julgamento: “1. A devolução de valores pagos indevidamente a título de benefício assistencial exige a comprovação da ausência de boa-fé objetiva do beneficiário. 2. Informações constantes dos sistemas oficiais e ausência de conduta dolosa ensejam a presunção de boa-fé, afastando a exigibilidade do débito. 3. A falha da autarquia em revisar o benefício, conforme determinação legal, impede a cobrança de valores pretensamente indevidos.”
Dispositivos relevantes citados: CF/1988, art. 5º, LV; CC, arts. 186, 876, 884, 927; Lei 8.213/91, art. 115; Decreto 3.048/99, art. 154; Lei 8.742/93, arts. 21, 21-A.
Jurisprudência relevante citada: STF, Súmulas nºs 346 e 473; STJ, REsp 1.381.734/RN (Tema 979); STJ, REsp 803.481/GO, Rel. Min. Nancy Andrighi.