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Diário Eletrônico

DIÁRIO ELETRÔNICO DA JUSTIÇA FEDERAL DA 3ª REGIÃO
Edição nº 42/2013 - São Paulo, terça-feira, 05 de março de 2013

TRIBUNAL REGIONAL FEDERAL DA 3ª REGIÃO


PUBLICAÇÕES JUDICIAIS I – TRF


Subsecretaria da 5ª Turma


Acórdão 8573/2013


APELAÇÃO CÍVEL Nº 0011984-96.2003.4.03.6000/MS
2003.60.00.011984-2/MS
RELATORA : Desembargadora Federal RAMZA TARTUCE
APELANTE : TALES OSCAR CASTELO BRANCO
ADVOGADO : TIAGO BANA FRANCO e outro
APELADO : Uniao Federal
ADVOGADO : GUSTAVO HENRIQUE PINHEIRO DE AMORIM
APELADO : Fundacao Nacional do Indio FUNAI
ADVOGADO : ADRIANA ROCHA DE OLIVEIRA
APELADO : Ministerio Publico Federal
PROCURADOR : FELIPE FRITZ BRAGA
No. ORIG. : 00119849620034036000 4 Vr CAMPO GRANDE/MS
EMENTA
CONSTITUCIONAL. AÇÃO DECLARATÓRIA. TERRAS INDIGENAS. POSSE IMEMORIAL E PERMANENTE DOS ÍNDIOS DA ETNIA TERENA. ART. 231 E PARÁGRAFOS DA CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA. PERICIA JUDICIAL ANTROPOLOGICA QUE CONSIDEROU PARTE DAS TERRAS QUE COMPÕEM A FAZENDA SANTA BARBARA COMO TRADICIONAMENTE OCUPADAS PELOS ÍNDIOS DA RESERVA LIMÃO VERDE/CORREGO SECO SITUADA NO MUNICIPIO DE AQUIDAUANA (MS). INDEFERIMENTO DO PEDIDO DE ESCAVAÇÃO DO LOCAL APONTADO COMO CEMITÉRIO INDIGENA. PRECLUSÃO. AUSÊNCIA DE PREJUÍZO. AGRAVO RETIDO CONHECIDO E DESPROVIDO. APELAÇÃO DESPROVIDA. SENTENÇA MANTIDA.
1.Agravo interposto na forma retida conhecido, pois presente o pressuposto de admissibilidade previsto no art. 523 do Código de Processo Civil.
2. Tendo em vista que o autor deixou de pleitear a realização de escavação do local apontado como cemitério indígena no momento oportuno, uma vez que a questão relativa à existência do aludido cemitério já havia sido noticiada nos autos em momento anterior à realização da inspeção judicial, correta a decisão agravada que indeferiu o pleito pela ocorrência da preclusão.
3. O juiz é o destinatário das provas e a ele cabe o exame de sua pertinência com liberdade de convencimento, nos termos dos arts. 130 e 131, ambos do Código de Processo Civil.
4. Assim, se o Juízo a quo entendesse necessária a aludida escavação teria ele ordenado a produção desta prova de ofício, assim como fez, por considerar pertinente e necessária, a inspeção judicial na área objeto da lide.
5. Na hipótese, o indeferimento na produção de referida prova não se constituiu em cerceamento de defesa ou prejuízo ao agravante.
6. Isto porque o magistrado de primeiro grau, em suas razões de decidir, sequer levou em consideração as declarações do índio Juventino no sentido que há um cemitério indígena nas dependências da área litigiosa.
7. Inexiste qualquer irregularidade na decisão impugnada e as provas produzidas nestes autos são suficientes para o deslinde da controvérsia.
8. Os índios encontravam-se na área do Limão Verde desde o término da Guerra do Paraguai, entretendo relações com os "brasileiros" que, a partir de um determinado momento histórico, abalançaram-se a fundar a cidade de Aquidauana mediante a aquisição de um título de posse pertencente a João Dias, a respeito de quem, a rigor, pouco se noticiou nos autos. Mas a transmissão jurídica desses títulos, que na sua origem alcançava não somente a área do Limão Verde mas também da própria Fazenda Amambaí (essa afirmação é feita com insegurança: os títulos avoengos não permitem uma identificação precisa da área, afora a modificação da denominação dos acidentes geográficos, especialmente os morros) não afetava a subsistência da comunidade indígena naquela mesma região, precedentemente ali instalada, a usufruir dos recursos naturais segundo suas tradições. É o que se pode inferir, à luz do que há de prova nos autos.
9. Rondon percorreu a região entre 1904-1928 (fl. 163), demarcando certas áreas. Em 1920, o Limão Verde é mencionado pela primeira vez pelo Serviço de Proteção ao Índio (fl. 1.044v.), correspondendo ao ano em que supostamente Lutuma e sua família teria se movido para a região das furnas (fl. 1.066v.). Em 1921, outro relatório do Serviço de Proteção ao Índio faz referência ao Limão Verde (fl. 1.087) e, em 1924, sobrevém um relatório elaborado por Roberto Santos Wernek, também daquele Serviço de Proteção, segundo o qual o Intendente e o Vice-Intendente de Aquidauana, principalmente aquele, "garantiu com toda a certeza serem os terrenos ali, demarcados para os índios que os ocupam".
10. Em 1927, outro relatório refere-se ao Limão Verde (fl. 1.087). Mas é em 1947 que Enoch Alvarenga Soares, tido como abnegado indigenista pela Funai (fl. 175) elabora outro relatório sobremodo eloquente a respeito do assunto: (...)sofrimentos que há muito vem suportando por parte dos indivíduos civilizados intrusos que já conquistaram quase todas as suas terras e ainda procurando fazer toda sorte de maldades com suas criações e plantações (...).
11. Em 1966, os próprios índios enviam missiva ao Ministério da Agricultura, Serviço de Proteção aos Índios, para solicitar a demarcação das terras a que eles têm direito e qual foi solicitada pelo Serviço de Proteção aos Índios no dia 14 de fevereiro daquele ano.
12. O Delegado da Funai em Campo Grande, no ano de 1970, simplesmente, adulterou tal Decreto para que a Limão Verde viesse a ser destinada aos índios. Esse fato foi apurado pela própria Funai dois anos depois (fl. 179) e, aparentemente, não teve maiores consequências (tanto assim que, malgrado sua primitiva destinação, a legislação municipal ali criou a Colônia XV de Agosto).
13. A adulteração do Decreto n. 798/28 é criticável e não pode ser empregada para o efeito de comprovar, justificar ou fundamentar a pretensão indígena.
14. Mas também não resulta na solução inversa, isto é, de que todo o procedimento não passa de estratégia algo fraudulenta para coonestar a posse indígena às expensas da posse legitimamente titulada.
15. Ainda em 1970 um outro fato singular ocorreu que, parece, não mereceu muita atenção das partes: Jair de Oliveira, um vereador Terena, apresentou um requerimento à Câmara Municipal para que as terras do Limão Verde fossem demarcadas como terras indígenas, em conformidade com o memorial constante do citado Decreto n. 798/28. Esse requerimento foi aprovado por unanimidade em sessão ordinária, comunicando-se ao Presidente da Funai pelo Ofício n. 13, de 25 de agosto de 1970 (fl. 178).
16. O Decreto Legislativo n. 2.029, de 12 de novembro de 1971, autorizou o Poder Executivo a doar ao Município de Aquidauana, para colonização, a área de 2.000 hectares do Limão Verde "entre o Morro do Amparo e o ribeirão João Dias". Em consequência, a Câmara Municipal, pela Lei n. 650, de 21 de dezembro de 1971, autorizou o Poder Executivo a doar à Funai 1.238 hectares, conforme veio a ser escriturado pela Municipalidade em 26 de fevereiro de 1973 (fl. 179).
17. Pelo Autógrafo de Lei n. 27, de 27 de dezembro de 1972, a Lei n. 650/72 teve sua aplicação condicionada à "transferência e localização pela FUNAI de todos os indígenas residentes na região do Limão Verde na área a ser doada" (fl. 180).
18. Dito de outro modo: os indígenas que, escusado dizer, estavam a ocupar uma área maior, mas em conformidade com seu modus característicos, deveriam concentrar-se na área cedida pela Prefeitura, sob pena de não terem nenhuma propriedade.
19. Essa remoção "patrocinada" pela Funai mediante a edição das "Normas padrão de ação a ser executada na Aldeia Limão Verde na movimentação dos índios para dentro de suas terras" (fl. 180) não implica uma abdicação a quaisquer direitos que os índios possam ter sobre outras terras. Não se pode dizer, sem nenhum desconto, que os índios "voluntariamente" deixaram as terras que ocupavam até então. Tanto isso é correto que a própria Funai, poucos anos depois, em 1978, acaba por finalizar um processo de compra de terras particulares justamente para devolver aos índios as terras dos quais necessitavam (fl. 182).
20. A posse indígena sobre o Limão Verde, como visto, remonta a um período histórico logo posterior à Guerra do Paraguai, sobrevindo sucessivas queixas de que estariam sendo "envolvidas" por "intrusos" e "conquistadores", sem embargo da relação algo "simbiótica" que com esses mesmos "conquistadores" os Terenas, por suas características, interagem. A doação de terras municipais e a aquisição de terras particulares não elimina o conflito entre os índios e os "fazendeiros" "envolventes", dos quais não se pode afirmar, sem nenhuma cautela, que estejam imunes à eventual prática de esbulho.
21. O que se verifica é a pertinácia da comunidade indígena na reivindicação de seus direitos: em 1982, o cacique Amâncio Gabriel dirigiu-se por carta à Presidência da Funai, reclamando "da exiguidade da área, das invasões de fazendeiros e solicitando uma equipe para proceder ao levantamento da terra reivindicada" (fl. 184). Mais uma vez, em 1984, aquele cacique e outros índios aproveitaram a visita do então recém empossado presidente da Funai e redigiram, "rápida e improvisadamente numa folha de caderno, uma carta ao mandatário do órgão, datada de 14 de junho daquele ano, solicitando priorizar o atendimento de suas reivindicações, diante da progressiva premência de suas necessidades" (fl. 184). Em resposta, foi depois constituída equipe para proceder ao levantamento fundiário nos termos do Decreto n. 88.118/83, então em vigor, pela Portaria n. 1.688/E, de 16 de agosto de 1984. Contudo, esse trabalho restou prejudicado em virtude da "incerteza, indefinição e desorganização de toda a documentação fundiária  local conforme constatado pela própria prefeitura que reconheceu a impossibilidade de mudanças a curto prazo" (fl. 184). Mas os índios perseveraram e, em 1989, a então Superintendência de Assuntos Fundiários - SUAF (depois, DAF), após recebê-los e ouvi-los mais demoradamente decidiu que o TERRASUL faria um estudo mais informativo possível sobre a situação fundiária de todas as terras correspondentes à área indígena e ao entorno reivindicado (fls. 184/185).
22. O relato até aqui, apesar das lacunas e imprecisões das quais certamente padece, descreve a continuidade da posse indígena sobre o que se convencionou chamar de Limão Verde, sendo que essa posse inicia-se no período subsequente à Guerra do Paraguai, portanto anteriormente à fundação de Aquidauana, até chegar a 1988, quando entrou em vigor a atual Constituição da República. Ainda que nesse interregno tenha sido doado uma parcela de terras e outra sido adquirida, verifica-se a subsistência do conflito entre a comunidade indígena e os "fazendeiros" que em algum momento adquiriram títulos, pelos quais se abalançaram a explorar parcelas que, em princípio, caberiam os índios, primitivos "posseiros".
23. O processo de legitimação das terras da Fazenda Amambaí principia em 1898, pois a partir de então, segundo os proprietários alegavam, teria sido legalizada a posse. No entanto, o fato é que, conforme indicado pelo Perito Oficial, o termo de venda de terras devolutas, compradas ao Estado por João de Almeida Castro é datado de 1914 (fl. 1.090v.), mesmo assim com a ressalva de que ficaria "sem efeito a venda (...) se se verificar estar compreendido (o lote) em zona de dez quilômetros para cada lado, digo de terras reservadas pelo Governo (...)" (fl. 1.091).
24. É nesse contexto que o Engenheiro Camillo Boni procede à demarcação da Fazenda Amambaí, em 1953, cujo memorial serviria de base para a emissão do respectivo título pelo Departamento de Terras em 1960, do qual, importante destacar, ressalta a falta de marcos testemunha, insegurança, induzindo aquele profissional a caminhar pela fralda do Amambaí até a queda do córrego João Dias.
25. A Prefeitura Municipal de Aquidauana, desde a fundação da cidade, tende a incluí-la nos seus domínios, como decorre tanto do ato de compra quanto do decreto segundo o qual ficam declaradas as suas áreas. Por outro lado, não se abstém de considerá-las como terras devolutas, e portanto pertencentes ao Estado, o que motivou a autorização para que o Intendente obtivesse, junto ao Governador, a respectiva cessão para a instalação de um sistema de captação de água para a população. Instalado esse sistema em 1935 (fl. 1.087), remanesce o interesse da Municipalidade, já agora com vistas à criação de uma colônia mediante a distribuição de títulos para pequenos proprietários. Esse desiderato, contudo, esbarra na existência de índios naquelas mesmas terras, tanto assim que consideradas devolutas. A circunstância de indígenas habitarem naquela região era não somente do conhecimento da Municipalidade, mas também de motivo para que fosse a posse indígena "regularizada". É nesse sentido que se deve compreender a iniciativa do vereador Jair de Oliveira, a saber, de que o Limão Verde, simplesmente, fosse demarcado como terra indígena. Ainda que isso não tenha sucedido, de qualquer modo os índios receberam uma parcela de terras, inferior àquela passível de demarcação (observada a tradicionalidade). Por outro lado, as terras da Fazenda Santa Bárbara, na medida em que  são limítrofes ao Limão Verde, acabam por envolver-se no mesmo problema de sobreposição de títulos, vale dizer, em que medida aqueles títulos que estão na base da cadeia dominial, a principiar pelo Lote Amambaí, depois Fazenda Amambaí, também não incidem, pelo menos em parte, naquela mesma área.
26. Lioni de Souza Figueiredo, Engenheiro Agrimensor, chegou a ser ouvido como testemunha, esclarecendo que a Fazenda Santa Bárbara situa-se na parte de cima, enquanto que a Colônia XV de Agosto situa-se na parte de baixo, ambos separados pelo paredão da Serra de Santa Bárbara (fl. 1942).
27. Observando-se as imagens de satélite que foram anexadas aos autos com o parecer técnico realizado em virtude da inspeção judicial (fls. 2.081/2.085), além da planta da área demarcada (fl. 2.080), constata-se que a Fazenda Santa Bárbara, por assim dizer, faz como que um "recorte" no interior da área demarcada. Apesar de o citado Engenheiro Agrimensor explicar esse "recorte" pelo acidente geográfico (paredão da Serra de Santa Bárbara), separando-se assim uma parte "alta", pertencente à propriedade privada, e outra "baixa", que caberia aos indígenas, o certo é que essa distinção remonta à demarcação do Engenheiro Camillo Boni, feita em 1953: a circunstância de que esse profissional viu-se na contingência de prosseguir pela "frauda" (sic, fl. 1.091v.) até a "queda do Córrego Limão Verde" (fl. 1.091v.).
28. Ainda que as declarações de Juventino não sejam admitidas, nem por isso fica destituída a pretensão indígena concernente à cabeceira do córrego João Dias. Tudo leva a crer que, realmente, havia índios naquela região, em um processo de interação com a comunidade restante Terena, dispersa em diversos pontos do Limão Verde, tanto assim que foi imperioso editar normas específicas para sua concentração na área objeto de doação pela Municipalidade. Dado que o córrego João Dias é fundamental para a comunidade, não se compreenderia, do ponto de vista das relações propriamente antropológicas dessa comunidade, que excluiriam, exatamente, a cabeceira desse mesmo córrego.
29. Apesar de Isac confirmar que Juventino não nascera na Amambaí, ressaltou que os índios por ali andavam, o que não deixa de ser confirmado pelas informações fornecidas por Ênio Cabral, independentemente de como se possa predicar "rancharia" (ponto de ocupação, habitação de empregados da fazenda etc.). O fato inconteste é que, no âmbito do Limão Verde, era usual a contratação de mão-de-obra indígena (tanto assim que tal é de certo modo um fundamento contrário à sua pretensão) e, se havia ali uma "rancharia", não faz sentido supor que os índios dela não se serviam.
30. Nem por isso converte-se relação de trabalho com relação de posse, como pretende o Assistente Técnico. Como visto acima, é da natureza dos Terenas manter uma relação de simbiose com outros grupos dominantes, realizando-se um processo de troca (paz por alimentos). Assim, releva o fato de os índios Terena terem chegado ao Limão Verde antes que os fazendeiros propriamente ditos, os quais ao empregá-los como mão-de-obra não podem afirmar que tal seria uma via legítima para expropriação de suas terras. Quanto a isso, acolho as ponderações do Assistente Técnico do réu, para quem isso não atrela a condição de grupo, "nem de suas significações e representações culturais diacríticas, principalmente porque a conexão de grupo se faz primordialmente por laços consanguíneos e de pertença cultural" (fl. 1.821).
31. Não há razão para se excluir a cabeceira do córrego João Dias da Terra Indígena Limão Verde. A posse dos antecessores do autor caracteriza-se como esbulho na medida em que, ao se proceder à demarcação da Fazenda Amambaí, decretou-se a separação entre uma parte alta e outra baixa, reservando-se aquela para a propriedade particular em detrimento da área ocupada pelos Terenas, malgrado a própria Prefeitura Municipal tivesse, ao longo do tempo, empreendido uma política de colonização mediante outorga de títulos a pequenos proprietários. Não se demanda, para provar a posse indígena naquele específico local, que haja vestígios de posse imemorial, como o tão discutido cemitério.
32. Agravo interposto na forma retida desprovido. Recurso de apelação desprovido. Sentença mantida.

ACÓRDÃO
Vistos e relatados estes autos em que são partes as acima indicadas, decide a Egrégia Quinta Turma do Tribunal Regional Federal da 3ª Região, por unanimidade, negar provimento ao agravo interposto na forma retida e, por maioria, negar provimento ao recurso de apelação, nos termos do relatório e voto que ficam fazendo parte integrante do presente julgado.

São Paulo, 18 de fevereiro de 2013.
Andre Nekatschalow
Desembargador Federal em substituição regimental


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