Diário Eletrônico

PODER JUDICIÁRIO

TRIBUNAL REGIONAL FEDERAL DA 3ª REGIÃO
 PODER JUDICIÁRIO
Tribunal Regional Federal da 3ª Região
6ª Turma

APELAÇÃO CÍVEL (198) Nº 0005753-33.2015.4.03.6000

RELATOR: Gab. 19 - DES. FED. VALDECI DOS SANTOS

APELANTE: UNIÃO FEDERAL, MINISTERIO PUBLICO FEDERAL - PR/SP

APELADO: TEOPHILO BARBOZA MASSI, MICHAEL CHEISY NANTES STEIN, DENIS DA MAIA, QUALITY SISTEMAS LTDA - EPP, KARINA ALVES DE ALMEIDA, PLENUS CONSULTORIA E PLANEJAMENTO LTDA, MILTON SOUTO DE ARAUJO NETO

Advogado do(a) APELADO: RENATA GONCALVES PIMENTEL - MS11980-A
Advogado do(a) APELADO: RAFAEL NUNES DA CUNHA MAIA DE SOUZA - MS12826-A
Advogado do(a) APELADO: FLAVIO PEREIRA ROMULO - MS9758-A
Advogado do(a) APELADO: MURILO GODOY - MS11828-A
Advogados do(a) APELADO: LEONARDO FURTADO LOUBET - MS9444-A, WILSON VIEIRA LOUBET - MS4899-A

OUTROS PARTICIPANTES:

 

 


 

  

 PODER JUDICIÁRIO
Tribunal Regional Federal da 3ª Região
6ª Turma
 

APELAÇÃO CÍVEL (198) Nº 0005753-33.2015.4.03.6000

RELATOR: Gab. 19 - DES. FED. VALDECI DOS SANTOS

APELANTE: UNIÃO FEDERAL, MINISTERIO PUBLICO FEDERAL - PR/SP

APELADO: TEOPHILO BARBOZA MASSI, MICHAEL CHEISY NANTES STEIN, DENIS DA MAIA, QUALITY SISTEMAS LTDA - EPP, KARINA ALVES DE ALMEIDA, PLENUS CONSULTORIA E PLANEJAMENTO LTDA, MILTON SOUTO DE ARAUJO NETO

Advogado do(a) APELADO: RENATA GONCALVES PIMENTEL - MS11980-A
Advogado do(a) APELADO: RAFAEL NUNES DA CUNHA MAIA DE SOUZA - MS12826-A
Advogado do(a) APELADO: FLAVIO PEREIRA ROMULO - MS9758-A
Advogado do(a) APELADO: MURILO GODOY - MS11828-A
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R E L A T Ó R I O

 

Trata-se de apelação interposta contra sentença (ID 288011686) que julgou improcedentes os pedidos e deu por resolvido o mérito, nos termos dos art. 487, I, do CPC, e art. 17, § 11, da Lei 8.429/92, absolvendo os réus da imputação da prática de ato de improbidade administrativa. Sem custas (art. 23-A, § 1º, da LIA); Sem honorários, nos termos da fundamentação. Sem reexame necessário (art. 17, § 19, IV e art. 17-C, § 3º, da LIA). 

MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL propôs a presente ação de improbidade administrativa contra TEOPHILO BARBOZA MASSI, MICHAEL CHEISY NANTES STEIN, DENIS DA MAIA, QUALITY SISTEMAS – ME, KARINA ALVES DE ALMEIDA, KDM ASSESSORIA CONTÁBIL, CONSULTORIA E PLANEJAMENTO LTDA e MILTON SOUTO DE ARAÚJO NETO. Sustenta que, em processo de sindicância desencadeada pela CGU, no Município de Corguinho, MS, seguida de Inquérito Policial, foi constatada a existência de um processo de licitação simulado, na modalidade carta convite, na área da Saúde daquele Município, envolvendo recursos federais. Tal prática foi adotada pelo então prefeito TEÓPHILO BARBOZA MASSI com o intuito de justificar a contratação direta da empresa KMD ASSESSORIA CONTÁBIL, CONSULTORIA E PLANEJAMENTO LTDA, de KARINA ALVES DE ALMEIDA, então contadora do Município, figurando MICHEL CHEIZY NANTES STAIN como presidente da inexistente comissão de licitação. Também participaram da licitação a QUALITY SISTEMAS, de DENIS DA MAIA, empresa que desenvolveu o software e da qual a KMD era representante comercial; e RCM, de MILTON SOUTO DE ARAÚJO NETO, o qual teria amizade com Denis Maia. Aponta vários vícios no procedimento para concluir que os réus simularam a licitação para que justificar a contratação da empresa KMD. Na sua avaliação, tal conduta dos réus configura improbidade administrativa causadores de prejuízo ao erário, conforme art. 10, VIII, da Lei nº 8.429/92, o que importa nas sanções previstas no art. 12, II, da mesma lei. Formulou os seguintes pedidos:

Diante do exposto, pede o MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL:

1. a condenação dos réus pela prática de atos de improbidade que causam lesão ao erário (art. 10, VIII, da Lei n. 8.429/92), aplicando-se-lhes as sanções respectivas (art. 12, 11, da mesma Lei), inclusive a condenação ao ressarcimento ao erário no montante de R$ 59.301,58 (cinquenta e nove mil, trezentos e um reais e cinquenta e oito centavos), de forma solidária (art. 942 do CC);

2. subsidiariamente, a condenação dos réus pela prática de atos de improbidade que atentam contra os princípios da administração pública (art. 11, caput e incisos 1e II, da Lei n. 8.429/92), aplicando-se-lhes as sanções respectivas (art. 12, III, da mesma Lei);

3. a condenação dos réus ao pagamento das custas e despesas processuais, bem como honorários advocatícios, valores a serem revertidos ao Fundo de Defesa dos Direitos Difusos, previsto nos arts. 13 e 20 da Lei n. 7.347/85 e regulamentado pelo Decreto n. 1.306/94.

Juntou-se aos autos cópia da sentença proferida na TUTELA CAUTELAR ANTECEDENTE Nº 0006344-92.2015.4.03.6000, distribuída em dependência ao presente processo.

Foi proferida a sentença ora impugnada.

Em razões de apelação (ID 288011688), o MPF sustenta, em síntese, que o STF apenas se posicionou formalmente a respeito da (ir)retroatividade da norma atual nas situações de improbidade culposa (Tese fixada quanto ao Tema 1199, no julgamento do ARE 843.989), o que não é o caso dos autos. Destaca que, no julgamento do referido recurso, o Ministro Edson Fachin, sustentou a irretroatividade total das novas normas da Lei de Improbidade Administrativa ante a sua natureza civil e não penal. Assenta que a retroatividade das normas mais benéficas é instituto típico do Direito Penal e está fundamentada em aspectos humanitários associadas à liberdade do criminoso e na incongruência de continuar punindo penalmente determinadas condutas que não são mais vistas pela sociedade com desvalor ético-jurídico apto a atrair a chamada ultima ratio em termos punitivos, pontos que não encontram paralelo no Direito Administrativo. Cita doutrinadores e precedentes do STJ e de outros tribunais. Refere que a regra é de que os fatos sejam regulados pela legislação em vigor à época em que foram praticados, conforme o princípio do tempus regit actum. Ou seja, como regra, ante o princípio da segurança jurídica, um dos pilares do Estado de Direito, que requer previsibilidade, as leis aplicam-se para os fatos ocorridos durante sua vigência, de modo irretroativo, portanto. Ainda quando expressamente retroativas - o que não se dá na espécie -, as leis encontram expressa limitação no art. 5º, XXXVI, da Constituição, o qual resguarda da retroação expressa na lei o ato jurídico perfeito, o direito adquirido e a coisa julgada. Afirma que a Lei de Improbidade Administrativa é parte integrante do Direito Administrativo Sancionador e está inserida em um microssistema de tutela à probidade, o qual encontra fundamento na Constituição Federal e em tratados internacionais, sobretudo na Convenção das Nações Unidas contra a Corrupção (Convenção de Mérida), acolhida no ordenamento brasileiro pelo Decreto 5.687/2006. Defende que é necessário compatibilizar a discussão acerca da retroação da norma mais benéfica com a proteção contra o retrocesso legislativo, nos termos do art. 65, n. 2, da Convenção e, também, com o princípio da proporcionalidade, sobretudo na perspectiva da proteção insuficiente dos direitos fundamentais, entre os quais se inclui a proteção ao direito fundamental à probidade administrativa. Cita julgados do STF. Elenca uma série de mudanças promovidas pela Lei 14.230/21 que entende violar os aludidos princípios, e também o princípio da razoabilidade, da moralidade e da eficiência. Narra que os apelados Teóphilo Barboza Massi, Michael Cheisy Nantes Stein e Karina Alves de Almeida, eram servidores públicos da Prefeitura Municipal de Corguinho/MS à época dos fatos, ocupando, respectivamente, o cargo de Prefeito Municipal, a função de Presidente da Comissão de Licitação e o cargo de contadora (além de proprietária da empresa Kmd Assessoria Contábil, Consultoria e Planejamento Ltda), sendo que as condutas ilegais a eles atribuídas tinham
intrínseca relação com as funções que desempenhavam no referido órgão (art. 2º, caput, da Lei 8.429/92). Já os recorridos Denis da Maia, na condição de proprietário da empresa Quality Sistemas - ME, e Milton Souto de Araújo Neto, na condição de sócio-proprietário da empresa RCM Informática, conforme esclarecido na inicial (ID 20416101, fls. 06/12) e rememorado em sede de alegações finais (ID 146158869, fls. 07/18), concorreram
dolosamente para a prática dos atos de improbidade (art. 3º, caput, da Lei 8.429/1992). No tocante às empresas Quality Sistemas - ME e Kmd Assessoria Contábil, Consultoria e Planejamento Ltda, beneficiárias dos atos ímprobos cometidos, considerando o que determina o novo parágrafo §2º, do art. 3º, da Lei 8.429/92, bem como o que dispõem os arts. 1º, caput e parágrafo único; 2º; e 5º, IV, "a", "b" e "d", todos da Lei 12.846/13, em tese suas responsabilidades nos atos discutidos neste feito deveriam ser apuradas nos termos da Lei Anticorrupção (Lei 12.846/13). Ocorre que tal texto normativo somente entrou em vigor em 29/01/2014, 180 dias após a sua publicação, em 01/08/2013 (art. 31 da Lei 12.846/13), sendo que os fatos apurados nestes autos ocorreram no ano de 2009, de modo que a Lei Anticorrupção não pode retroagir para atingir fatos anteriores à sua vigência. Assim, da mesma forma quanto aos demais apelados, às pessoas jurídicas citadas deverá ser aplicada a Lei de Improbidade Administrativa (Lei 8.429/1992), como concorrentes dolosas dos atos ímprobos cometidos a partir das ações de seus proprietários. Assere que as condutas enquadram-se no art. 10, caput e inciso VIII, da Lei 8.429/92. A diferença da atual sistemática da Lei de Improbidade no tocante ao tipo previsto no art. 10, quando comparada com a redação antiga, repousa no fato de saber se, no caso analisado, houve, comprovadamente, "perda patrimonial efetiva", além do elemento subjetivo dolo. Quanto ao prejuízo suportado pelo erário federal no presente caso, deve-se levar em consideração que a Administração foi tolhida de obter a proposta que seria mais vantajosa ao interesse público. Tal conclusão não é abstrata, porquanto não houve concorrência efetiva (que faria com que fossem ofertados preços mais favoráveis à administração). Além disso, o procedimento licitatório realizado (Carta Convite n. 005/2009) buscou apenas dar uma roupagem legal para um negócio irregular entabulado entre os licitantes, o então Prefeito Municipal de Corguinho/MS (Teóphilo Barboza Massi) e outros servidores públicos, com o claro direcionamento da licitação para a ré Kmd Assessoria Contábil, Consultoria e Planejamento Ltda. Argumenta que a indenização do erário lesado por agente público não é imposta somente como "sanção" decorrente do ato de improbidade administrativa praticado, mas constitui também objeto de obrigação oriunda das normas sobre responsabilidade civil. Ademais, a CGU destacou em sua Nota Técnica que a pesquisa de preço realizada, em tese, pela Comissão de Licitação, foi com base, exclusivamente, em orçamentos enviados pelas próprias empresas concorrentes no certame (ID 20416101, fl. 43, item 4.1, subitem 1.2). Salienta que, para situações tais, a lei prevê expressamente que a contratada não faz jus a pagamento algum pelo serviço executado. Assim, o presente caso não trata de mera "inobservância de formalidades legais ou regulamentares" (art. 10, §1º, da Lei n. 8.429/92), mas de inconstitucionalidades e ilegalidades que acarretaram a nulidade do contrato pactuado e consequente prejuízo efetivo para a administração pública. Tal entendimento encontra amparo nos arts. 49, §§ 1º e 2º, e 59, parágrafo único, ambos da Lei 8.666/93, e no art. 54, caput, da Lei 9.784/99. A nova lei de licitações (Lei 14.133/21) manteve o mesmo posicionamento em seus arts. 148, § 1º, e 149
. Ainda, a "perda patrimonial efetiva" se faz presente no caso analisado pela mesma justificativa de ser indiferente o fato de a empresa recorrida ter (total ou parcialmente) prestado o serviço contratado ou por esse eventualmente estar dentro do preço de mercado, qual seja, em razão da nulidade da licitação/contrato observado, bem como por ser vedado ao agente privado se beneficiar da ilegalidade à qual deu causa. Ou seja, considerando as inconstitucionalidades e ilegalidades cometidas no caso destes autos, que foram minuciosamente discriminadas na inicial, as quais acarretaram a nulidade do contrato pactuado, não há como concluir que não houve perda patrimonial efetiva à Administração, seja qual for a justificativa apresentada para tanto, uma vez que a contratação em si foi inválida e, portanto, o prejuízo é efetivo e correspondente ao valor de R$ 59.301,58 (cinquenta e nove mil, trezentos e um reais e cinquenta e oito centavos) atualizado até 21 de maio de 2015. Indica que o art. 1º, § 1º, da Lei 8.429/92, incluído pela Lei 14.230/21, agora apenas a conduta dolosa pode configurar os atos ímprobos tipificados nos arts. 9º, 10 e 11 do referido diploma normativo. Ainda, o § 2º, do art. 1º, conceitua dolo como "a vontade livre e consciente de alcançar o resultado ilícito tipificado nos arts. 9º, 10 e 11 desta Lei, não bastando a voluntariedade do agente". Ou seja, para configurar a conduta ímproba, deverá o agente estar imbuído de um especial fim de agir, que, no caso do art. 10, caput e inciso VIII (em que se enquadram as condutas dos réus), trata-se da vontade de dispensar indevidamente processo licitatório, causando dano efetivo ao erário. Verifica-se a inequívoca presença do dolo na conduta dos agentes, pois, , por certo que os apelados tinham como intuito dispensar indevidamente processo licitatório, causando dano efetivo ao erário, por ser decorrência lógica das condutas praticadas (para as recorridas Kmd Assessoria Contábil, Consultoria e Planejamento Ltda e Quality Sistemas - ME serem beneficiadas - a primeira diretamente e a segunda indiretamente -, a Administração Pública teria de ser prejudicada). Aduz que não houve propriamente absolvição dos apelados na esfera penal, mas sim rejeição da denúncia. Ademais, conforme reconhecido pelo próprio juízo a quo também na sentença, há independência entre as esferas penal e cível, conforme previsão constitucional (art. 37, § 4º, da CF), bem como da própria lei de improbidade administrativa (art. 12, caput, da Lei 8.429/92). Menciona que restou consignado na sentença recorrida que "(...) não há como afirmar que a empresa da qual MILTON era sócio tenha participado apenas para dar aparência de prévia licitação". Entretanto, as provas produzidas nos autos demonstram exatamente o contrário. Nesse sentido, quanto à relação de proximidade existente entre as três empresas participantes do certame em questão, o entendimento colide com o teor do testemunho de Vera Lúcia de Moraes, quando ouvida perante a autoridade policial (ID 20416101, fl. 210). Tal testemunha não prestou depoimento judicial apenas em razão da sua condição física, sendo dispensada pelo juízo de piso (ID 62990946).  o próprio apelado Milton afirmou, durante a fase inquisitorial, ter certa proximidade com Marcos Luiz da Maia, irmão do réu Denis, já tendo feito contato com aquele para que lhe fossem apresentados relatórios e outras funcionalidades dos softwares desenvolvidos pela empresa Quality Sistemas Ltda, bem como informou que essa empresa e a RCM Informática disputam licitações em várias Prefeituras (ID 20416101, fl. 324; e ID 20415247, fl. 07/08). Ainda, relatou que conheceu a recorrida Karina (ID 20415247, fls. 07/08). Quanto às propostas, a diferença entre as três concorrentes teve proporção semelhante. O objeto a ser contratado pela Carta Convite n. 005/2009 não foi adequadamente detalhado no edital do certame. Pelo contrário, tanto no edital quanto em seu anexo a descrição era a mesma, qual seja: Contratação de empresa para a prestação de serviço de locação de software na área de saúde, o qual vai atender hospitais, postos de saúde e o programa saúde da família (ID 20416101, fls. 147 e 151). Defende que as informações constantes no edital são incompatíveis com propostas tão equânimes. A partir dos testemunhos, infere que, provavelmente, o representante da empresa RCM sequer compareceu à sede da Prefeitura de Corguinho/MS, sendo sua assinatura coletada posteriormente, demonstrando que a RCM nem mesmo tinha interesse no certame, figurando neste tão somente para simular uma concorrência que não existiu. Enfatiza que as propostas finais apresentadas pelas empresas "concorrentes" coincidiram com os valores dos orçamentos enviados por elas mesmas à Comissão de Licitação para fins de pesquisa de preço, sendo que tal pesquisa foi amparada, exclusivamente, nos orçamentos citados (ID 20416101, fls. 140/142 e fl 166). Ou seja, não houve disputa. Narra que não constam nos autos cópias dos envelopes nos quais deveriam ter sido entregues as documentações e propostas das empresas "concorrentes", embora haja previsão legal e no próprio instrumento convocatório para tanto (ID 20416101, fl. 147). Aponta qua não foi apresentado pela Prefeitura de Corguinho/MS nenhum modelo para preenchimento da proposta de preço, sendo que, mesmo assim, as empresas "concorrentes" apresentaram suas propostas com formatação idêntica e com a mesma data (23 de janeiro de 2009), apenas um dia após a divulgação do edital, além de o dia da semana ser escrito antes da data, da mesma forma ("Sexta-Feira") - ID 20416101, fls. 160/162. Quanto ao Parecer da Comissão de Licitação (ID 20416101, fl. 165) e as atas de julgamento e encerramento do certame (ID 20416101, fl. 189/191), essas foram assinadas apenas pelo réu Michael, presidente da Comissão de Licitação, e pelas empresas participantes da "licitação". O fato de não constar em tais documentos a assinatura dos demais membros da Comissão de licitação (Elza Fernandes de Lima e Ari Alves de Oliveira) foi por esses explicado em audiência (IDs 123575793, 123576504, 123576534, 123581312, 123576962 e 123576967). Aquela relatou que não participou da licitação objeto dos autos, sendo que, das que participou (que foram somente duas referentes a transporte escolar), o processo já vinha pronto, com marcações nas páginas em que precisaria da sua assinatura, afirmando ainda que não tinha conhecimento técnico para participar da Comissão, nem ao menos teve treinamento para exercer tal função. Já este esclareceu que sua função na Comissão de Licitação era apenas a de participar das sessões para as quais era convidado e tinha disponibilidade, já que não trabalhava na sala de licitações, mas sim no setor tributário da Prefeitura de Corguinho/MS. Ainda, informou que, quando participava das sessões, assinava as atas. Também ressaltou que não tinha conhecimento técnico para avaliar os processos licitatórios e que acreditava que o recorrido Michael tivesse. Ou seja, a versão apresentada pela recorrida Karina em juízo (IDs 123483033, 123483046 e 123483741 e 123573793), de que Elza Fernandes de Lima e Ari Alves de Oliveira estavam presentes na sessão de abertura e julgamento das propostas, vai de encontro com o que relataram as próprias testemunhas. Além disso, o recorrido Denis, embora tenha reconhecido como suas as assinaturas constantes nas atas de julgamento e encerramento do certame (ID 20416101, fl. 189/191), afirmou em juízo que não se recorda de ter participado da sessão de abertura das propostas (IDs 123482368, 123483006, 123483033). Ainda, quanto ao Termo de Homologação (ID 20416101, fl. 167), que põe fim ao certame, esse nem ao menos foi assinado. Corroborando tudo o que foi exposto, em declarações prestadas durante a fase investigativa - cujo teor, embora não tenha sido ratificado expressamente, não foi negado em momento algum em juízo - o apelado MICHAEL CHEISY NANTES STEIN descreveu com riqueza de detalhes como era realizada a montagem dos processos licitatórios, bem como que, na maioria das vezes, as reuniões acerca dos certames não ocorriam, como no caso da licitação tratada nestes autos (ID 20415247, fls. 37/41).

Contrarrazões de Teophilo Barboza Massi (ID 288011693, ID 288011698).

Em razões de apelação (ID 288011695), a União sustenta, em síntese, que o Supremo Tribunal Federal estabeleceu que a Lei 14.230/2021 não retroage como um todo, é razoável entender que, a despeito de não haver menção específica (na ementa) neste sentido (de que os atos e fatos ocorridos antes da entrada em vigor da Lei 14.230/2021 permanecerão regulados pela Lei 8.429/92, na redação não alterada em 2021, inclusive no que tange à prescrição geral), a irretroatividade e a sua extensão se inferem validamente do voto do Ministro-relator. A tese 3 do Tema 1.199 não deixa dúvidas acerca da inaplicabilidade da nova Lei 14.230/2021 aos atos de improbidade administrativa não culposos praticados na vigência do texto anterior da lei, na medida em que a Suprema Corte foi expressa em fixar a retroatividade apenas no que diz respeito à modalidade culposa, porque esta foi suprimida do diploma legal por manifestação expressa do Poder Legislativo. Por decorrência lógico-jurídica, se não houve a supressão do tipo legal de improbidade a lei nova não se aplica. No que tange ao disposto no art. 10 da Lei 8.429/92, os novos enunciados do caput e do inciso VIII apenas enfatizam a necessidade de ocorrência de perda patrimonial e circunscrevem a tipicidade ao ato doloso, negando a condição de ímprobo ao ato culposo e causador de lesão ao erário. No caso dos autos, houve, sim, dispensa indevida de licitação, que resultou na contratação - ilegal - da empresa KMD ASSESSORIA CONTÁBIL E PLANEJAMENTO LTDA. Ficou demonstrado que o procedimento licitatório (Carta Convite 005/2009) foi forjado e serviu de simulacro de certame, pois não houve efetiva disputa entre os concorrentes. Nessa quadra, indaga-se: atenderá a juridicidade e ter-se-á por justa e moral a decisão pela retroatividade da lei nova, cujo efeito será referendar o conluio e legitimar os valores indevidamente recebidos pelas rés KMD e QUALITY? A resposta deve ser negativa. Não se tratou de “fraude culposa”, “conluio culposo”, composto por negligência, imperícia ou imprudência dos envolvidos. Não espécie tem-se por manifesta a presença do dolo quanto a intenção de aparentar a existência de processo de competição e, na verdade, dirigir intencionalmente a contratação a pessoa específica. Relativamente à limitação da categorização do ato como improbo como “doloso”, lembra-se que a jurisprudência do STJ (decidindo sobre o artigo 11) não fazia distinção entre dolo específico e dolo eventual. Hodiernamente, conforme o disposto no art. 1º, §§ 1º e 2º, da Lei n. 8.429/92, incluídos pela Lei 14.230/21, somente a conduta dolosa pode configurar atos ímprobos tipificados nos arts. 9º, 10 e 11 do mesmo diploma legal, sendo que deve se en tender por dolo "a vontade livre e consciente de alcançar o resultado ilícito tipificado nos arts. 9º, 10 e 11 desta Lei, não bastando a voluntariedade do agente". No entanto, em se tratando de atos de improbidade administrativa, muitas vezes cometidos na clandestinidade, dificilmente a prova de dolo específico poderá ser feita de forma direta, se impondo ao intérprete ater-se às circunstâncias periféricas do caso concreto. Diz a doutrina: "Em face da impossibilidade de se penetrar na consciência e no psiquismo do agente, o seu elemento subjetivo há de ser individualizado de acordo com as circunstâncias periféricas ao caso concreto, como o conhecimento dos fatos e das consequências, o grau de discernimento exigido para a função exercida e a presença de possíveis escusas, como a longa repetitio e a existência de pareceres embasados na técnica e na razão". Aponta uma desarmonia entre o modelo de dolo do art. 1º e o do art. 11, revelando que os §§ 1º e 2º foram acrescentados depois e com o nítido propósito de dificultar a persecução, já que supostamente ampliou o standard de prova do elemento subjetivo. Os novos §§ 1º e 2 º do art. 11 criaram um modelo de dolo de beneficiamento, que consiste em valer-se do cargo para obter proveito ou benefício para si (beneficiamento próprio) ou para outra pessoa ou entidade (beneficiamento alheio). O dolo de beneficiamento não é propriamente um dolo específico, pois está inserido genericamente em quase todas as condutas de crimes e infrações patrimoniais e também nas situações de abuso de função, cujas violações ocorrem para trazer algum benefício. A improbidade de enriquecimento ilícito sempre exigiu o dolo de beneficiamento próprio em todas as suas condutas, isto é, já está contemplado na própria descrição do tipo. Já a improbidade de lesão ao Erário contempla, na maioria das condutas, o dolo de beneficiamento alheio, cujo dano foi causado para gerar proveito para outra pessoa ou entidade. Podemos identificar esse dolo nos incisos I, II, III, IV, V, VII, VIII, XI, XII, XIII, XVI, XVII, XVIII, XIX, XX, pois em todas essas situações o dano ao Erário ocorre para beneficiar uma outra pessoa ou entidade, mediante a participação de um agente público.  De igual modo, o art. 11 (violação a princípios) também contempla o dolo de beneficiamento (próprio ou alheio) na maioria dos seus incisos (III, V, VI, VII, XI, XII), pois esse tipo é o de abuso de função, em que o agente publico se vale do seu ofício para tirar ou conceder algum proveito, justamente o mencionado no art. 19 da Convenção das Nações Unidas contra a Corrupção. Desse modo, percebe-se que o há de realmente novo no campo do elemento beneficiamento sempre esteve presente em mais de 90% dos tipos de improbidade administrativa da Lei 8.429/92, desde a sua redação original. Perde o sentido a discussão sobre a retroatividade de norma de direito material mais benéfica (dolo específico) para alcançar processos em curso, emendando-se petições iniciais, renovando-se instruções ou até mesmo anulando-se sentenças que “não contemplaram” esse “novo” elemento subjetivo. Protesta que, para o art. 10, caput e inciso VIII (em que se enquadram as condutas dos réus), exige-se a vontade de dispensar indevidamente processo licitatório, causando dano efetivo ao erário. E os corréus-apelados atuaram no sentido de dispensar indevidamente o processo licitatório, sabidamente causando dano efetivo ao erário, haja vista que a eliminação da concorrência conduz, logicamente, à contratação por preço mais elevado, beneficiando as recorridas KMD Ltda. e Quality Sistemas e prejudicando a União (FNS).

Contrarrazões de Karina Alves de Almeida, KDM Assessoria Contábil, Consultoria e Planejamento Ltda (ID 288011699, ID 288011705).

Contrarrazões de Milton Souto de Araújo Neto (ID 288011700).

Contrarrazões de Quality Sistemas Ltda e Denis da Maia (ID 288011702).

Contrarrazões de Michael Cheizy Nantes Stein (ID 288011704).

Parecer da Procuradoria Regional da República da 3ª Região (ID 291557112), opinando pelo provimento das apelações.

É o relatório.

 

 


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OUTROS PARTICIPANTES:

 

 

 

V O T O

 

A presente ação civil pública por ato de improbidade administrativa foi ajuizada em face de TEÓPHILO BARBOZA MASSI, ex-prefeito de Corguinho/MS, MICHAEL CHEISY NANTES STEIN, então presidente da comissão de licitação do município, KARINA ALVES DE ALMEIDA, então contadora do município, além de representante da empresa corré KMD ASSESSORIA, DENIS DA MAIA, representante da empresa corré QUALITY SISTEMAS, e MILTON SOUTO DE ARAÚJO NETO, representante da RCM INFORMÁTICA.

Narrou o MPF na inicial que, no começo do ano de 2009, a Prefeitura do Município de Corguinho realizou licitação para efetuar a "contratação de empresa para a prestação de serviço de locação de software na área de saúde, o qual vai atender a hospitais, postos de saúde e o programa saúde da família", processada como Carta-convite 005/2009). Relatou que foram convidadas a participar do certame as empresas QUALITY SISTEMAS, pertencente a DENIS DA MAIA, KMD ASSESSORIA, pertencente à KARINA ALVES DE ALMEIDA, e RCM INFORMÁTICA, sendo um de seus sócios MILTON SOUTO DE ARAÚJO NETO.

Destacou que todas as empresas convidadas para participarem do certame possuíam envolvimento entre si, bem como vínculos junto à Prefeitura do Município de Corguinho, relacionando-se do seguinte modo:

1) KARINA ALVES DE ALMEIDA, à época da licitação, era contadora da Prefeitura Municipal de Corguinho/MS, emitindo, inclusive, parecer contábil nos autos do procedimento licitatório para qual sua empresa foi convidada a participar;

2) A empresa KMD ASSESSORIA, pertencente à KARINA ALVES DE ALMEIDA, era representante comercial do software desenvolvido pela empresa QUALITY SISTEMAS, pertencente a DENIS DA MAIA;

3) MILTON SOUTO DE ARAÚJO NETO, sócio da empresa RCM INFORMÁTICA, mantinha relações com a empresa QUALITY SEGUROS, pertencente a DENIS DA MAIA, estabelecendo contatos com o irmão dele, MARCOS Luiz DA MAIA.

Prosseguiu apontando que a empresa RCM INFORMÁTICA, na qual MILTON SOUTO DE ARAÚJO é sócio, e a empresa KMD ASSESSORIA, pertencente à KARINA ALVES DE ALMEIDA, foram, entre os anos de 2005 e 2012, respectivamente, responsáveis pela contabilidade da Prefeitura e da Câmara dos Vereadores do Município de Nioaque/MS.

Defende o MPF que, com intuito de favorecer KARINA ALVES DE ALMEIDA, por ser a contadora do Município, o então prefeito TEÓPHILO BARBOZA MASSI contratou diretamente os serviços por ela prestados, consistentes na locação de softwares para a área da saúde, dispensando indevidamente a realização de licitação. Para ocultar a dispensa ilegal do certame, TEÓPHILO BARBOSA MASSI teria determinado ao Presidente da Comissão de Licitação do Município, MICHAEL CHEISY NANTES STEIN, que montasse procedimento licitatório fraudulento, consistente na Carta-convite 005/2009.

Para ancorar seus argumentos apresentou provas e destacou o teor da Controladoria-Geral da União sobre a licitação Carta-convite 005/2009, que elencou as seguintes inconsistências:

1) Os envelopes nos quais as empresas participantes deveriam ter entregue a documentação e suas propostas de preço não constam nos autos do certame, embora seja exigência prevista na legislação pertinente e no próprio instrumento convocatório (fl. 45 do Anexo I);

2) A pesquisa de preço realizada, em tese, pela Comissão de Licitação foi com base, exclusivamente, em orçamentos enviados pelas próprias empresas concorrentes no certame (fs. 37/39 do Anexo I);

3) A proposta final apresentada pelas empresas coincidiu com o valor dos orçamentos enviados por elas à Comissão de Licitação, ou seja, não existiu disputa entre as concorrentes durante o suposto certame (fl. 63 do Anexo I);

4) O parecer contábil, assinado pela própria contadora do município e concorrente na licitação, KARINA ALVES DE ALMEIDA, não indiciou qual a dotação orçamentária que seria utilizada para a aquisição do objeto licitado, bem como deixou de consignar demais informações necessárias (fl. 41 do Anexo I);

5) Embora não tenha sido apresentado, pela Prefeitura Municipal, algum modelo para preenchimento da proposta de preço, todas as empresas concorrentes apresentaram suas propostas com formatação idêntica e com a mesma data (23 de janeiro de 2009), apenas um dia após a divulgação do edital (fls. 57/59 do Anexo I);

6) Houve correlação de preços entre as propostas apresentadas: o valor apresentado pela empresa vencedora (R$ 36.000,00), quando comparado com o da segunda colocada (R$ 40.320,00), acresce-se em 12%, sendo que a mesma porcentagem é verificada na diferença do valor da segunda colocada (R$ 40.320,00) para a terceira colocada (R$ 45.360,00), demonstrando-se, assim, o conluio entre as participantes do certame (fls. 57/59 do Anexo I);

7) Diversos documentos que se encontram nos autos não foram assinados, destacando-se o Termo de Homologação que põe fim ao certame, implicando a constatação de que a licitação não foi, legalmente, homologada (fl. 64 do Anexo I);

8) O parecer da Comissão de Licitação e as atas de julgamento e encerramento estão assinadas apenas pelo Presidente, MICHAEL CHEISY NANTES STEIN, estando ausentes as assinaturas dos outros membros (fls. 62 e 87/89 do Anexo I);

9) Embora seja representante comercial da empresa QUALITY SISTEMAS, a empresa KMD ASSESSORIA apresentou proposta menor do que a daquela empresa, sagrando-se, por isso, vencedora do certame (fls. 57/58 do Anexo I);

10) No website da empresa QUALITY SISTEMAS, constatou-se que ela e a empresa KMD ASSESSORIA são parceiras comerciais (fl. 09 do Anexo I);

11) Na fachada da sede da empresa QUALITY SISTEMAS, visualizou-se a identificação da empresa KMD ASSESSORIA, indicando que as duas empresas funcionariam no mesmo local (fl. 09 do Anexo 1).

Após, citação, contestação e instrução do feito, o juízo a quo proferiu sentença da qual destaco os seguintes excertos:

Restando pacificada a exigência do dolo para configuração da improbidade administrativa (Tema 1199), conclui-se que a mera dispensa ou inexigibilidade de licitação (voluntariedade do agente) não constitui ilícito para fins de aplicação das sanções previstas na LIA. 

Deve haver prova de efetiva perda patrimonial, sendo insuficiente a mera presunção do dano.

No caso, o autor está sendo demandado por não ter observado as formalidades pertinentes à licitação, realizando ao todo, R$ 59.301,58 (posição em maio de 2015) em despesas decorrentes de contratação de empresa para a prestação de serviço de locação de software na área de saúde para atender a hospitais, postos de saúde e o programa saúde da família.

O MPF (id 258045344 e 256354188) limitou-se a defender que o fato dispensa prova, o que, pela norma regente, não se sustenta.

Ao contrário do que afirma, o prejuízo não é decorrência lógica das condutas praticadas. É imprescindível para a configuração de ato ímprobo prova de que o serviço médico contratado e os produtos adquiridos trouxeram efetiva perda patrimonial ao erário. 

Não se desconhece que a aquisição por meio de concorrência pressupõe menor preço. No entanto, a mera suposição de que isto ocorreria no presente caso não é suficiente para caracterizar prejuízo ao erário.

Pelas provas produzidas nos autos, não há como acolher a tese de que o réu MILTON tinha amizade com DENIS MAIA, mesmo porque baseava-se no testemunho de Vera Lúcia que não foi ouvida nesta ação. Assim, não há como afirmar que a empresa da qual MILTON era sócio tenha participado apenas para dar aparência de prévia licitação.

O mesmo não se aplica quanto a relação entre as empresas QUALITY (e seu sócio DENIS MAIA) e KMD, de propriedade de KARINA, comprovada por meio da seguinte figura (id 20416101 - Pág. 46):
(...)

Ademais, a KMD não ofertou produto próprio, mas sim, desenvolvido pela QUALITY, empresa que também iria prestar manutenção, pelo que a tese de que os preços teria sido combinados e que a segunda empresa tenha sido efetivamente a vencedora não pode ser desconsideradas.

Sucede que isto não basta para a condenação dos réus, pois o autor não apontou preços de produtos similares (locação de software) em licitações de municípios do mesmo porte e, conforme informação trazida pela testemunha Adriano, trata-se de serviço de custo alto, por não haver profissionais qualificados no Estado.

Não se aplica na ação de improbidade administrativa a presunção de veracidade dos fatos alegados pelo autor em caso de revelia tampouco a imposição de ônus da prova ao réu, na forma dos §§ 1º 2º do art. 373 da Lei nº 13.105, de 16 de março de 2015 (art. 17, § 19, I e II, da LIA).

Assim, ainda que os réus  KARINA e DENIS possam tenham agido em conluio para que a empresa KMD fosse a vencedora e a empresa QUALITY prestasse o serviço, implicando em contratação sem observância das normas que regem o processo licitatório, não restou demonstrado o segundo requisito, qual seja, perda patrimonial efetiva.

Com efeito, os fatos que provocaram o ajuizamento da ação se deram sob a égide da Lei 8.429/92 e da Lei 8.666/93. No curso da ação, porém, sobreveio a aprovação da Lei 14.230/21, que promoveu alterações sensíveis na redação da Lei de Improbidade Administrativa de 1992.

De particular relevância para a presente ação é o teor das teses fixadas pelo STF no julgamento do Tema 1199, após se debruçar sobre a extinção da modalidade culposa nos atos de improbidade administrativa, e sobre o regime de prescrição aprovado pela nova LIA:

1) É necessária a comprovação de responsabilidade subjetiva para a tipificação dos atos de improbidade administrativa, exigindo-se - nos artigos 9º, 10 e 11 da LIA - a presença do elemento subjetivo - DOLO;

2) A norma benéfica da Lei 14.230/2021 - revogação da modalidade culposa do ato de improbidade administrativa -, é IRRETROATIVA, em virtude do artigo 5º, inciso XXXVI, da Constituição Federal, não tendo incidência em relação à eficácia da coisa julgada; nem tampouco durante o processo de execução das penas e seus incidentes;

3) A nova Lei 14.230/2021 aplica-se aos atos de improbidade administrativa culposos praticados na vigência do texto anterior da lei, porém sem condenação transitada em julgado, em virtude da revogação expressa do texto anterior; devendo o juízo competente analisar eventual dolo por parte do agente;

4) O novo regime prescricional previsto na Lei 14.230/2021 é IRRETROATIVO, aplicando-se os novos marcos temporais a partir da publicação da lei.

Os atos ímprobos imputados aos réus pelo MPF na inicial estão descritos no art. 10, VIII e art. 11,  I e II, da Lei 8.429/92, que continham a seguinte redação à época dos fatos:

Art. 10. Constitui ato de improbidade administrativa que causa lesão ao erário qualquer ação ou omissão, dolosa ou culposa, que enseje perda patrimonial, desvio, apropriação, malbaratamento ou dilapidação dos bens ou haveres das entidades referidas no art. 1º desta lei, e notadamente:

VIII - frustrar a licitude de processo licitatório ou dispensá-lo indevidamente

Art. 11. Constitui ato de improbidade administrativa que atenta contra os princípios da administração pública qualquer ação ou omissão que viole os deveres de honestidade, imparcialidade, legalidade, e lealdade às instituições, e notadamente:

I - praticar ato visando fim proibido em lei ou regulamento ou diverso daquele previsto, na regra de competência;

II - retardar ou deixar de praticar, indevidamente, ato de ofício;

Com a edição da Lei 14.230/21, a nova redação do caput do art. 10 passou a prever somente a modalidade dolosa, exigindo, ainda, que a conduta tenha ensejado efetiva e comprovadamente perda patrimonial ao erário público. A hipótese do caput do art. 11 igualmente passou a incluir ação ou omissão dolosa, enquanto os incisos I e II foram revogados:

Art. 10. Constitui ato de improbidade administrativa que causa lesão ao erário qualquer ação ou omissão dolosa, que enseje, efetiva e comprovadamente, perda patrimonial, desvio, apropriação, malbaratamento ou dilapidação dos bens ou haveres das entidades referidas no art. 1º desta Lei, e notadamente:

VIII - frustrar a licitude de processo licitatório ou de processo seletivo para celebração de parcerias com entidades sem fins lucrativos, ou dispensá-los indevidamente, acarretando perda patrimonial efetiva;

Art. 11. Constitui ato de improbidade administrativa que atenta contra os princípios da administração pública a ação ou omissão dolosa que viole os deveres de honestidade, de imparcialidade e de legalidade, caracterizada por uma das seguintes condutas:

A partir desta constatação, a sentença de improcedência baseou-se na falta de prova da perda patrimonial efetiva, nos termos já transcritos.

É de se destacar que, meses antes da edição da Lei 14.230/21, o STJ havia afetado o Tema Repetitivo 1096, com o intuito de definir se a conduta de frustrar a licitude de processo licitatório ou dispensá-lo indevidamente configura ato de improbidade que causa dano presumido ao erário (in re ipsa).

No entanto, as alterações promovidas pela lei foram de tal profundidade que, em fevereiro de 2024, a afetação foi cancelada, com o acórdão destacando ser prudente que eventual fixação de tese repetitiva sobre o tema seja realizada em recurso especial em que tenha havido ampla discussão sobre o alcance das inovações implementadas pela Lei 14.230/2021, o que não ocorreu no caso:

ADMINISTRATIVO E PROCESSUAL CIVIL. RECURSO ESPECIAL AFETADO À SISTEMÁTICA DOS RECURSOS REPETITIVOS. IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA. LICITAÇÃO. DISPENSA INDEVIDA OU FRUSTRAÇÃO DE LICITUDE. CONFIGURAÇÃO OU NÃO DE DANO PRESUMIDO AO ERÁRIO (IN RE IPSA). SUPERVENIÊNCIA DA LEI 14.230/2021, COM ALTERAÇÃO DA REDAÇÃO DO ART. 10, VIII, DA LEI 8.429/92. CANCELAMENTO DO TEMA 1.096.
1. Em julgamento finalizado em 1°/6/2021, a Primeira Seção do STJ afetou o processo ao rito dos recursos repetitivos (art. 257-C do RISTJ), para o fim de discutir a seguinte controvérsia: "Definir se a conduta de frustrar a licitude de processo licitatório ou dispensá-lo indevidamente configura ato de improbidade que causa dano presumido ao erário (in re ipsa)".
2. Após a afetação do Recurso Especial como representativo da controvérsia, sobreveio a Lei 14.230/2021, que alterou, profundamente, a Lei 8.429/92. A nova redação do art. 10, VIII, da Lei 8.429/92, resolve, aparentemente, a questão objeto da controvérsia afetada, dispondo que, para fins de configuração de improbidade administrativa, o ato deverá acarretar "perda patrimonial efetiva". Além disso, existem profundos debates sobre as questões relacionadas ao real alcance da nova redação do art. 10, VIII, da Lei 8.429/92, bem como sua eventual retroatividade, que não foram objeto de discussão nos autos.
3. Levando em consideração essa situação e o disposto nos arts. 1.036, § 6º, e 104-A, I, do RISTJ, é prudente que eventual fixação de tese repetitiva sobre o tema seja realizada em recurso especial em que tenha havido ampla discussão sobre o alcance das inovações implementadas pela Lei 14.230/2021, o que não ocorreu no caso.
4. Questão de Ordem encaminhada no sentido de propor o cancelamento do Tema 1096, com a determinação de que os Recursos Especiais afetados tenham regular processamento, assim como os casos que tiveram andamento suspenso quando da afetação do tema.
(STJ, QO no REsp n. 1.912.668/GO, relator Ministro Afrânio Vilela, Primeira Seção, julgado em 22/2/2024, DJe de 19/3/2024.)

Chama a atenção que a Corte Cidadã não optou por chancelar de imediato a mudança promovida pela nova lei que, em tese, afastaria completamente a hipótese de dano in re ipsa para a previsão do art. 10, VIII da Lei 8.429/82. No entanto, seus julgados mais recentes endossam a interpretação mais restritiva da lei, como forma se pode observar abaixo:

DIREITO ADMINISTRATIVO. RECURSO ESPECIAL. IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA. FRAUDE EM LICITAÇÃO. DANO PRESUMIDO. RETROATIVIDADE DA LEI N. 14.230/2021. RECURSO PROVIDO.
I. Caso em exame
1. Ação civil pública por ato de improbidade administrativa ajuizada pelo Ministério Público do Paraná contra réus acusados de fraudar licitação para aquisição de trator, no valor de R$ 12.000,00. O juízo de primeiro grau condenou os réus Wilson Soares da Silva e o espólio de Francisco Andreoli Gonçalves, mas afastou a condenação de Elias Demétrio da Silva.
2. O Tribunal de origem deu provimento ao recurso do Ministério Público para condenar Elias Demétrio da Silva e reconheceu a prescrição das sanções, exceto o ressarcimento ao erário, por ser imprescritível.
II. Questão em discussão
3. A questão em discussão consiste em saber se é possível a condenação por ato de improbidade administrativa, consistente em fraudar licitação, com base na presunção de dano ao erário.
4. A análise da retroatividade da Lei n. 14.230/2021, que alterou a Lei de Improbidade Administrativa, exigindo a comprovação de dano efetivo ao erário para a configuração de improbidade administrativa.
III. Razões de decidir
5. A Lei n. 14.230/2021 alterou a redação do art. 10, VIII, da Lei de Improbidade Administrativa, exigindo a comprovação de dano patrimonial efetivo para a configuração de improbidade administrativa.
6. A presunção de dano ao erário não é mais suficiente para a condenação por improbidade administrativa, sendo necessário demonstrar o dano efetivo.
7. No caso concreto, não houve comprovação de que o valor pago pelo trator foi superior ao praticado no mercado ou que a aquisição era desnecessária, afastando a possibilidade de condenação com base em dano presumido.
IV. Dispositivo e tese
8. Recurso provido para julgar improcedente a ação civil pública em relação a todos os demandados.
Tese de julgamento: "1. A condenação por improbidade administrativa exige a comprovação de dano patrimonial efetivo ao erário. 2. A presunção de dano não é suficiente para a configuração de improbidade administrativa após a Lei n. 14.230/2021".
Dispositivos relevantes citados: Lei n. 8.429/1992, art. 10, VIII;
Lei n. 14.230/2021.Jurisprudência relevante citada: STF, ARE 843.989/PR, Rel. Min. Alexandre de Moraes; STJ, AgInt no REsp 1737731/SC, Rel. Min. Gurgel de Faria.
(STJ, REsp n. 1.941.255/PR, relator Ministro Marco Aurélio Bellizze, Segunda Turma, julgado em 18/3/2025, DJEN de 25/3/2025.)

PROCESSUAL CIVIL. ADMINISTRATIVO. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA. LICITAÇÃO PÚBLICA. DISPENSA. DANO PRESUMIDO. CONSTRUÇÃO JURISPRUDENCIAL. LEI N. 14.230/2021. PREVISÃO NORMATIVA EXPRESSA. EXIGÊNCIA DE PERDA PATRIMONIAL EFETIVA. TEMA N. 1.199 DE REPERCUSSÃO GERAL DO STF. RETROATIVIDADE. ATIPICIDADE DA CONDUTA. PUNIBILIDADE EXTINTA.
I - Na origem, trata-se de ação civil pública por ato de improbidade administrativa ajuizada pelo Ministério Público Federal contra R Delgado de Medeiros ME e outros objetivando a condenação dos réus nas sanções do art. 12, II da Lei n. 8.429/1992, em razão da prática de atos de improbidade previstos no art. 10, I, V, VIII e XII da mesma lei, consistentes na realização de procedimentos de dispensa de licitação.
II - Na sentença, julgaram-se improcedentes os pedidos. No Tribunal a quo, a sentença foi mantida. Esta Corte conheceu do agravo para negar provimento ao recurso especial.
III - O recorrente sustenta violação do disposto nos arts. 10, caput, VIII, c/c o art. 11 e 12, II e III, todos da Lei n. 8.429/1992, defendendo que foi configurada a prática do ato de improbidade administrativa, ser desnecessária a demonstração do efetivo prejuízo ao erário em casos de dispensa indevida de licitação, vez que o prejuízo é presumido, bem como que ficou demonstrado o dolo na conduta dos agentes.
IV - Diante das inovações trazidas pela Lei n. 14.230/2021, deve-se analisar as regras de direito intertemporal aplicáveis no presente caso, tendo em vista que o dispositivo em exame, que se refere ao ato de frustrar a licitude de processo licitatório ou dispensá-lo indevidamente, passou a exigir, além da conduta exclusivamente dolosa, a perda patrimonial efetiva.
V - A questão jurídica, no tocante à aplicabilidade imediata da Lei n. 14.230/2021, que teve repercussão geral reconhecida pelo Supremo Tribunal Federal, o qual fixou as seguintes teses quando do julgamento do Leading Case ARE n. 843.989 (Tema n. 1.199): (i) necessidade de comprovação de responsabilidade subjetiva para a tipificação dos atos de improbidade administrativa, exigindo-se - nos arts. 9º, 10 e 11 da LIA - a presença do elemento subjetivo - dolo; (ii) A norma benéfica da Lei n. 14.230/2021 - revogação da modalidade culposa do ato de improbidade administrativa -, é irretroativa, em virtude do art. 5º, XXXVI, da Constituição Federal, não tendo incidência em relação à eficácia da coisa julgada; nem tampouco durante o processo de execução das penas e seus incidentes;
(iii) A nova Lei n. 14.230/2021 aplica-se aos atos de improbidade administrativa "culposos" praticados na vigência do texto anterior da lei, porém sem condenação transitada em julgado, em virtude da revogação expressa do texto anterior; devendo o Juízo competente analisar eventual dolo por parte do agente; (iv) irretroatividade do novo regime prescricional previsto na Lei n. 14.230/2021, aplicando-se os novos marcos temporais a partir da publicação da lei.
VI - No julgamento do Tema n. 1.199, a despeito da aplicação intertemporal das demais alterações promovidas pela novel LIA, sobretudo da expressa previsão da exigência de perda patrimonial efetiva para a configuração da dispensa indevida de licitação constante do art. 10, VIII, da Lei n. 8.429/1992 para caracterização do ato ímprobo, este não foi analisado.
VII - Alinhado ao entendimento do Supremo Tribunal Federal, esta Corte Superior tem se posicionado não só pela aplicação imediata da Lei n. 14.230/2021 aos processos em curso, sem trânsito em julgado, mas também de que o novel requisito da perda patrimonial efetiva deve ser imediatamente aplicado nos processos em curso, destacando que o entendimento anterior acerca da possibilidade de condenação com base no dano presumido tratava-se de construção jurisprudencial que passou a se incompatibilizar com a nova lei. Veja-se a ementa do julgado desta Corte Superior: (REsp n. 1.929.685/TO, relator Ministro Gurgel de Faria, Primeira Turma, julgado em 27/8/2024, DJe de 2/9/2024.)
VIII - O novo requisito da perda patrimonial efetiva para que se caracterize a frustração da licitude de processo licitatório como ato que causa lesão ao erário, nos moldes da Lei n. 14.230/2021, propicia a sua imediata aplicação aos atos praticados na vigência do texto anterior da lei, desde que sem condenação com trânsito em julgado.
IX - O ato imputado a parte ora recorrida pela prática de ato de improbidade administrativa está tipificado no art. 10, caput, I, V, VIII e XII da LIA, em sua redação original. No entanto, no decorrer do trâmite processual, conforme acima referido, a lei de regência sofreu significativas alterações pela Lei n. 14.230/2021, razão pela qual o presente recurso deve ser examinado sob esta nova perspectiva.
X - Considerando as alterações trazidas pela Lei n. 14.230/2021, bem como que, nos casos sem condenação transitada em julgado, estas devem ter sua aplicação imediata aos atos praticados na vigência do texto anterior, reconhecendo fato superveniente consubstanciado na alteração normativa que excluiu do mundo jurídico a hipótese típico-normativa que incidia a conduta dos réus, tem-se que deve ser reconhecida a atipicidade superveniente da conduta ímproba imputada pelo Ministério Público Federal, ora recorrente, à parte recorrida.
XI - Nesse mesmo sentido decidiu a Segunda Turma desta Corte Superior no julgamento do AREsp n. 2.102.066/SP, da relatoria do Ministro Teodoro Silva Santos.
XII - Ainda que ultrapassados referidos óbices, a insurgência não era mesmo de ser conhecida, porque para se chegar em uma conclusão diversa da que chegou o Tribunal a quo, demandaria alteração das premissas fático-probatórias estabelecidas pelo acórdão recorrido, com o revolvimento das provas carreadas aos autos, em se tratando de providência vedada em recurso especial, consoante enunciado da Súmula n. 7 do STJ.
XIII - Agravo interno improvido.
(STJ, AgInt no AREsp n. 1.568.466/RN, relator Ministro Francisco Falcão, Segunda Turma, julgado em 12/3/2025, DJEN de 18/3/2025.)

O caso dos autos, por outro lado, demanda análise mais detida.

É de rigor salientar que a conduta da corré KARINA ALVES DE ALMEIDA sugere a incidência de uma série de vedações previstas pela Lei 8.112/92, que regula direitos e deveres dos servidores públicos:

Art. 117.  Ao servidor é proibido:    

IX - valer-se do cargo para lograr proveito pessoal ou de outrem, em detrimento da dignidade da função pública;

X - participar de gerência ou administração de sociedade privada, personificada ou não personificada, exercer o comércio, exceto na qualidade de acionista, cotista ou comanditário; (Redação dada pela Lei nº 11.784, de 2008)

XI - atuar, como procurador ou intermediário, junto a repartições públicas, salvo quando se tratar de benefícios previdenciários ou assistenciais de parentes até o segundo grau, e de cônjuge ou companheiro;

XII - receber propina, comissão, presente ou vantagem de qualquer espécie, em razão de suas atribuições;

XVIII - exercer quaisquer atividades que sejam incompatíveis com o exercício do cargo ou função e com o horário de trabalho;

É incontroverso nos autos que a corré KARINA era representante da KMD ASSESSORIA, o que torna inequívoca a incidência da hipótese do art. 117, X da Lei 8.112/92. Ocorre que as mesmas condutas apontam não apenas para a infração disciplinar, mas poderiam indicar a incidência de outra hipótese da Lei de Improbidade Administrativa, prevista em seu art. 9º, VIII:

Art. 9º Constitui ato de improbidade administrativa importando em enriquecimento ilícito auferir, mediante a prática de ato doloso, qualquer tipo de vantagem patrimonial indevida em razão do exercício de cargo, de mandato, de função, de emprego ou de atividade nas entidades referidas no art. 1º desta Lei, e notadamente: (Redação dada pela Lei nº 14.230, de 2021)

VIII - aceitar emprego, comissão ou exercer atividade de consultoria ou assessoramento para pessoa física ou jurídica que tenha interesse suscetível de ser atingido ou amparado por ação ou omissão decorrente das atribuições do agente público, durante a atividade;

É de se destacar que a opção do MPF por oferecer a ação com fundamento no art. 10, VIII da Lei 8.429/92 faz mais sentido sob a ótica de sua redação original, uma vez que a jurisprudência considerava que fraude em licitação configuraria dano in re ipsa, que seria mais eficiente para a condenação em tese de todos corréus indicados na inicial.

O Parquet não poderia antever as profundas alterações legislativas, que não apenas extinguiram a hipótese de ato ímprobo culposo, como também passaram a exigir a comprovação de perda patrimonial efetiva nas hipóteses do art. 10 da LIA. Não suficiente, a nova lei prevê rol taxativo para as hipóteses do art. 11 da LIA.

É de se ressaltar que o art. 11 da LIA, não raramente, é considerado como aquele que abarca situações residuais e potencialmente menos graves que as hipóteses dos dois artigos antecedentes, uma vez que trata dos atos ímprobos que atentam contra os princípios da Administração Pública. Em sua redação original previam um rol de hipóteses meramente exemplificativo, por meio de tipos abertos.

Todavia, a Lei 14.230/21 alterou o art. 11 da Lei 8.429/92, que passou a prever o que seria um rol taxativo de atos ímprobos que violam os princípios da Administração Pública, revogando seus incisos I (“praticar ato visando fim proibido em lei ou regulamento ou diverso daquele previsto, na regra de competência”) e II (“retardar ou deixar de praticar, indevidamente, ato de ofício”). Tais alterações ainda terão sua constitucionalidade analisada no âmbito da ADI 7236.

Ocorre que, como vem defendendo o MPF, há inúmeras hipóteses, de impossível previsão exaustiva, que mesmo sem provocar dano ao erário ou enriquecimento ilícito, não se enquadram nos incisos remanescentes do dispositivo, apesar de representarem violação a princípios que regem a Administração Pública, além de serem de todo incompatíveis com a conduta ética e proba que se espera dos agentes públicos. 

Aventa-se, a título de exemplo, que casos de tortura ou assédio sexual, praticados por agentes públicos no exercício de suas funções, não mais configurariam ato de improbidade administrativa, simplesmente por não mais encontrarem enquadramento no art. 11, da Lei 8.429/92, caso seu rol seja considerado como taxativo. 

No caso dos autos, a atuação de corré KARINA ALVES DE ALMEIDA, considerando que era contadora do município e representante KMD ASSESSORIA, assim como a de DENIS DA MAIA, representante da empresa corré QUALITY SISTEMAS, indicam inequívoca atuação em conluio, como reconheceu a sentença, identificando o ilícito administrativo, sem, porém, concluir pela existência de ato ímprobo. 

Salienta-se que, como já apontado, as empresas eram parceiras e funcionavam no mesmo local. E, embora atuando como representante comercial da empresa QUALITY SISTEMAS, a empresa KMD ASSESSORIA, inexplicavelmente, apresentou proposta menor do que a daquela empresa, sagrando-se, por isso, vencedora do certame. 

Verifica-se que houve direcionamento pela escolha seletiva de convidados, com a convocação de empresas com vínculos pessoais e/ou profissionais com agentes públicos responsáveis pelo certame. 

A responsabilidade inclui o ex-prefeito TEÓPHILO BARBOZA MASSI, bem como MICHAEL CHEISY NANTES STEIN, então presidente da comissão de licitação do município. Ressalva-se, contudo, que não há elementos suficientes para comprovar a participação dolosa de MILTON SOUTO DE ARAÚJO NETO, representante da RCM INFORMÁTICA, para configurar os ilícitos em comento.

Quando à prova do dano efetivo, de fato, não há nos autos parâmetros objetivos para mensurar a perda patrimonial do Município, mas apenas se o dano for considerado como a diferença entre o hipotético preço praticado em condições regulares e aquele efetivamente praticado em circunstâncias ilícitas. Destaca-se que a prova envolvendo valores hipotéticos não é trivial, já que nem sempre é possível encontrar outros Municípios com as mesmas particularidades humanas e geográficas que permitam uma comparação de valores para serviços semelhantes.

Ocorre que, como defende o MPF, a gravidade das condutas cominaria de nulidade o contrato pelos parâmetros da própria Lei 8.666/93, o que indica que o dano, em verdade, poderia abranger toda a extensão dos valores praticados, conforme parâmetros do art. 49 e art. 59 da Lei de Licitações então vigente, além de ofender princípios administrativos e vedações expressar contidas no art. 3º, caput e inciso I do mesmo diploma legal. Esta, no entanto, não tem sido a interpretação adotada pelo STJ para efeitos de aplicação do art. 10, VIII da Lei 8.429/92.

A sentença ora impugnada não se submete a reexame necessário, nos termos do art. 17, § 19, IV e art. 17-C, § 3º, da LIA. Considerando os termos das apelações do MPF e da União, não se cogita da possibilidade de reforma da sentença para condenar os corréus com fundamento no art. 9º, VIII da LIA.

Cumpre destacar, todavia, que no julgamento do Tema 1.199, ao ponderar a respeito da prova do elemento subjetivo, o STF ressalvou a possibilidade de responsabilização disciplinar e condenação ao ressarcimento do dano, mesmo quando o ato ilícito não chega a configurar ato de improbidade administrativa, como se pode verificar no inteiro teor do voto do relator:

Em hipóteses nas quais a conduta imputada ao agente é realizada de maneira objetiva, sem comprovação de mera participação do agente público ou de terceiro, ou mesmo de parcela de sua responsabilidade – impedindo-se, dessa maneira, inclusive a possibilidade do exercício da ampla defesa – resultando patente a ausência do elemento subjetivo do tipo (dolo), não se poderá afirmar que a conduta do agente público foi direcionada para a corrupção, estando descaracterizado o ato de improbidade administrativa, e, consequentemente, a aplicação das sanções estabelecidas na Lei 8.429/1992; independentemente da possibilidade de eventual ressarcimento do dano, por outras vias, ou mesmo responsabilidade disciplinar.
(...)

Nesse sentido, o Ministro MAURO CAMPBELL MARQUES, presidente da Comissão de Juristas que elaborou o anteprojeto, expôs que:

“A modalidade culposa do ato de improbidade administrativa lesivo ao erário, previsto no art. 10 na redação atual da LIA, foi suprimida na proposta da reforma. Tal opção partiu da premissa, conforme exposto na justificativa do projeto, de que não seria “dogmaticamente razoável compreender como ato de improbidade o equívoco, o erro ou a omissão decorrente de uma negligência, uma imprudência ou uma imperícia”, bem como explicitou que “evidentemente tais situações não deixam de poder se caracterizar como ilícito administrativos que submetem a sanções daquela natureza e, acaso haja danos ao erário, às consequências da lei civil quanto a ressarcimento” (Breves Considerações sobre o Anteprojeto de Reforma da Lei de Improbidade Administrativa: A proposta da Comissão de Juristas Nomeada pela Câmara dos Deputados. Edição Comemorativa. 30 ANOS DO STJ. Superior Tribunal de Justiça).

O alerta feito pelo Ministro MAURO CAMPBELL MARQUES é importante, para deixar claro que a revogação da modalidade culposa do ato de improbidade administrativa não afasta a possibilidade de responsabilização do agente por atos ilícitos administrativos e suas respectivas sanções, bem como pelo eventual ressarcimento ao erário.

À partir da edição da nova Lei 14.230/2021, portanto, o agente público que, culposamente, causar dano ao erário poderá responder civil e administrativamente por ato ilícito, porém não mais por ato de improbidade administrativa; nos termos, inclusive, do artigo 28 da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (LINDB), que dispõe que “o agente público responderá pessoalmente por suas decisões ou opiniões técnicas em caso de dolo ou erro grosseiro”.

Essa previsão foi regulamentada pelo Decreto 9.830/2019 que, no art. 12, § 1º, conceitua “erro grosseiro” como culpa grave caracterizada por extremo grau de negligência, imprudência ou imperícia, nesses termos:

“Art. 12. O agente público somente poderá ser responsabilizado por suas decisões ou opiniões técnicas se agir ou se omitir com dolo, direto ou eventual, ou cometer erro grosseiro, no desempenho de suas funções.

§ 1º Considera-se erro grosseiro aquele manifesto, evidente e inescusável praticado com culpa grave, caracterizado por ação ou omissão com elevado grau de negligência, imprudência ou imperícia.”

Desta feita, é se destacar que a não caracterização da conduta como ato de improbidade administrativa limita sensivelmente a aplicação do extenso rol de sanções previstos no art. 12 da LIA. Na hipótese dos autos, porém, independentemente do juízo a respeito da configuração ou não do ato ímprobo, a conduta de parte dos corréus é suficiente para justificar sanções pelo ilícito administrativo.

Por esta razão, o dever de ressarcir pode ser aplicado com fundamento no art. 28 da LINDB (Lei 4.657/42, com a redação da Lei 13.655/2018), no art. 12, caput e § 1º do Decreto 9.830/2019, e também no art. 186 e art. 927 do CC, com espeque processual no teor do art. 17, § 16, da Lei 8.429/92 (na redação da Lei 14.230/21). Circunstâncias que afastam a incidência do art. 3º, § 2º da LIA, não havendo notícia de ressarcimento efetivado pelas partes pelo ilícito administrativo.

Ante o exposto,  dou parcial provimento à apelação do MPF e da União para condenar solidariamente os corréus TEÓPHILO BARBOZA MASSI, MICHAEL CHEISY NANTES STEIN, KARINA ALVES DE ALMEIDA, KMD ASSESSORIA, DENIS DA MAIA, QUALITY SISTEMAS a ressarcir ao municípios os valores pagos em decorrência da Carta-convite 005/2009, devidamente corrigidos nos termos do Manual de Cálculos da Justiça Federal, na forma da fundamentação acima.

É o voto.



E M E N T A


APELAÇÃO EM AÇÃO CIVIL PÚBLICA POR ATO DE IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA. FRUSTRAR LICITUDE DE PROCEDIMENTO LICITATÓRIO. ALTERAÇÕES DA LEI 14.230/2021. DANO IN RE IPSA AFASTADO PARA CONFIGURAÇÃO DE ATO ÍMPROBO. PERDA PATRIMONIAL EFETIVA NÃO COMPROVADA. ILÍCITO ADMINISTRATIVO COMPROVADO. DEVER DE RESSARCIR. APELAÇÕES PARCIALMENTE PROVIDAS.
1) Os fatos que provocaram o ajuizamento da ação se deram sob a égide da Lei 8.429/92 e da Lei 8.666/93. No curso da ação, porém, sobreveio a aprovação da Lei 14.230/21, que promoveu alterações sensíveis na redação da Lei de Improbidade Administrativa de 1992. De particular relevância para a presente ação é o teor das teses fixadas pelo STF no julgamento do Tema 1199, após se debruçar sobre a extinção da modalidade culposa nos atos de improbidade administrativa, e sobre o regime de prescrição aprovado pela nova LIA.
2) Os atos ímprobos imputados aos réus pelo MPF na inicial estão descritos no art. 10, VIII e art. 11,  I e II, da Lei 8.429/92. Com a edição da Lei 14.230/21, a nova redação do caput do art. 10 passou a prever somente a modalidade dolosa, exigindo, ainda, que a conduta tenha ensejado efetiva e comprovadamente perda patrimonial ao erário público.
A hipótese do caput do art. 11 igualmente passou a incluir ação ou omissão dolosa, enquanto os incisos I e II foram revogados. A partir desta constatação, a sentença de improcedência baseou-se na falta de prova da perda patrimonial efetiva.
3) Meses antes da edição da Lei 14.230/21, o STJ havia afetado o Tema Repetitivo 1096, com o intuito de definir se a conduta de frustrar a licitude de processo licitatório ou dispensá-lo indevidamente configura ato de improbidade que causa dano presumido ao erário (in re ipsa). No entanto, as alterações promovidas pela lei foram de tal profundidade que, em fevereiro de 2024, a afetação foi cancelada e seus julgados mais recentes endossam a interpretação mais restritiva da lei.
4) O caso dos autos, por outro lado, demanda análise mais detida. É de rigor salientar que a conduta da corré KARINA ALVES DE ALMEIDA sugere a incidência de uma série de vedações previstas pela Lei 8.112/92, que regula direitos e deveres dos servidores públicos. É incontroverso nos autos que a corré KARINA era representante da KMD ASSESSORIA, o que torna inequívoca a incidência da hipótese do art. 117, X da Lei 8.112/92.
5)
Ocorre que as mesmas condutas apontam não apenas para a infração disciplinar, mas também poderiam indicar a incidência de outra hipótese da Lei de Improbidade Administrativa, prevista em seu art. 9º, VIII. A atuação de corré KARINA ALVES DE ALMEIDA, considerando que era contadora do município e representante KMD ASSESSORIA, assim como a de DENIS DA MAIA, representante da empresa corré QUALITY SISTEMAS, indicam inequívoca atuação em conluio, como reconheceu a sentença, identificando o ilícito administrativo, sem, porém, concluir pela existência de ato ímprobo.
6) As empresas eram parceiras e funcionavam no mesmo local. E, embora atuando como representante comercial da empresa QUALITY SISTEMAS, a empresa KMD ASSESSORIA, inexplicavelmente, apresentou proposta menor do que a daquela empresa, sagrando-se, por isso, vencedora do certame.
7) Verifica-se que houve direcionamento pela escolha seletiva de convidados, com a convocação de empresas com vínculos pessoais e/ou profissionais com agentes públicos responsáveis pelo certame. A responsabilidade inclui o ex-prefeito TEÓPHILO BARBOZA MASSI, bem como MICHAEL CHEISY NANTES STEIN, então presidente da comissão de licitação do município. Ressalva-se, contudo, que não há elementos suficientes para comprovar a participação dolosa de MILTON SOUTO DE ARAÚJO NETO, representante da RCM INFORMÁTICA, para configurar os ilícitos em comento.
8) Quando à prova do dano efetivo, não há nos autos parâmetros objetivos para mensurar a perda patrimonial do Município, mas apenas se o dano for considerado como a diferença entre o hipotético preço praticado em condições regulares e aquele efetivamente praticado em circunstâncias ilícitas. Destaca-se que a prova envolvendo valores hipotéticos não é trivial, já que nem sempre é possível encontrar outros Municípios com as mesmas particularidades humanas e geográficas que permitam uma comparação de valores para serviços semelhantes.
9) Ocorre que, como defende o MPF, a gravidade das condutas cominaria de nulidade o contrato pelos parâmetros da própria Lei 8.666/93, o que indica que o dano, em verdade, poderia abranger toda a extensão dos valores praticados, conforme parâmetros do art. 49 e art. 59 da Lei de Licitações então vigente, além de ofender princípios administrativos e vedações expressar contidas no art. 3º, caput e inciso I do mesmo diploma legal. Esta, no entanto, não tem sido a interpretação adotada pelo STJ para efeitos de aplicação do art. 10, VIII da Lei 8.429/92.
10) A sentença ora impugnada não se submete a reexame necessário, nos termos do
art. 17, § 19, IV e art. 17-C, § 3º, da LIA. Considerando os termos das apelações do MPF e da União, não se cogita da possibilidade de reforma da sentença para condenar os corréus com fundamento no art. 9º, VIII da LIA.
11) Cumpre destacar, todavia, que no julgamento do Tema 1.199, ao ponderar a respeito da prova do elemento subjetivo, o STF ressalvou a possibilidade de responsabilização disciplinar e condenação ao ressarcimento do dano, mesmo quando o ato ilícito não chega a configurar ato de improbidade administrativa.
12) Por esta razão, o dever de ressarcir pode ser aplicado com fundamento no art. 28 da LINDB (Lei 4.657/42, com a redação da Lei 13.655/2018), no art. 12, caput e § 1º do Decreto 9.830/2019, e também no art. 186 e art. 927 do CC,
com espeque processual no teor do art. 17, § 16, da Lei 8.429/92 (na redação da Lei 14.230/21). Circunstâncias que afastam a incidência do art. 3º, § 2º da LIA, não havendo notícia de ressarcimento efetivado pelas partes pelo ilícito administrativo.
13) Apelações parcialmente providas para condenar solidariamente os corréus TEÓPHILO BARBOZA MASSI, MICHAEL CHEISY NANTES STEIN, KARINA ALVES DE ALMEIDA, KMD ASSESSORIA,
DENIS DA MAIA, QUALITY SISTEMAS a ressarcir ao municípios os valores pagos em decorrência da Carta-convite 005/2009, devidamente corrigidos nos termos do Manual de Cálculos da Justiça Federal.


  ACÓRDÃO

Vistos e relatados estes autos em que são partes as acima indicadas, a Sexta Turma, por unanimidade, deu parcial provimento à apelação do MPF e da União para condenar solidariamente os corréus TEÓPHILO BARBOZA MASSI, MICHAEL CHEISY NANTES STEIN, KARINA ALVES DE ALMEIDA, KMD ASSESSORIA, DENIS DA MAIA, QUALITY SISTEMAS a ressarcir ao município os valores pagos em decorrência da Carta-convite 005/2009, devidamente corrigidos nos termos do Manual de Cálculos da Justiça Federal. Lavrará o acórdão o Juiz Federal Convocado Ricardo China, nos termos do relatório e voto que ficam fazendo parte integrante do presente julgado.
RICARDO GONCALVES DE CASTRO CHINA
Juiz Federal