Diário Eletrônico

PODER JUDICIÁRIO

TRIBUNAL REGIONAL FEDERAL DA 3ª REGIÃO
 PODER JUDICIÁRIO
Tribunal Regional Federal da 3ª Região
3ª Turma

APELAÇÃO CÍVEL (198) Nº 5007877-74.2024.4.03.6100

RELATOR: Gab. 10 - DES. FED. CONSUELO YOSHIDA

APELANTE: UNIÃO FEDERAL

APELADO: MORUMBY HOTEIS LTDA

Advogado do(a) APELADO: DENIS DONAIRE JUNIOR - SP147015-A

OUTROS PARTICIPANTES:

 

 


 

  

 PODER JUDICIÁRIO
Tribunal Regional Federal da 3ª Região
3ª Turma
 

APELAÇÃO CÍVEL (198) Nº 5007877-74.2024.4.03.6100

RELATOR: Gab. 10 - DES. FED. CONSUELO YOSHIDA

APELANTE: UNIÃO FEDERAL

 

APELADO: MORUMBY HOTEIS LTDA

Advogado do(a) APELADO: DENIS DONAIRE JUNIOR - SP147015-A

OUTROS PARTICIPANTES:

 

 

 

  

 

R E L A T Ó R I O

 

 

A EXCELENTÍSSIMA SENHORA DESEMBARGADORA FEDERAL CONSUELO YOSHIDA (RELATORA):

Trata-se de apelação em ação de rito ordinário, com pedido de tutela antecipada, ajuizada por Morumby Hotéis Ltda. contra a União Federal, objetivando (...) obrigar a Ré a: (i) não publicar o “Relatório de Transparência Salarial e de Critérios Remuneratórios” e não exigir da Autora a publicação do Relatório em seu site e redes sociais, bem como não notificar a Autora para elaboração do “Plano de Ação para Mitigar a Desigualdade Salarial e de Critérios Remuneratórios entre Mulheres e Homens”, sem que seja assegurado o prévio direito de defesa em processo administrativo regular, de modo que o Relatório somente seja publicado após o fim do processo administrativo; (ii) a retificar o Relatório ou acrescentar ressalva ou nota explicativa antes da sua publicação e dispensar a Autora da implementação do citado Plano de Ação, quando forem atendidos os critérios que autorizam a diferenciação salarial, previstos no art. 461, da CLT, em ambos os casos (ID 303227576).

Alega a parte autora que a publicação do relatório ocorre sem oportunidade de apresentação de defesa prévia; que não há garantia de processo administrativo regular antes da imposição do Plano de Ação para Mitigar a Desigualdade; violação ao sigilo de dados e à livre concorrência; que a equiparação pretendida viola a igualdade material e a equidade salarial constitucional, conforme previsão do art. 7º, XXX, da Constituição da República; haver desproporção entre as regras regulamentares impostas e a finalidade da Lei 14.611/2023 de mitigar a desigualdade salarial por razões exclusivamente de gênero.

Foi atribuído à causa o valor de R$ 10.000,00 (dez mil reais).

O pedido de tutela antecipada foi indeferido (ID 303227591), tendo a parte autora interposto agravo de instrumento, o qual não foi conhecido em razão da prolação da sentença nos autos principais.

O r. Juízo a quo julgou extinto o processo, sem resolução do mérito, com fundamento no art. 485, VI, do Código de Processo Civil, por falta de interesse processual no que se refere ao pedido de retificação do relatório e dispensa de implementação de plano de ação, julgando procedentes os demais pedidos, com fulcro no art. 487, I, do Código de Processo Civil, (...) para afastar a obrigatoriedade de enviar os dados pessoais e restritos ao Governo Federal, por meio do Portal Emprega Brasil, eis que o preenchimento parcial do formulário não é possível; bem como de reproduzir o relatório da transparência elaborado pelo Ministério do Trabalho e Emprego em seu site e/ou suas redes sociais. Determinou, (...) ainda, que a ré se abstenha de divulgar os dados da autora por meio do relatório da transparência. Tendo em vista que a parte autora decaiu de parte mínima de seus pedidos, foi a ré condenada ao pagamento de honorários advocatícios arbitrados em 10% (dez por cento) sobre o valor da causa, nos termos do art. 85, § 4º, III do Código de Processo Civil.

Apelou a União Federal, pleiteando a reforma do julgado, alegando, preliminarmente, que a competência para julgar o caso é da Justiça do Trabalho, conforme dispõe o art. 114, I da Constituição Federal. Quanto ao mérito, aduz que a igualdade salarial entre homens e mulheres é princípio respaldado por normas internacionais e pelos arts. 5º e 7º da Constituição Federal; que o Decreto 11.795/2023 e a Portaria MTE 3.714/2023 não extrapolam a Lei 14.611/2023, mas apenas detalham obrigações já previstas; que o tratamento de dados nos relatórios segue a Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD), pois utiliza informações anonimizadas para executar políticas públicas, não revelando dados sensíveis ou estratégias empresariais; que o plano de ação é uma medida preventiva, não punitiva, oferecendo às empresas a chance de corrigir desigualdades salariais de forma estruturada, com participação de sindicatos e empregados.

Com contrarrazões, os autos vieram conclusos.

É o relatório.

 

 

 

 

 

 

 

 


 PODER JUDICIÁRIO
Tribunal Regional Federal da 3ª Região
3ª Turma
 

APELAÇÃO CÍVEL (198) Nº 5007877-74.2024.4.03.6100

RELATOR: Gab. 10 - DES. FED. CONSUELO YOSHIDA

APELANTE: UNIÃO FEDERAL

 

APELADO: MORUMBY HOTEIS LTDA

Advogado do(a) APELADO: DENIS DONAIRE JUNIOR - SP147015-A

OUTROS PARTICIPANTES:

 

 

 

 

 

V O T O

 

 

 

 

A EXCELENTÍSSIMA SENHORA DESEMBARGADORA FEDERAL CONSUELO YOSHIDA (RELATORA):

Assiste razão em parte à apelante.

Preliminarmente, a teor do art. 114, VII, da Constituição da República, compete à Justiça do Trabalho processar e julgar (...) as ações relativas às penalidades administrativas impostas aos empregadores pelos órgãos de fiscalização das relações de trabalho.

No caso vertente, são impugnados encargos de caráter administrativo perante órgãos da Administração Pública Federal.

Assim, por não tratar a lei ora em destaque de relações de trabalho, falece à Justiça do Trabalho competência para julgar o feito subjacente.

Por outro lado, figurando no polo passivo da demanda subjacente a União Federal e o Ministério do Trabalho e Emprego, a competência será desta Justiça, fixada de acordo com o art. 109, I, da Constituição da República, cujo teor a seguir transcrevo, in verbis:

 

Art. 109. Aos juízes federais compete processar e julgar:

I - as causas em que a União, entidade autárquica ou empresa pública federal forem interessadas na condição de autoras, rés, assistentes ou oponentes, exceto as de falência, as de acidentes de trabalho e as sujeitas à Justiça Eleitoral e à Justiça do Trabalho;

 

Reconhecida a competência da Justiça Federal, passa-se à análise do mérito.

No que diz respeito ao reconhecimento da exorbitância do poder regulamentar pelos atos normativos em questão (Decreto 11.795/2023 e Portaria MTE 3.714/2023), revejo meu posicionamento até então externado, para adotar entendimento diverso.

A Constituição da República garantiu, em seu art. 7º, XX, a proteção do mercado de trabalho da mulher, mediante incentivos específicos, nos termos da lei.

Nesse contexto, há de ser destacada a inestimável contribuição conferida pela Lei 14.611/2023, no que concerne à promoção da igualdade salarial e de critérios remuneratórios equânimes entre mulheres e homens para a realização de trabalho de igual valor ou no exercício da mesma função, conferindo inegável eficácia ao texto constitucional.

No caso subjacente, pretende a parte autora, ora apelada, Morumby Hotéis Ltda., (...) obrigar a Ré a: (i) não publicar o “Relatório de Transparência Salarial e de Critérios Remuneratórios” e não exigir da Autora a publicação do Relatório em seu site e redes sociais, bem como não notificar a Autora para elaboração do “Plano de Ação para Mitigar a Desigualdade Salarial e de Critérios Remuneratórios entre Mulheres e Homens”, sem que seja assegurado o prévio direito de defesa em processo administrativo regular, de modo que o Relatório somente seja publicado após o fim do processo administrativo; (ii) a retificar o Relatório ou acrescentar ressalva ou nota explicativa antes da sua publicação e dispensar a Autora da implementação do citado Plano de Ação, quando forem atendidos os critérios que autorizam a diferenciação salarial, previstos no art. 461, da CLT, em ambos os casos.

A Lei 14.611/2023, que dispõe sobre a igualdade salarial e de critérios remuneratórios entre homens e mulheres, estabeleceu as seguintes obrigações:

 

Art. 5º Fica determinada a publicação semestral de relatórios de transparência salarial e de critérios remuneratórios pelas pessoas jurídicas de direito privado com 100 (cem) ou mais empregados, observada a proteção de dados pessoais de que trata a Lei nº 13.709, de 14 de agosto de 2018 (Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais).

§ 1º Os relatórios de transparência salarial e de critérios remuneratórios conterão dados anonimizados e informações que permitam a comparação objetiva entre salários, remunerações e a proporção de ocupação de cargos de direção, gerência e chefia preenchidos por mulheres e homens, acompanhados de informações que possam fornecer dados estatísticos sobre outras possíveis desigualdades decorrentes de raça, etnia, nacionalidade e idade, observada a legislação de proteção de dados pessoais e regulamento específico.

§ 2º Nas hipóteses em que for identificada desigualdade salarial ou de critérios remuneratórios, independentemente do descumprimento do disposto no art. 461 da Consolidação das Leis do Trabalho, aprovada pelo Decreto-Lei nº 5.452, de 1º de maio de 1943, a pessoa jurídica de direito privado apresentará e implementará plano de ação para mitigar a desigualdade, com metas e prazos, garantida a participação de representantes das entidades sindicais e de representantes dos empregados nos locais de trabalho.

§ 3º Na hipótese de descumprimento do disposto no caput deste artigo, será aplicada multa administrativa cujo valor corresponderá a até 3% (três por cento) da folha de salários do empregador, limitado a 100 (cem) salários mínimos, sem prejuízo das sanções aplicáveis aos casos de discriminação salarial e de critérios remuneratórios entre mulheres e homens.

§ 4º O Poder Executivo federal disponibilizará de forma unificada, em plataforma digital de acesso público, observada a proteção de dados pessoais de que trata a Lei nº 13.709, de 14 de agosto de 2018 (Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais), além das informações previstas no § 1º deste artigo, indicadores atualizados periodicamente sobre mercado de trabalho e renda desagregados por sexo, inclusive indicadores de violência contra a mulher, de vagas em creches públicas, de acesso à formação técnica e superior e de serviços de saúde, bem como demais dados públicos que impactem o acesso ao emprego e à renda pelas mulheres e que possam orientar a elaboração de políticas públicas.

 

A fim de regulamentar a referida norma, foi editado o Decreto 11.795/2023, sendo oportuna a transcrição dos seguintes dispositivos:

 

Art. 2º O Relatório de Transparência Salarial e de Critérios Remuneratórios de que trata o inciso I do caput do art. 1º tem por finalidade a comparação objetiva entre salários, remunerações e a proporção de ocupação de cargos e deve contemplar, no mínimo, as seguintes informações:

(...)

§ 3º O Relatório de que trata o caput deverá ser publicado nos sítios eletrônicos das próprias empresas, nas redes sociais ou em instrumentos similares, garantida a ampla divulgação para seus empregados, colaboradores e público em geral.

§ 4º A publicação dos Relatórios deverá ocorrer nos meses de março e setembro, conforme detalhado em ato do Ministério do Trabalho e Emprego.

(...)

Art. 3º Verificada a desigualdade salarial e de critérios remuneratórios entre mulheres e homens pelo Ministério do Trabalho e Emprego, as empresas com cem ou mais empregados deverão elaborar e implementar Plano de Ação para Mitigação da Desigualdade Salarial e de Critérios Remuneratórios entre Mulheres e Homens, que deverá estabelecer:

(...)

§ 1º Na elaboração e na implementação do Plano de Ação de que trata o caput, deverá ser garantida a participação de representantes das entidades sindicais e dos empregados, preferencialmente, na forma definida em norma coletiva de trabalho.

§ 2º Na ausência de previsão específica em norma coletiva de trabalho, a participação referida no § 1º se dará, preferencialmente, por meio da comissão de empregados estabelecida nos termos dos art. 510-A a art. 510-D da Consolidação das Leis do Trabalho, aprovada pelo Decreto-Lei nº 5.452, de 1º de maio de 1943.

§ 3º Na hipótese do § 2º, a empresa que tiver entre cem e duzentos empregados poderá promover procedimento eleitoral específico para instituir uma comissão que garanta a participação efetiva de representantes dos empregados.

(...)

Art. 4º Compete ao Ministério do Trabalho e Emprego:

I - disponibilizar ferramenta informatizada para:

b) a divulgação  dos Relatórios e de outros dados e informações sobre o acesso ao emprego e à renda pelas mulheres;

II - notificar, quando verificada desigualdade salarial e de critérios remuneratórios entre mulheres e homens, por meio da Auditoria-Fiscal do Trabalho, as empresas para que elaborem, no prazo de noventa dias, o Plano de Ação para Mitigação da Desigualdade Salarial e de Critérios Remuneratórios entre Mulheres e Homens;

 

Por fim, o Ministério do Trabalho e Emprego editou a Portaria MTE 3.714/2023, cujos arts. 4º a 7º dispõem:

 

Art. 4º A publicação do Relatório de Transparência Salarial e de Critérios Remuneratórios deverá ser feita pelos empregadores em seus sítios eletrônicos, em suas redes sociais ou em instrumentos similares, sempre em local visível, garantida a ampla divulgação para seus empregados, trabalhadores e público em geral.

Art. 5º O Ministério do Trabalho e Emprego coletará os dados inseridos no eSocial pelos empregadores, bem como as informações complementares por eles prestadas e publicará o Relatório de Transparência Salarial e de Critérios Remuneratórios, nos meses de março e setembro de cada ano, na plataforma do Programa de Disseminação das Estatísticas do Trabalho.

Parágrafo único. As informações complementares a que se refere o caput serão prestadas pelos empregadores, em ferramenta informatizada disponibilizada pelo Ministério do Trabalho e Emprego, nos meses de fevereiro e agosto de cada ano, relativas ao primeiro e ao segundo semestres, respectivamente.

Art. 6º A publicação do Relatório de Transparência Salarial e de Critérios Remuneratórios, pelo Ministério do Trabalho e Emprego, será obrigatória após a disponibilização da aba Igualdade Salarial e de Critérios Remuneratórios a ser implementada na área do empregador do Portal Emprega Brasil.

Art. 7º Após a publicação do Relatório de Transparência Salarial e de Critérios Remuneratórios, nos termos do Decreto nº 11.795, de 2023, verificada a desigualdade salarial e de critérios de remuneração, os empregadores serão notificados, pela Auditoria-Fiscal do Trabalho, para que elaborem, no prazo de noventa dias, o Plano de Ação para Mitigação da Desigualdade Salarial e de Critérios Remuneratórios entre Mulheres e Homens.

§ 1º A notificação a que se refere o caput será realizada a partir da implementação do Domicílio Eletrônico Trabalhista, nos termos do artigo 628-A da Consolidação das Leis do Trabalho- CLT, aprovada pelo Decreto-Lei nº 5.452, de 1º de maio de 1943, ressalvados os procedimentos administrativos de fiscalização previstos ou iniciados nos termos da Instrução Normativa MTP nº 2, de 8 de novembro de 2021.

§ 2º O prazo para apresentação do Plano de Ação para Mitigação da Desigualdade Salarial e de Critérios Remuneratórios correrá a partir da primeira notificação, nos termos do inciso II do art. 4º do Decreto nº 11.795, de 2023.

§ 3º O Plano de Ação para Mitigação da Desigualdade Salarial e de Critérios Remuneratórios entre Mulheres e Homens de que trata o caput poderá ser elaborado e armazenado em meio digital com certificado digital emitido no âmbito da Infraestrutura de Chaves Públicas Brasileira (ICP-Brasil).

§ 4º Uma cópia do Plano de Ação para Mitigação da Desigualdade Salarial e de Critérios Remuneratórios entre Mulheres e Homens deverá ser depositada na entidade sindical representativa da categoria profissional.

 

Percebe-se, assim, não haver qualquer ilegalidade ou exorbitância na regulamentação exercida pelo Poder Executivo, à luz da autorização contida no art. 84, caput, IV, da Constituição da República, que faculta a expedição de decretos e regulamentos destinados à fiel execução das leis.

Ademais, os atos normativos em questão são categóricos no sentido de que os dados utilizados para a elaboração do relatório de transparência salarial e de critérios remuneratórios por parte do MTE serão obtidos a partir de informações prestadas pelos próprios empregadores.

Não há que se falar em violação ao disposto na Lei 13.709/2018 (Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais), uma vez que o próprio diploma legal autoriza o tratamento de dados pessoais pela Administração Pública, desde que (...) necessários à execução de políticas públicas previstas em leis e regulamentos ou respaldadas em contratos, convênios ou instrumentos congêneres (art. 7º, III).

O Supremo Tribunal Federal, ao julgar o Tema 483 de Repercussão Geral, que trata da divulgação, em sítio eletrônico oficial, de informações alusivas a servidores públicos, inclusive seus nomes e correspondentes remunerações, reconheceu ser legítima a publicação dos nomes dos seus servidores e do valor dos correspondentes vencimentos e vantagens pecuniárias, considerando-se os princípios da publicidade e da transparência, bem como os direitos fundamentais à intimidade e à vida privada.

A divulgação de dados salariais, quando feita em nome do interesse público e observando os limites legais, não afronta os princípios da privacidade e da intimidade, nem as regras da Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais.

Também não prospera o argumento de que a divulgação do Relatório de Transparência Salarial violaria os princípios da livre iniciativa e livre concorrência, previstos no art. 1º, IV e art. 170, IV, da Constituição da República.

Com efeito, embora a Magna Carta assegure tais princípios como fundamentos da ordem econômica, é necessário compreender que eles não têm caráter absoluto, devendo ser harmonizados com outros valores constitucionais igualmente relevantes, tais como a igualdade de gênero e a proteção do mercado de trabalho da mulher.

O estabelecimento de mecanismos de transparência salarial concretiza o mandamento constitucional previsto no art. 7º, XX, que garante a proteção do mercado de trabalho da mulher, mediante incentivos específicos, nos termos da lei, não representando intervenção indevida na atividade empresarial, mas sim a implementação de uma política pública com amparo constitucional.

Sem razão igualmente a apelante quanto ao argumento de que a exposição de informações estratégicas a concorrentes configuraria violação ao art. 195, XI da Lei 9.279/1996 (Lei da Propriedade Industrial).

O Relatório de Transparência Salarial, conforme estabelecido pela Lei 14.611/2023, contém apenas (...) dados anonimizados e informações que permitam a comparação objetiva entre salários, remunerações e a proporção de ocupação de cargos (...), não expondo informações ou dados confidenciais, utilizáveis na indústria, comércio ou prestação de serviços que caracterizariam concorrência desleal.

Também não se sustenta a alegação de que o Relatório de Transparência Salarial seria baseado em dados desatualizados de 2022, dado o caráter contínuo e periódico da obrigação de publicação dos relatórios, que conforme estabelecido pelo art. 2º, § 4º do Decreto 11.795/2023, deve ocorrer semestralmente, nos meses de março e setembro de cada ano, o que garante justamente a atualização constante das informações apresentadas pelos próprios empregadores.

Ademais, o objetivo precípuo do relatório é exatamente servir como instrumento diagnóstico inicial, identificando tendências e padrões gerais de desigualdade salarial estrutural.

Desse modo, quando verificada desigualdade salarial, a própria Lei 14.611/2023 prevê a elaboração de um Plano de Ação para Mitigação da Desigualdade, momento no qual a empresa poderá apresentar justificativas técnicas para eventuais diferenças salariais baseadas em critérios objetivos como tempo de empresa, senioridade ou desempenho, demonstrando fatores legítimos que justifiquem eventuais diferenças remuneratórias.

Corroborando o até aqui expendido, os seguintes precedentes desta c. Corte:

 

APELAÇÃO CÍVEL – AÇÃO DE CONHECIMENTO - PUBLICAÇÃO DE RELATÓRIO DE TRANSPARÊNCIA SALARIAL – COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA FEDERAL - PODER REGULAMENTAR – LEGALIDADE E CONSTITUCIONALIDADE - RECURSO NÃO PROVIDO.

1 – Preliminarmente, deve ser reconhecida a competência federal para julgamento da matéria haja vista que a presente demanda não tem relação direta com emprego ou trabalho, mas com encargos de natureza administrativa perante órgãos da Administração Pública Federal.

2 - Previsão legal garantindo a publicação de relatório de transparência, observada a anonimidade dos dados, conforme protocolo de fiscalização contra discriminação salarial e de critérios remuneratórios entre homens e mulheres estabelecido em Ato do Poder Executivo, respeitando-se, a um só tempo, os ditames da LGPD, bem como o postulado da igualdade material em matéria de percepção de contraprestação salarial entre homens e mulheres, razão pela qual não se vislumbra, neste juízo de cognição sumária, afronta aos direitos fundamentais à privacidade e à intimidade dos empregados vinculados às empresas representadas pela agravante.

3 - Os atos administrativos atacados não proibiram as pessoas jurídicas de procederem a eventual diferenciação salarial porventura existente entre os seus empregados e colaboradores nos veículos apropriados (mídia, redes sociais e congêneres), significando que a sua realização consiste em faculdade colocada à disposição da empresa, caso seja do seu interesse.

4 - Não se vislumbra afronta aos princípios da liberdade econômica e livre iniciativa (artigo 170 da CF), visto que tais princípios devem ser interpretados à luz dos fundamentos e objetivos da ordem econômica, sobretudo no que diz respeito à valorização do trabalho humano e da garantia a todos de existência digna, conforme os ditames da justiça social.

5 - Os atos infralegais apenas estabeleceram a moldura necessária para o cumprimento das prescrições legais, afastando-se a alegação de excesso de poder, abuso de poder ou desvio de finalidade na sua elaboração e aplicação.

6 – Apelação provida.

(TRF3, 6ª Turma, ApCiv 5009237-44.2024.4.03.6100, Rel. Des. Fed. MAIRAN MAIA, j. 10/03/2025, DJEN 18/03/2025)

 

AGRAVO DE INSTRUMENTO. ADMINISTRATIVO. DECRETO N. 11.795/2023 E NA PORTARIA MTE N. 3.714/2023. AUSÊNCIA DE ILEGALIDADE. REGULAMENTAÇÃO DA LEI N. 14.611/2023. RECURSO DESPROVIDO.

1 - A controvérsia gira em torno, fundamentalmente, das alegadas ilegalidade e inconstitucionalidade das exigências constantes no Decreto n. 11.795/2023 e na Portaria MTE n. 3.714/2023, que versam sobre questões de igualdade salarial e de critérios remuneratórios entre mulheres e homens, com impactos em possíveis e eventuais autuações e multas em inspeções por Auditores-Fiscais do Trabalho.

2 - Com efeito, trata-se de determinação legislativa o dever de publicação semestral dos relatórios de transparência salarial e de critérios remuneratórios, consoante previsão expressa do art. 5º da Lei n. 14.611/2023. Nesse sentido, o Decreto n. 11.795/2023 sobreveio com intuito de regulamentar o texto legislativo. Por sua vez, sobreveio a Portaria MTE n. 3.714/2023.

3 - Destarte, não há que se falar em ilegalidade no Decreto n. 11.795/2023 e na Portaria MTE n. 3.714/2023, dado que tais normas não extrapolam o poder regulamentar decorrente de lei.

4 - Ademais, cumpre ressaltar que os deveres de publicidade e de igualdade de gênero decorrem tanto do diploma legal citado quanto do próprio texto constitucional, tornando devida a observância da transparência na situação em exame.

5 - No que tange ao questionamento acerca da aplicabilidade da Lei n. 14.611/2023, tal somente poderia ocorrer em decorrência de alegação de interpretação divergente – que não se faz presente no caso em apreço – ou por inconstitucionalidade, a qual, no entanto, não pode ser analisada por decisão monocrática, diante da existência de cláusula de reserva de plenário em relação a essa questão, consoante o disposto na Súmula vinculante n. 10 do Supremo Tribunal Federal.

6 - Impende, contudo, salientar que é descabida a alegação de inobservância dos princípios constitucionais do contraditório e da ampla defesa por parte do texto legal mencionado e de seus respectivos decreto e portaria regulamentadores, dado que os dados utilizados para a elaboração do relatório de transparência salarial e de critérios remuneratórios por parte Ministério do Trabalho e Emprego serão extraídos das informações prestadas pelos próprios empregadores.

7 - Por fim, não há que se falar em violação ao disposto na Lei n. 13.709/2018, dado que a própria Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais mencionada autoriza o tratamento de dados pessoais pela administração pública.

8 - Recurso desprovido.

(TRF3, 3ª Turma, AI 5009856-38.2024.4.03.0000, Rel. Des. Fed. CARLOS DELGADO, j. 26/08/2024, DJEN DATA: 29/08/2024)

 

AGRAVO INTERNO. PROCESSUAL CIVIL. AGRAVO DE INSTRUMENTO. ADMINISTRATIVO. RELATÓRIO DE TRANSPARÊNCIA SALARIAL. CRITÉRIOS DE REMUNERAÇÃO ENTRE HOMENS E MULHERES. MITIGAÇÃO DE DESIGUALDADE SALARIAL. DECRETO Nº 11.795 /2023 E PORTARIA MTE Nº 3.714/23. REGULAMENTAÇÃO DA LEI Nº 14.611/2023. AUSÊNCIA DE ILEGALIDADE. RECURSO DESPROVIDO.

1. O Decreto nº 11.795/2023, ao regulamentar a Lei nº 14.611/2023, delineou o procedimento a ser adotado para conferir publicidade ao Relatório de Transparência Salarial e de Critérios Remuneratórios e ao Plano de Ação para Mitigação da Desigualdade Salarial e de Critérios Remuneratórios entre Mulheres e Homens.

2. O Ministério do Trabalho e Emprego (MTE) editou a Portaria MTE nº 3.714/2023, estabelecendo os mecanismos de transparência salarial e de critérios remuneratórios entre mulheres e homens.

3. O Poder Regulamentar é prerrogativa de direito público conferida à Administração Pública de editar atos gerais e abstratos para complementar as leis e lhe permitir a efetiva aplicabilidade, sem inovar a ordem jurídica positivada. A formalização do poder regulamentar opera-se por meio de decretos ou regulamentos (art. 84, inciso IV, da CF/88), a fim de uniformizar a execução da lei.

4. O princípio da legalidade, que constitui valor basilar de sustentabilidade e equilíbrio do Estado Democrático de Direito, no qual se encontra erigido a nossa carta republicana, o poder regulamentar deve ser sempre subjacente à lei, não podendo inovar ou contrariá-la, cabendo esmiuçar e concretizar o comando normativo em conformidade com o conteúdo da lei e nos limites por ela impostos.

5. O Decreto nº 11.795/2023 e a Portaria MTE nº 3.714/2023 não extrapolaram o poder normativo regulamentar, tampouco inovaram na ordem jurídica interna, porquanto tão-somente deram fiel cumprimento à norma posta no art. 6º da Lei nº 14.611/2023, que outorgou ao Poder Executivo a competência para instituir protocolo de fiscalização contra a discriminação salarial e de critérios remuneratórios entre homem e mulher.

6. A Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (Lei nº. 13.709/18) autoriza o uso de informações pessoais pela Administração Pública “para o tratamento e uso compartilhado de dados necessários à execução de políticas públicas previstas em leis e regulamentos” (art. 7º, inciso III).

7. Os deveres anexos de transparência e informação, corolários do princípio da publicidade que norteia a Administração Pública, se mostram imprescindíveis para que tanto o Poder Público quanto a coletividade exerçam controle do cumprimento da norma constitucional que assegura a igualdade de gênero não apenas no plano formal, quanto também no plano material.

8. Acerca da alegação de que a publicação do Relatório de Transparência Salarial e de Critérios Remuneratórios, elaborado pelo Ministério do Trabalho e Emprego (MTE), nos sítios eletrônicos e redes sociais das empresas, sem a possibilidade de prévia manifestação da pessoa jurídica acerca do relatório preparado pelo órgão público e sob imposição de penalidades violaria os princípios constitucionais do contraditório e da ampla defesa e, por conseguinte, o disposto no artigo 2º e 3º da Lei nº 9.784/99, não merece guarida. Ora, os dados utilizados para a elaboração do relatório de transparência salarial e de critérios remuneratórios por parte do MTE são obtidos a partir de informações prestadas pelos próprios empregadores.

9. Agravo de instrumento não provido. Agravo interno prejudicado.

(TRF3, 6ª Turma, AI 5013025-33.2024.4.03.0000, Rel. Juiz Federal SAMUEL DE CASTRO BARBOSA MELO, j. 17/12/2024, DJEN DATA: 19/12/2024)

 

Dessa forma, é de rigor a reforma da r. sentença recorrida, devendo ser invertida a verba de sucumbência.

Considerando o valor da causa, bem como a matéria discutida nos autos, o trabalho realizado pelo advogado e o tempo exigido ao seu serviço, condeno a apelada ao pagamento dos honorários advocatícios, arbitrados em 10% (dez por cento) sobre o valor da causa, devidamente atualizado e corrigido, conforme o art. 85, § 2º, do Código de Processo Civil.

Em face do exposto, dou parcial provimento à apelação para, rejeitando a preliminar, julgar improcedentes os pedidos.

É como voto.



Autos: APELAÇÃO CÍVEL - 5007877-74.2024.4.03.6100
Requerente: UNIÃO FEDERAL
Requerido: MORUMBY HOTEIS LTDA

 

Ementa: DIREITO CONSTITUCIONAL E ADMINISTRATIVO. PRELIMINAR DE INCOMPETÊNCIA AFASTADA. LEI 14.611/2023. RELATÓRIO DE TRANSPARÊNCIA SALARIAL. IGUALDADE SALARIAL ENTRE HOMENS E MULHERES. DECRETO 11.795/2023 E PORTARIA MTE 3.714/2023. PODER RE-GULAMENTAR. LEGALIDADE DA REGULAMENTAÇÃO. PRINCÍPIO DA PUBLICIDADE. INTERESSE PÚBLICO. APELAÇÃO PARCIALMENTE PROVIDA. HONORÁRIOS ADVOCATÍCIOS.

I. CASO EM EXAME

1. Apelação interposta pela União Federal contra sentença que julgou procedentes os pedidos para afastar a obrigatoriedade de envio de dados pessoais ao Governo Federal e de publicação do “Relatório de Transparência Salarial e de Critérios Remuneratórios” em seu site e redes sociais, bem como para impedir a divulgação de seus dados por meio do referido relatório. O juízo de origem extinguiu parte do processo, sem resolução do mérito, julgou procedentes os demais pedidos e condenou a União ao pagamento de honorários advocatícios.

II. QUESTÃO EM DISCUSSÃO

2. Há duas questões em discussão: (i) definir a competência para julgamento da demanda, considerando a alegação da União Federal de que a matéria deve ser apreciada pela Justiça do Trabalho; e (ii) analisar a legalidade da exigência de publicação do Relatório de Transparência Salarial e da imposição de plano de ação para mitigação da desigualdade salarial, à luz da Lei 14.611/2023 e da legislação correlata.

III. RAZÕES DE DECIDIR

3. Compete à Justiça Federal o processamento e julgamento da demanda, conforme o art. 109, I, da Constituição da República, uma vez que a lide envolve a União Federal e trata de obrigações administrativas decorrentes da Lei 14.611/2023, e não de relações de trabalho regidas pela CLT.

4. A regulamentação contida no Decreto 11.795/2023 e na Portaria MTE 3.714/2023 não extrapola os limites da Lei 14.611/2023, estando amparada no art. 84, IV, da Constituição, que autoriza o Poder Executivo a expedir decretos e regulamentos para a fiel execução das leis.

5. O tratamento de dados realizado pelo Ministério do Trabalho e Emprego para a elaboração dos relatórios de transparência salarial observa os princípios e regras da Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (Lei 13.709/2018), utilizando informações anonimizadas para fins de execução de políticas públicas.

6. A divulgação do Relatório de Transparência Salarial não viola o sigilo empresarial ou a livre concorrência, pois as informações publicadas possuem caráter estatístico e anonimizados, não expondo segredos comerciais ou estratégias empresariais.

7. O princípio da livre iniciativa deve ser harmonizado com outros valores constitucionais, como a igualdade de gênero e a proteção do mercado de trabalho da mulher (art. 7º, XX, da CF/1988), sendo legítima a exigência de transparência salarial e de critérios remuneratórios.

8. A atualização periódica dos relatórios, nos termos do art. 2º, § 4º, do Decreto 11.795/2023, assegura a fidedignidade das informações divulgadas, não havendo respaldo para alegação de desatualização ou distorção de dados.

9. O Plano de Ação para Mitigação da Desigualdade Salarial, previsto na Lei 14.611/2023, configura medida preventiva e corretiva, permitindo que as empresas justifiquem eventuais diferenças salariais com base em critérios objetivos.

IV. DISPOSITIVO E TESE

10. Preliminar rejeitada. Apelação parcialmente provida.

Tese de julgamento:

1. Compete à Justiça Federal processar e julgar demandas envolvendo obrigações administrativas decorrentes da Lei 14.611/2023, quando a União Federal figura no polo passivo.

2. A exigência de publicação do Relatório de Transparência Salarial e a imposição de plano de ação para mitigação da desigualdade salarial são medidas legais e proporcionais para a promoção da igualdade salarial entre homens e mulheres.

3. O tratamento de dados realizado pelo Ministério do Trabalho e Emprego no contexto da Lei 14.611/2023 está em conformidade com a Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais, não havendo violação ao sigilo empresarial ou à livre concorrência.


Dispositivos relevantes citados: CF/1988, arts. 7º, XX; 109, I; 170, IV; 195, XI. CPC, arts. 85, § 4º, III; 485, VI; 487, I. CLT, art. 461. Lei 14.611/2023, arts. 5º e seguintes. Lei 13.709/2018 (LGPD), art. 7º, III. Decreto 11.795/2023, arts. 2º, 3º, 4º. Portaria MTE 3.714/2023, arts. 4º a 7º.

Jurisprudência relevante citada: STF, RE 652.777 (Tema 483 de Repercussão Geral). TRF3, ApCiv 5009237-44.2024.4.03.6100, Rel. Des. Fed. Mairan Maia, j. 10/03/2025, DJEN 18/03/2025. TRF3, AI 5009856-38.2024.4.03.0000, Rel. Des. Fed. Carlos Delgado, j. 26/08/2024, DJEN 29/08/2024.


  ACÓRDÃO

Vistos e relatados estes autos em que são partes as acima indicadas, a Terceira Turma, por unanimidade, deu parcial provimento à apelação para, rejeitando a preliminar, julgar improcedentes os pedidos, nos termos do relatório e voto que ficam fazendo parte integrante do presente julgado.
CONSUELO YOSHIDA
Desembargadora Federal