Durante três dias, moradores dos 13 quilombos de Eldorado/SP tiveram acesso a benefícios previdenciários, documentação e saúde
“Esse evento vai ficar na história”. A afirmação, da líder comunitária do Quilombo Ivaporunduva Maria da Guia Marinho da Silva revela o impacto da primeira edição do Juizado Especial Federal (JEF) Itinerante Quilombola às comunidades atendidas.
A iniciativa pioneira, promovida de 17 a 19 de novembro, ultrapassou barreiras geográficas e econômicas, proporcionando acesso qualificado à Justiça e cidadania a 350 pessoas do Vale do Ribeira.
Os atendimentos, na Pousada do Quilombo Ivaporunduva, foram direcionados a moradores das 13 comunidades quilombolas de Eldorado/SP.
Moradores dos 13 quilombos de Eldorado/SP tiveram acesso a benefícios previdenciários, documentação e saúde (Fotos: Acom/TRF3)
A ação foi promovida pelo Tribunal Regional Federal da 3ª Região (TRF3) e pela Seção Judiciária de São Paulo em parceria com a Prefeitura de Eldorado, órgãos públicos e instituições não governamentais, para oferecer serviços como concessão de benefícios previdenciários, emissão de documentos, saúde e orientação ao produtor rural.
Mais de 70 pessoas, entre magistrados, servidores, voluntários e estagiários, atuaram no mutirão.
Pela Justiça Federal, com a participação da Defensoria Pública da União e da Procuradoria-Geral Federal, foram realizadas 240 audiências e 83 perícias médicas, que resultaram na concessão de 160 benefícios previdenciários e assistenciais e expedidos mais de R$ 700 mil em Requisições de Pequeno Valor (RPVs).
O Tribunal de Justiça de São Paulo prestou 18 atendimentos, a Defensoria Pública de São Paulo 39, o Instituto Nacional do Seguro Social 210, a Justiça Eleitoral 48, a Receita Federal 28 e o Instituto de Terras do Estado de São Paulo 20.
Na parte de documentação, houve emissão ou regularização de 116 carteiras de identidade, 90 de registros civis e 60 do CadÚnico.
Em saúde houve 205 atendimentos e 72 quilombolas receberam doações de roupas e cestas básicas do Fundo Social.
O Serviço Social do Comércio (SESC) transmitiu o evento ao vivo pela Rádio Amiga FM em conjunto com o QuilomCast (podcast da juventude quilombola), e o Grupo Xirê de Quintal realizou atividades recreativas para as crianças, com elementos africanos e ocorreu uma experiência imersiva em rios da região, por meio de tecnologia de realidade virtual.
“O resultado foi bastante positivo, superou as expectativas. Tivemos adesão em massa e ampliamos o horário, para que todos pudessem ser atendidos”, avaliou o juiz federal Maycon Michelon Zanin, coordenador do JEF Itinerante Quilombola.
Presidente do TRF3, Carlos Muta, com o coordenador do JEF Itinerante, Maycon Michelon Zanin, e Valni de França Dias, a primeira quilombola a obter aposentadoria no mutirão
“A data tem um simbolismo muito grande, porque, mais do que um feriado, é um momento em que realizamos ações concretas para a promoção da dignidade, da igualdade racial e da valorização da cultura quilombola”, ponderou Maycon Michelon Zanin.
Segundo Rodrigo Marinho Rodrigues da Silva, presidente da Câmara Municipal de Eldorado, a força-tarefa proporcionou direitos essenciais.
"Desde a Constituição Federal de 1988, essas comunidades tentam angariar garantias de forma efetiva”, refletiu.
Quilombo Ivaporunduva está localizado em Eldorado, no Vale do Ribeira
Experiências
A vice-diretora do Foro da Seção Judiciária de São Paulo - Interior, juíza federal Silvia Melo da Matta, destacou a relevância do contato com a cultura local.
“Foi transformador compreender a particularidade de cada caso, ver como eles se organizam e o respeito que têm pela natureza.”
Atendimentos ocorreram de 17 a 19 de novembro
Para o procurador federal Danilo Trombeta Neves, participar do JEF Quilombola agregou conhecimento.
“Nós tivemos a oportunidade não só de ouvi-los, mas de andar pela comunidade, conhecer as residências e a forma de produção coletiva, foi um grande aprendizado”, resumiu.
A diretora do Foro da Seção Judiciária de Mato Grosso do Sul, juíza federal Monique Marchioli Leite, pontuou que atuar na ação foi enriquecedor.
"Levar o mutirão às comunidades quilombolas na semana da consciência racial foi um ato muito significativo, um compromisso que o TRF3 assumiu de fortalecer o acesso à Justiça”, completou.
De acordo com Tânia Heloísa de Moraes, que integra a Equipe de Articulação e Assessoria às Comunidades Negras do Vale do Ribeira e atuou na organização do evento, a ação cumpriu os objetivos. “Ver as pessoas saindo com um sorriso no rosto foi gratificante.”
Equipe da Justiça Federal
Organização
A preparação do evento começou em julho, com consulta livre, prévia e informada às comunidades quilombolas. O procedimento está previsto na Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho e garante que povos tradicionais sejam ouvidos e participem das decisões que afetam suas vidas, respeitando seus costumes, tradições e formas de organização.
A ação também seguiu as diretrizes da Resolução 599/2024 do Conselho Nacional de Justiça, que instituiu a Política Judiciária de Atenção às Comunidades Quilombolas e cumpriu o contido na Meta 7 do Judiciário, de priorizar processos relacionados aos direitos de comunidades indígenas e quilombolas.

Reunião preparatória
Benefícios previdenciários
Uma das maiores dificuldades enfrentadas pelos quilombolas é comprovar, por meio de documentos, o exercício de trabalho rural para ter direito a benefícios previdenciários.
Isso ocorre porque, diferentemente dos agricultores familiares tradicionais, eles trabalham de forma coletiva em terras de uso comum, o que resulta em poucos registros documentais individuais.
Para superar esse obstáculo, a atuação da Justiça Federal pautou-se na aplicação do Enunciado 17 da I Jornada pela Equidade Racial do Conselho da Justiça Federal. A tese reconhece que, no caso dos quilombolas, o início de prova material deve considerar a utilização coletiva do espaço físico pelos integrantes da comunidade, as trajetórias históricas, os modos de vida diferenciados e as relações territoriais específicas para comprovação da qualidade de segurado especial.
“Com essa diretriz, foi possível valorizar documentos comunitários e o contexto de vida quilombola como prova válida, viabilizando a concessão de benefícios que antes eram negados por falta de comprovação documental tradicional”, acrescentou Maycon Michelon Zanin.
Nascido e criado no Quilombo Nhuguara, Adair Soares da Mota vem de uma família numerosa e começou a trabalhar aos oito anos de idade. Há tempos, tentava obter a aposentadoria por idade rural, que conquistou no JEF Quilombola.
“A gente já lutou muito nessa vida. Chega uma hora que não temos mais fôlego, força e saúde para fazer um trabalho pesado. Com essa rendinha, vai dar para sobreviver, está bom demais", agradeceu.
Adair Soares da Mota agradeceu os serviços prestados pelo JEF Quilombola
Maria Edma Nunes Avelar Biondi mora com o marido no Quilombo Pedro Cubas há mais de 30 anos. O casal vive da agricultura familiar.
Ela disse que trabalhou por 18 anos como agente comunitária de saúde, mas pediu demissão depois de adoecer, com depressão severa. Em 2018, foi aposentada por invalidez. No entanto, teve o benefício cessado pelo INSS.
No mutirão, Maria levou documentos, laudo e receitas médicas, testemunhas, passou por uma nova perícia e obteve a aposentadoria por incapacidade permanente.
“Estou muito feliz. O que aconteceu aqui foi algo inesquecível e significa uma mudança de vida.”
Maria Edma Biondi compareceu acompanhada do marido e obteve aposentadoria por incapacidade permanente
Depois de inúmeras tentativas, o casal Emília Lara e Irineu Domingues de Moraes, do Quilombo Pedro Cubas, conquistou, no mesmo dia, a aposentadoria por idade rural.
“Foi uma grande vitória e a realização de um sonho”, afirmou Irineu.
Emília Lara e Irineu Domingues de Moraes conquistaram, juntos, a aposentadoria
Nadir Macenço, 59, vive sozinha no Quilombo Pedro Cubas, onde nasceu. Ela sempre trabalhou com lavoura, na plantação de mandioca, cana, verduras, banana, feijão e arroz. Agora está com problemas na perna e não consegue mais exercer as atividades.
Nadir falou que já havia solicitado a aposentadoria rural por idade, mas não teve resposta favorável. No JEF Quilombola, ela conseguiu o benefício.
“Foi uma surpresa. Passei anos correndo atrás disso e tinha desistido, mas no mutirão deu tudo certo. Vou poder me tratar e arrumar a casa lá no sítio, que está caindo.”
Mutirão atendeu 350 pessoas em três dias
A moradora do Quilombo Pedro Cubas, Valéria de Almeida Batista, trabalha na roça. No mutirão, ela conseguiu o salário-maternidade pelo filho que nasceu há três anos.
“Fiquei muito feliz, foi a primeira vez que vi uma iniciativa assim, espero que façam mais vezes, porque as pessoas precisam.”
José Adimar Pupo cuida da sobrinha menor de idade, uma jovem de 15 anos que perdeu o pai em 2016 e a mãe em 2023.
Durante o mutirão, ele oficializou o matrimônio com Cleide dos Santos Pupo, obteve a aposentadoria e a guarda da sobrinha.
"Com isso, a menina poderá ter acesso a um benefício previdenciário previsto em lei”, explicou.
Os pais da jovem eram segurados do INSS e, assim, ela obteve a concessão da pensão por morte da mãe, que era aposentada por invalidez.
“Eu só tenho que agradecer à Justiça Federal, que fez esse trabalho maravilhoso”, completou José.
Cleide dos Santos Pupo também elogiou a iniciativa.
“Achei bom demais. Ajudou muitas pessoas que estavam precisando. Voltem sempre, vamos esperar vocês.”
Artesanato confeccionado na comunidade
Quilombo mais antigo
Fundado no século XVII, o Quilombo Ivaporunduva é o mais antigo da região e o primeiro do Brasil a obter o título definitivo de suas terras. Com aproximadamente 500 moradores, distribuídos em 116 famílias, possui uma escola e um posto de saúde.
Localizado às margens do Rio Ribeira do Iguape, ocupa 3.158 hectares, sendo 80% de Mata Atlântica preservada.
“Ivaporunduva é como se fosse o ‘quilombo-mãe’ das comunidades de Eldorado. Todos os outros partiram dele”, explicou o presidente da Câmara Municipal de Eldorado, Rodrigo Marinho Rodrigues da Silva.
Capela Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos é patrimônio estadual
Na comunidade, a subsistência provém da agricultura familiar e economia de escambo.
"Temos vários grupos: do artesanato (confeccionado com fibra de bananeira e palha de milho), da produção de banana, do turismo. As roças são feitas em mutirão. Cada um tem uma função, mas todos fazem um pouco de tudo”, explicou Maria da Guia Marinho da Silva.
Da Capela Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos, localizada no centro da comunidade e tombada pelo patrimônio estadual, Benedito Alves da Silva, que vive há 70 anos em Ivaporunduva, retratou a trajetória do Quilombo.
Construção da ponte efetivou o acesso à cidade
Ele falou sobre a história da comunidade desde a época da mineração, a construção da igreja em taipa de pilão, a chegada da luz elétrica, a instalação da ponte que efetivou o acesso à cidade e explicou a cultura, as tradições e as crenças dos habitantes.
Os quilombos, além representarem resistência, são considerados territórios sagrados, pela conexão com a memória e a ancestralidade.
A banana é o produto mais cultivado nos quilombos
Assessoria de Comunicação Social do TRF3
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