A advogada Thais Maria Leonel do Carmo, a procuradora Sandra Akemi Shimada Kishi e a juíza federal Marisa Cláudia Gonçalves Cucio ressaltaram a dignidade da pessoa humana garantida pela Constituição Federal
O assunto está impresso em cada jornal, é comentado nas rádios, mostrado na televisão, enfim, é tema de toda a imprensa nacional: o patrimônio genético humano. Semana passada foi confirmado que o maior tribunal de justiça do Brasil, o Supremo Tribunal Federal, autorizou as pesquisas com células-tronco embrionárias. Julgamento acompanhado por milhões de brasileiros.
Em São Paulo, o tema foi debatido na sede do Tribunal Regional Federal da 3ª Região, por ocasião do 1º Congresso de Direito Ambiental do TRF3, organizado pela Escola de Magistrados da 3ª Região.
No 1º painel da manhã do dia 28 de maio, “Tutela Jurídica do Patrimônio Genético”, estiveram presentes: a presidente do TRF3, desembargadora federal Marli Ferreira, o professor dr. Celso Antonio Fiorillo, o desembargador federal Baptista Pereira, que presidiu o painel, a professora doutora Thais Maria Leonel do Carmo, a procuradora Regional da República, Sandra Akemi Shimada Kishi e a juíza federal Marisa Claúdia Gonçalves Cucio.
O desembargador federal Baptista Pereira, que presidiu o 1º Painel da manhã, destacou que o assunto é palpitante e está na pauta da maior corte de justiça do Brasil, o Supremo Tribunal Federal.
Foto: Emag/TRF3
Da esquerda para a direita: desembargador federal Newton De Lucca, juíza federal Marisa Cucio, desembargador federal Baptista Pereira, desembargadora federal Marli Ferreira, presidente do Tribunal Regional Federal da 3ª Região, procuradora Regional da República, Sandra Akemi Shimada Kishi, e os advogados Thais Maria Leonel do Carmo e Celso Antonio Pacheco Fiorillo
DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA
A primeira palestrante, a advogada Thais Maria Leonel do Carmo, iniciou o painel trazendo as linhas gerais da tutela jurídica do patrimônio genético dentro do direito brasileiro.
Mostrou as observâncias constitucionais sobre o tema, ressaltando que qualquer interpretação deve partir do pressuposto maior, da regra imposta pela Constituição Federal, no artigo 1º, inciso 3º, que é a dignidade da pessoa humana.
“É através da dignidade da pessoa humana que o direito ambiental deve ser analisado”, frisou e continuou afirmando que a pessoa humana é a verdadeira destinatária da norma. Afirmou que o direito brasileiro tem caráter antropocêntrico, ou seja, visa atender o ser humano em primeira instância.
A palestrante afirmou que o artigo 225, da Constituição Federal, no capítulo meio ambiente, predispõe em seu caput que todos temos direito a um meio ambiente ecologicamente equilibrado, que é um bem de uso comum e essencial a sadia qualidade de vida. E para isso impõe regras específicas para o Poder Público, dentre as quais, a de fiscalizar as entidades vinculadas às pesquisas com material genético e as entidades que visam à manipulação de material genético.
A palestrante fez a pergunta: de que forma nós podemos utilizar o patrimônio genético no direito brasileiro? E respondeu: Só posso usar vinculado ao que a Constituição Federal dispôs em seus artigos.
Ela destacou algumas normas sobre o assunto: a Lei 9.105, que efetiva o desenvolvimento econômico e incentiva a pesquisa com patrimônio genético, não só da pessoa humana, mas de qualquer forma de vida, seja animal, seja vegetal, fúngica ou microbiana.
A Lei 11.105, que veio para determinar normas de segurança e mecanismos de controle e fiscalização para que possa se atender a dignidade da pessoa humana.
E o inciso 5º, da Constituição Federal, que determina ao Poder Público o controle, a comercialização e a fiscalização dos produtos ou do patrimônio genético brasileiro.
Por fim, a palestrante voltou a ressaltar o caráter antropocêntrico do direito brasileiro e que o direito ambiental não serve só para elementos naturais como água e ar, mas para titular a vida. Desta maneira, segundo a palestrante, o artigo 225 vai regulamentar o patrimônio genético visando atender dessa forma a dignidade da pessoa humana.
CONHECIMENTO TRADICIONAL E A BIOPIRATARIA
A procuradora Sandra Akemi Shimada Kishi, em sua palestra, tratou da questão da proteção jurídica da biodiversidade, mais precisamente a questão do acesso ao conhecimento tradicional e como protegê-lo da biopirataria.
Ela destacou que “o Brasil é o país mais megabiodiverso do planeta, porque integra 30% das florestas tropicais do mundo todo. Temos enraizado em nossa fauna e em nossa flora 2 trilhões de dólares e a biopiratia representa um prejuízo de 16 milhões dia, sendo que um quarto dos modernos medicamentos industrializados derivam das nossas plantas, representando um mercado de 124 milhões de dólares”, afirmou.
Ela explicou o que é o conhecimento tradicional, que segundo a Medida Provisória nº 2.186, de 2001, é a informação sobre conhecimento prático individual ou coletivo associado ao patrimônio genético.
Falou do instrumento de proteção deste conhecimento e acesso ao CPI – consentimento prévio informado, o que é, quando é exigido e como se formaliza, através da análise um caso prático do povo Krahô no Tocantins.
O CPI é um procedimento de troca de informações, exigido no acesso ao conhecimento tradicional com propósitos comerciais, a chamada bioprospecção; no acesso ao conhecimento tradicional para pesquisas científicas; e no acesso aos recursos genéticos e aos conhecimentos tradicionais em territórios de povos indígenas ou populações tradicionais locais.
Para ela, se o povo indígena tem legitimidade processual (artigo 232, da Constituição Federal), também tem legitimidade para consentir e para contratar.
Ela deu um exemplo de estudo feito pela Unifesp, que das 400 espécies de plantas coletadas do povo indígena, 138 foram cientificamente identificadas como tendo potencial de ação neurológica, 11 são alvos de estudos científicos. Duas associações disseram-se representativas do povo, no entanto, somente uma delas foi consultada, o que gerou pedido de indenização.
Intensas trocas de informação no CPI, inventário, mapeamento, prévio estudo antropológico evitariam isso, além de estudos cooperativos multidisciplinares de interface em antropologia, sociologia, botânica, engenharia genética, direito, bioquímica, farmacologia, biologia, segundo a palestrante.
Para ela, a CPI é instrumento jurídico que catalisa as diferenças dos interesses envolvidos, garante a identificação e representação das comunidades tradicionais, controla o acesso, facilita a troca de informações, ajuda o processo de formalização do contrato, garante mais possibilidade para a execução das condições estabelecidas na fase inicial do acesso e conhecimento prévio informado.
Encerrou a palestra com exemplos da biopirataria. Foram patenteadas no Exterior: o pau 5 (ingrediente do perfume Chanel nº5), jararaca (remédio hipertensivo), andiroba (indústria cosmética), sapo tricolor (câncer e remédio contra aids), aiauais (chá alucinógeno), cupuaçu, curari (anestésico cirúrgico). “Ao invés do Brasil, nosso patrimônio foi patenteado no exterior”, lamentou a procuradora.
PROTEÇÃO AO PATRIMÔNIO GENÉTICO HUMANO
A juíza federal Marisa Cláudia Gonçalves Cucio, apresentou um panorama geral sobre a tutela jurídica do patrimônio genético, explicou o avanço da engenharia genética e o desenvolvimento das suas disciplinas, o projeto genoma - ápice da genômica, que culminou no julgamento das pesquisas com as células-tronco.
A palestrante explicou a engenharia genética, com base na definição do professor Celso Fiorilo, “A engenharia genética é um conjunto de técnicas que permite o cientista identificar, isolar e modificar os genes de mais diversos organismos permitindo modificar esse genoma, essa base hereditária, de uma célula viva produzindo com extremos níveis de eficiência, gerando novos produtos químicos e até novos organismos geneticamente modificados.”
“Obviamente existe um interesse econômico muito grande em toda a nossa biodiversidade, em todo o nosso patrimônio e inclusive agora na exploração da tecnologia para a cura de doenças”, afirmou a palestrante.
Projeto Genoma
A magistrada explicou que a biotecnologia se preocupa com o mapeamento dos genes humanos, cujo ápice foi o projeto genoma. Esse projeto durou 12 anos, encerrando-se em 2003 com o mapeamento de 99% dos genes humanos. Foram investidos 2 milhões de dólares. Teve como característica uma cooperação internacional, pública e privada. Descobriram que o ser humano tem 30 e poucos mil genes, quando esperavam mais de 100 mil.
O genoma teve coordenação da UNESCO e vários comitês, um deles de bioinformática. A informática foi uma ferramenta fundamental para poder mapear os genes, ligada à medicina e a genética conseguiu detalhar e entender esses mecanismos de mapeamento e de como se organizavam os genes.
Também houve um comitê de propriedade intelectual, pela possibilidade de patenteamento de genes, alteração de genes e, por último, um importante comitê de bioética, porque a ética tem que acompanhar todas as pesquisas de mapeamento e de todo a pesquisa científica voltada para o ser humano.
A bioética não é só voltada à medicina, mas usa princípios de teologia, filosofia e direito. Só os cientistas dissociados da ética não poderiam fazer pesquisas com o ser humano, evitando-se assim, o que mais se teme hoje: a implementação da coisificação do ser humano, ou seja, que o ser humano se transforme em um produto.
Um projeto paralelo estudou a biodiversidade entre os seres humanos, para garantir a diversidade do patrimônio genético humano, afim de que não seja criada uma raça única, como se tentou no passado, uma raça superior.
A juíza explicou que do projeto genoma ficou claro duas coisas bem diferentes: uma é o genoma, essa seqüência de genes, como eles se organizam e a outra é a informação genética que se decorre dele. Temos a proteção da sua informação genética, afirmou.
“Em 50 anos houve um progresso científico impressionante”, destacou a juíza federal Marisa Cucio, contando que a divulgação da foto do DNA, de como a molécula se organizava, é de 1953 e o final do projeto genoma é de 2003. “Hoje nós já estamos estudando a intervenção genética, a alteração de gene, a pesquisa com embriões, que a sociedade não consegue acompanhar e somos todos chamados a opinar”, afirmou. “É extremamente importante que as pessoas envolvidas com o Direito, juízes, procuradores, servidores da Justiça tenham conhecimento, porque em breve essas coisas estarão batendo a porta do Judiciário e da sociedade”, ressaltou a magistrada.
Intervenções Genéticas
A palestrante falou sobre as intervenções genéticas, que é intervir no gene, tirá-lo ou modificá-lo, e o que isso vai afetar no futuro. Deu como exemplo, a agricultura, onde já existe a redução de espécies, como de milho, devido à seleção das melhores espécies.
A preocupação, segundo ela, é que isto não aconteça com o ser humano, não se reduza à biodiversidade e que não se saiba qual é o impacto dessas alterações genéticas e o que esse conhecimento pode fazer com o ser humano. A resposta não se tem, nos inquieta e não temos como prever o que vai acontecer, afirmou.
A palestrante abordou a reprodução humana assistida, que embora não seja uma alteração genética, pode ser usada para fins não terapêuticos. Como exemplo, citou casais que estão escolhendo o sexo dos filhos e descartando os embriões diferentes e alertou para a possibilidade de poder se verificar se aquele feto tem ou não algum problema genético, e, ainda, para a possibilidade de escolha dos fenótipos. “Não podemos nos transformar em um balcão de genes”, protestou.
Outra técnica de intervenção abordada foi a clonagem, que é utilizar a própria célula para reproduzir um organismo. Essa técnica é repudiada em todos os países para o ser humano, exceto na clonagem terapêutica para a reprodução de tecidos e órgãos danificados, que é a grande busca dos cientistas. Explicou, ainda, a terapia genética, que é a utilização de células troncos para transformação em células de tecidos diferentes, para eliminar, alterar, trocar genes modificados responsáveis pelo aparecimento de enfermidades. Afirmou que muitas pesquisas com células tronco - adultas - já deram resultados satisfatórios, obtendo, por exemplo, a regeneração de tecidos como coração ou fígado.
Biodireito e Biosegurança
Paralelamente a bioética, veio o biodireito, positivando as regras éticas, garantindo não só o direito a vida, mas também uma melhor qualidade de vida, do paciente e da relação, garantindo a integridade física do paciente e a integridade do patrimônio genético. Ele se fundamenta em princípios da proteção, da boa qualidade de vida, do consentimento informado, ou seja, a pessoa tem que saber a que tipo de tratamento ela vai se submeter, o que vai fazer, os efeitos colaterais.
E paralelo ao biodireito, veio a biosegurança que ampliou o conjunto de normas que vêm proteger a vida humana. A lei protege qualquer tipo de tecnologia que vai alterar a vida, seja humana, animais ou plantas. E a biosegurança é um aparato jurídico que vem regulamentar e proteger todas as áreas ou a manipulação do patrimônio genético humano.
Os princípios que fundamentam a proteção do patrimônio genético são: integridade do ser humano e da sua diversidade, ou seja, proibindo a eugenia, e, também, o contrário, não se permite a criação de uma espécie inferior, criada simplesmente para gerar órgãos para doação; a identidade, o ser humano não pode ser reduzido as suas informações genéticas; a não discriminação, a pessoa não pode ser discriminada por possuir um gene defeituoso; a não disponibilidade econômica, a pessoa não pode virar um produto; o consentimento informado, a pessoa tem o direito de saber a qual terapia será submetida; a confidencialidade, o material genético não pode ser divulgado.
Princípios sobre a realização das pesquisas: da prudência e da precaução, o princípio da vulnerabilidade, da necessidade (é necessária àquela pesquisa ou é só curiosidade científica), da qualidade da pesquisa e, o mais importante, da dignidade da pessoa humana. “Não seremos cobaias”, concluiu a juíza federal.
Explicou que o patrimônio genético humano é dividido em duas facetas, as pessoas têm o patrimônio enquanto indivíduo, protegido pelo direito à vida, a integridade e a intimidade e a não discriminação, ou seja, ninguém pode ser submetido a testes de mapa genético para seleção de emprego ou seguro de vida, por exemplo.
Por outro lado, existe o patrimônio humano com interesses difusos, que é um patrimônio comum da humanidade. A Unesco já declarou que é um patrimônio comum, um bem genético humano não pode ser reduzido e poupado das futuras gerações.
A juíza federal Marisa Cucio concluiu afirmando que a legislação prevê responsabilidades pelo dano ao patrimônio genético do ponto de vista ambiental, nos tipos administrativos e crimes ambientais, e que existe um arcabouço jurídico da própria Constituição Federal, que protege a pessoa humana, no seu artigo 5º, e o direito ambiental, no seu artigo 225.
Ester Laruccia
Assessoria de Comunicação
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